Luiz Carlos Azedo: Salvadores da pátria

O sebastianismo é uma herança tão forte quanto o velho patrimonialismo das oligarquias brasileiras. Até caminham de mãos dadas, embora aparentemente se contraponham

A face mais popular do iberismo no Brasil é o sebastianismo, um mito messiânico originário do desaparecimento do D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, a 4 de agosto de 1578. Menino ainda, assumiu o trono; o rei de Portugal morreu aos  24 anos e não deixou herdeiros. Em consequência, a primeira nação da Europa ocidental, que vinha de um exitoso ciclo de expansão marítima, mergulhou num período de frustração e desgoverno, sendo anexada pela Espanha em 1580. À época, o episódio personificou o mito do Encoberto, muito conhecido entre os cristãos-novos, por causa das profecias de Gonçalo Antônio Bandarra, um sapateiro de Trancoso, cujas trovas incomodavam a Inquisição:

“Augurai, gentes vindouras, / Que o Rei que daqui há-de-ir, / Vos há-de tornar a vir/ Passadas trinta tesouras. / Dará fruto em tudo santo, /Ninguém ousará negá-lo;/ O choro será regalo/ E será gostoso o pranto.”

Em sua defesa, Bandarra sustentou, perante os inquisidores, que havia se inspirado na Bíblia, ao ler os livros de Daniel, Isaías, Jeremias e Esdras, que profetizavam a vinda de um rei que traria, finalmente, a paz e a justiça aos povos da terra. Esse foi o ponto de partida para criação do mito, que mais tarde seria acalentado nas obras de Camões, do padre Antônio Vieira e até mesmo de Fernando Pessoa, que invoca o velho sebastianismo para mexer com os brios dos portugueses, diante da decadência em que se encontrava o seu país na primeira metade do século passado, desencantado com a República e a humilhação perante a Inglaterra.

Essa profecia de regresso de um salvador da pátria acabou tendo forte influência no Brasil, sobretudo no Nordeste. Ariano Suassuna, em seu Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, reconfigura o mito: “Guardai, Padre, esta espada, porque um dia hei de valer dela com os Mouros, metendo o Reino pela África adentro Dom Sebastião I — ou Dom Sebastião, O desejado — Rei de Portugal, do Brasil e do Sertão”. Descreve o sangrento movimento messiânico do qual participaram os antepassados do personagem-narrador, Pedro Dinis Quaderna, por volta de 1830, na cidade de São José do Belmonte (PE). Depois de sonhar com dom Sebastião, o sertanejo João Antônio dos Santos fundou um movimento messiânico que culminou na morte de 80 pessoas. Em maior escala, o messianismo ressurgiria no Brasil com o místico Antônio Conselheiro, líder dos jagunços de Canudos, no interior da Bahia.

Alguns líderes políticos, de certa forma, encarnaram o sebastianismo ou desejaram fazê-lo. É o caso do líder tenentista Luís Carlos Prestes, que se tornou um mito político depois de percorrer cerca 25 mil quilômetros, em 11 estados, durante dois anos, com sua coluna que chegou a ter 1.200 rebeldes. Cerca de 200 homens cobriram todo o percurso até se dispersarem, uma parte na Bolívia, outra no Paraguai. A adesão de Prestes ao comunismo, porém, reposicionou e limitou sua liderança, que acabou suplantada pelo governador gaúcho Getúlio Vargas, líder da Revolução de 1930, que governou o país por meio de uma ditadura, até 1945.

Espaço vazio

A legislação trabalhista e o salário-mínimo mantiveram inabalado o prestígio de Vargas após 15 anos de ditadura, possibilitando sua volta ao poder em 1950 pelo voto, embora o legado dele fosse além dessa fronteira, em razão da reforma do Estado e do seu papel na industrialização do país. Desde então, amalgamado ao populismo, o messianismo no Brasil tornou-se um fenômeno muito mais político do que místico-religioso, que sobrevive apenas nas festas populares, como nas Cavalhadas.

É nesse leito que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve sua base eleitoral, depois de governar o país por oito anos, com programas compensatórios como o Bolsa Família, que facilitam a construção da imagem de suposto “pai dos pobres”, ainda que sua estratégia de desenvolvimento tenha fracassado e levado o país ao desastre econômico no governo Dilma. Nem de longe se compara ao legado de Vargas.

Do ponto de vista da política, o sebastianismo é uma herança tão forte quanto o velho patrimonialismo das oligarquias brasileiras. Até caminham de mãos dadas, embora aparentemente se contraponham. As alianças de Lula no Nordeste são um bom exemplo disso. No Brasil meridional, porém, o fenômeno não tem a mesma intensidade. O divórcio entre a política e a sociedade está gerando um outro tipo de liderança, de viés conservador e autoritário, que preenche o espaço vazio, no caso, a candidatura do deputado Jair Bolsonaro (PSC), mas que também se apresenta como “salvador da pátria”.

Os demais candidatos a presidente da República, embora com uma trajetória política mais orgânica e institucional, enfrentam dificuldades para se colocar como real alternativa de poder. O divórcio entre o Estado e a sociedade e a desmoralização dos partidos em razão do envolvimento de seus líderes com a crise ética fazem com que, no âmbito da sociedade civil, muitos procurem um novo São Sebastião fora do mundo da política. A rigor, nada impede que isso ocorra, mas ninguém vai resolver os problemas do país com reza ou num passe de mágica

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