Luiz Carlos Azedo: O leite das crianças

Renan Calheiros

Sem qualquer constrangimento, a bancada do PT no Senado, ao contrário do que aconteceu na Câmara, fez uma composição com os “golpistas”

Uma das fotos mais famosas da Segunda Guerra Mundial foi tirada em Londres, durante os bombardeios da aviação alemã. Nela aparece um leiteiro impecavelmente vestido com um casaco branco, carregando com a mão direita as garrafas de leite destinadas às crianças que estavam nos abrigos antiaéreos. A rua na qual transita está completamente destruída e os bombeiros ainda apagam o fogo em alguns prédios atingidos pelas bombas. A foto simboliza a resistência inglesa à Alemanha nazista e a capacidade de o governo londrino manter os serviços básicos funcionado, depois de o primeiro-ministro Winston Churchill ter estatizado a entrega do pão, do leite e das correspondências.

Na época, havia rigorosa censura, na qual os fotógrafos mal podiam trabalhar, pois todas as imagens de destruição eram proibidas para não gerar pânico na população nem permitir que o alto-comando alemão avaliasse os estragos feitos pelos bombardeios. Na manhã de 9 de outubro de 1940, porém, o fotógrafo Fred Morley, ao presenciar o fogo sendo apagado pelos bombeiros, decidiu burlar a censura criando uma peça de propaganda: “armou” a cena do leiteiro no local do bombardeio, não se sabe até hoje como, pois seria ele próprio ou seu assistente o homem de casaco branco. A foto foi publicada e virou símbolo do espírito “stiff upper lip” britânico, que significa “lábio superior travado”. O primeiro sinal de medo é o tremor do lábio superior.

O senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE), eleito ontem para a Presidência do Senado, é um daqueles políticos que costumam travar o lábio superior nos momentos de tensão. Faz parte do grupo hegemônico na Casa, liderado pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL), com quem fez um roque de posições, passando-lhe o bastão da liderança da poderosa bancada do PMDB. Sem qualquer constrangimento, a bancada do PT no Senado, ao contrário do que aconteceu na Câmara, fez uma composição com os “golpistas” do PMDB.

O fato de Eunício e Renan terem articulado a maioria que abrandou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, mantendo-lhe os direitos políticos, funcionou como um atenuante para neutralizar o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que pregava uma candidatura de oposição. O PT compôs a chapa de Eunício, indicando o senador José Pimentel (PT-CE) para ocupar a primeira secretaria da Mesa. Mas houve dissidência, pois o senador José Medeiros (PSD-MS), que desafiou o rodízio de integrantes do grupo de Renan no comando do Senado, obteve 10 votos, enquanto outros 10 senadores votaram em branco. Eunício foi eleito por 61 dos 81 senadores, uma vitória expressiva.

A imagem do leiteiro de Londres é emblemática para ilustrar o papel de Eunício à frente do Senado em meio à crise ética que atinge a elite política do país. Ele próprio já é citado em três delações. Precisará manter a Casa funcionando em meio às denúncias de corrupção. A homologação da delação premiada dos 77 executivos da Odebrecht pela presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, possibilitou que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal investiguem todos os políticos citados nos depoimentos, entre os quais muitos senadores. Ao se despedir do comando da Casa, Renan mandou recado aos investigadores da Lava-Jato: “Não se combate eventuais crimes cometendo outros crimes”, numa alusão às buscas e apreensões e vazamentos de informações da operação. Mas defendeu o fim do sigilo das delações, para evitar vazamentos seletivos.

Eunício fez um discurso conciliador após a eleição. Empresário, lembrou que “uma organização só prospera quando há união, entendimento, objetivos comuns”. Disse que “cada voto tem o mesmo valor na Casa e que os grandes interesses da nação superam os interesses e valores pessoais”. O novo presidente do Senado não é um grande orador nem um político carismático, mas tem grande capacidade de articulação e sangue nos olhos quando entra numa disputa política. Se conseguir manter o Senado funcionando em meio às delações premiadas da Odebrecht terá cumprido o seu papel. “O mais importante agora é votar as matérias que estão na pauta do Congresso para enfrentar a crise econômica, não importa o que venha a acontecer na Operação Lava-Jato”, destaca o senador tucano José Aníbal (SP).

Câmara

O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), candidato à reeleição, manteve seu favoritismo na disputa pela presidência da Câmara, cuja Mesa será eleita hoje. Também concorrem à presidência da Câmara: André Figueiredo (PDT-CE), Jair Bolsonaro (PSC-RJ), Jovair Arantes (PTB-GO), Júlio Delgado (PSB-MG) e Luiza Erundina (PSol-SP). Maia precisa vencer no primeiro turno; caso isso não ocorra, Jovair Arantes (PTB-GO) passará a ser um candidato muito competitivo e a eleição será uma incógnita.

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