As mídias sociais podem pôr em risco a estrutura política de representação
“Sentimento oceânico” é uma conhecida expressão que Freud tomava emprestada para se referir a uma sensação religiosa ou mística que muitos sentiam, mas ele, não. Esse sentimento descrevia um pertencimento a um todo maior (o mundo, o universo, a natureza) carregado de prazer. Para Freud, não passava de um resto da célula narcísica.
Fiquemos por aqui na crítica psicanalítica à religião. Seria, talvez, necessário ir adiante e aplicar a mesma suspeita à adesão de muitos à ideia de povo e suas manifestações sociais e políticas.
Temo que o mesmo tipo de crítica seria possível. As pessoas que ficam à busca de um grande sentido histórico quando o povo sai às ruas estão afogadas em restos narcísicos infantis. Não é à toa que essas pessoas falam de movimentos sociais e políticos populares com os olhos cheios de emoção. O gozo narcísico é evidente.
Nesse sentido, esperar alguma redenção do mundo a partir dos movimentos populares é uma expectativa imatura e narcísica. Como ler os sinais em busca do apocalipse. A diferença é que quem faz essas leituras é gente ignorante e crente e quem analisa movimentos sociais e políticos é gente culta e especializada.
Entretanto, a infantilidade é a mesma.
Mas o que fazer quando grandes gurus dessa expectativa, como o próprio Marx, alimentavam os mesmos sentimentos? Nada a fazer, a não ser perceber que o próprio Marx seria regredido em matéria psicológica.
Daí a política regredida que alimenta a nossa época.
Não acho que podemos ir tão rápido assim, mas a hipótese vale uma maior reflexão. Por hoje, fiquemos na mera aplicação do sentimento oceânico às expectativas redentoras que muitos identificam nos últimos movimentos populares no mundo e no Brasil.
Alguns acham que existe um fundo histórico hegeliano em movimentos como a Primavera Árabe (termo que ilumina o ridículo de grande parte dos intelectuais e da mídia), as jornadas de junho ou os coletes amarelos franceses de agora.
Buscar um fundo histórico hegeliano é buscar um sentido histórico de evolução (esse sentido histórico também pode ser marxista). Esse “fundo” nada mais seria do que a presença do sentimento oceânico aplicado à história, à política e à sociedade. É projetar seu gozo narcísico primitivo nas ações humanas no “tempo”. Incrível como psicanalistas e afins pensam “dentro” dessa projeção.
Alguns entram em êxtase com islandeses fazendo escolhas política via Facebook! A Islândia é um país de uma natureza impressionantemente linda e impactante. Mas seu clima é hostil, sua população vai um pouco além de 300 mil habitantes e seu isolamento é profilático para com as misérias do mundo (por isso, lá tudo é “lindo”, sua primeira ministra anda pela rua, não tem exército e a polícia é ociosa), mas ainda assim tem gente que acha que a Islândia pode ser um “modelo” a ser seguido pelo Brasil… Risadas?
Afinal, o que reúne movimentos “semelhantes” como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, as jornadas de junho, a greve dos caminhoneiros ou os coletes amarelos? Nada!
A não ser as mídias sociais e seu poder de impacto que se move na velocidade da luz, seu caráter disperso e, finalmente, sua capacidade de agenciar ressentimentos e demandas justificadas e/ou delirantes. Logo, o denominador comum é uma ferramenta e não um conteúdo.
A presença, no passado, de líderes organizadores dos movimentos sociais e políticos encobria o que hoje está descoberto: o “povo” não é uma entidade única, a não ser por suas queixas, fantasias e disposição para a violência.
Hoje, as inteligências celebram a inexistência de líderes e o caráter descentralizado desses movimentos.
Arriscaria dizer que se trata da mesma projeção narcísica que alguém pode fazer acerca da divindade de uma erupção vulcânica (aliás, vulcão é o que não falta no paraíso social e político que é a Islândia).
As mídias sociais podem pôr em risco a estrutura política de representação por conta de sua capacidade de agenciar pessoas banais “liderando” processos de geração de violência.
Uma conclusão primeira e, para alguns, assustadora, é a existência de um componente narcísico primitivo em operação na idealização da democracia, que seria o regime por meio do qual o povo faz sua história. O “povo histórico” aqui é exatamente o objeto do sentimento oceânico.
O povo não faz história nenhuma, apenas corre atrás, para lá e para cá, e em círculos, de seu bolso, de suas taras e de seus ressentimentos.
*Luiz Felipe Pondé é escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.