Luiz Sérgio Henriques: Fado tropical

Nada mau se nós pudéssemos recriá-lo, o Brasil se tornando um imenso Portugal...
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Nada mau se nós pudéssemos recriá-lo, o Brasil se tornando um imenso Portugal…

Na vida cotidiana, geringonça é um mecanismo mal-ajambrado, de escassa utilidade para quem o concebe ou quer usar para fins práticos. As artes da política, por contraste, têm tal natureza que são capazes de transformar um mecanismo fadado a ter curta duração numa solução razoável e até bem-sucedida, unindo parceiros improváveis – daí o aspecto de “geringonça” – para dirigir um país moderno e arejado, que já registra expressivos ganhos civilizatórios desde que deu partida à “terceira onda” redemocratizadora nos anos 70 do século passado. A mesma onda, por sinal, em que, alguns anos depois, nosso próprio país ingressaria, tanto assim que não poucos especialistas associam as Cartas que, em ambos os países, assinalaram a ruptura com o antigo regime.

Referimo-nos, evidentemente, a Portugal, cujas recentes eleições devolveram alguma esperança aos que avaliamos, com preocupação difícil de disfarçar, a atual “estrutura do mundo”, trincada por ataques frontais à ideia de democracia que nos pareceriam inimagináveis ainda há alguns anos. Uma esperança, aliás, que rebrota aqui e ali – tal como a flor no asfalto do poeta – com os freios e contrapesos que ultimamente começaram a ser acionados contra as transgressões de Donald Trump ou de Boris Johnson, bem como contra as pretensões autoritárias de Matteo Salvini e outros arautos menores do antiliberalismo político.

Ao falar de Portugal, os paralelos com o Brasil devem ser bem medidos. Não se trata só das óbvias questões de dimensão ou de geopolítica. Limitando-nos à esfera propriamente política, salta aos olhos o fato de que desde a redemocratização esse país teve – e tem até agora – o que rigorosamente não soubemos construir de modo duradouro: um sistema partidário com um mínimo de racionalidade, previsivelmente bem mais resistente a eventuais tentativas de transformá-lo na terra arrasada que, entre nós, se mostrou propícia ao sucesso do bolsonarismo. Uma aventura parecida em terras lusas pressuporia a desarticulação de tal sistema e mesmo a desmoralização da direita constitucional, com a ascensão de grupúsculos da extrema direita ainda insignificantes na sociedade e no Parlamento, o que não está à vista.

Como muito pouco ou quase nada está inscrito nas coisas a ponto de determinar fatos inexoráveis, o bom resultado não teria sido possível sem a ação de uma esquerda democrática, representada de modo majoritário, mas sem exclusividade, pelo Partido Socialista (PS) de Mário Soares já a partir da Revolução dos Cravos. Por alguns breves anos o pequeno país voltaria a estar na rota dos grandes acontecimentos, atraindo a atenção de personalidades políticas e intelectuais ávidas por um processo revolucionário que rompesse com o que parecia ser a “mesmice” social-democrata da Europa. Uma espécie de Cuba na ponta do continente pode ter estado na cogitação de “revolucionários sinceros, mas radicais”, hipótese que, no entanto, se distanciava dos interesses e das aspirações de uma sociedade que mal se livrava de décadas de asfixia.

Os socialistas interpretaram o sentimento majoritário. Mesmo subjugado por um regime retrógrado e depauperado por um empreendimento colonial extemporâneo, Portugal pertencia ao mundo ocidental. Devia, por isso, reconstituir as instituições correspondentes e, por meio delas, encaminhar sua revolução democrática. O papel do ator é, aqui, digno de nota. Enquanto os comunistas, combatentes antifascistas da primeira hora, se cingiam eleitoralmente aos cinturões industriais e ao bravo Alentejo rural, os socialistas decifravam com muito maior clareza o enigma do centro político, disputando-o com os partidos constitucionais de centro-direita, também participantes, com todos os títulos de legitimidade, dos prélios eleitorais e, em geral, da reconstrução pós-ditadura. O PS, em suma, jamais se deixou encerrar num gueto.

O ator socialista surpreendeu ainda por outro aspecto. Numa terra que viu nascer e vigorar por séculos o sebastianismo – a irracional espera por um herói salvador perdido num ponto do passado, mito que, por sinal, se transportaria em alguma nau desgovernada também para a Terra brasilis –, o PS não restou em estado de menoridade, aprisionado à figura de Mário Soares. O pai fundador seria influente até o fim, especialmente do ponto de vista simbólico, mas outros dirigentes foram oferecidos ao País, como Jorge Sampaio, António Guterres (atual secretário-geral da ONU) ou José Sócrates (cujas desventuras judiciárias não contaminaram o PS além de certa medida).

E o mais recente nome desse elenco, António Costa, foi o idealizador da “geringonça”, habilíssima manobra que, em 2015, levaria a um competente governo socialista com apoio parlamentar “externo” de até então renhidos adversários do próprio campo, como o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda.

Nestes tempos de turbulência incomum, toda previsão, até sobre o futuro próximo, parece temerária: de fato, não sabemos como será o novo governo, por quanto tempo durará e se os ventos raivosos do extremismo de direita continuarão a poupar o país. Não sabemos sequer se o ator socialista vai fazer, como tem feito, os movimentos típicos da grande política. Só o que se pode afirmar é que, vistas retrospectivamente, estas quase cinco décadas do Portugal redemocratizado são – basicamente – exemplares e não seria nada mau se pudéssemos recriar, também nós, o fado tropical que em outro momento, e de modo irônico, o atual vencedor do Camões nos ensinou a entoar. O Brasil se tornaria um imenso Portugal, próspero e pacificado – ainda por cima com a participação decisiva, mas não monopolizadora, de uma esquerda mudancista, plural e tolerante, como bem o sabem os milhares de compatriotas que, nos últimos anos, passaram a ver no outro lado do Atlântico uma possibilidade de vida decente e segura, que por aqui a tantos se nega.

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