Luiz Carlos Azedo: Apelo às massas

“Com o PIB de 1,1%, Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso. Não é o primeiro a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas”.
Foto: FERNANDO BIZERRA EFE/El País
Foto: FERNANDO BIZERRA EFE/El País

“Com o PIB de 1,1%, Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso. Não é o primeiro a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas”

Com o restabelecimento do presidencialismo em janeiro de 1963 e a ampliação dos poderes do presidente João Goulart — que havia assumido o cargo após a renúncia de Jânio Quadros, não sem antes ter que derrotar uma tentativa de golpe militar para impedir sua posse —, a implementação das chamadas reformas de base passou a ser o eixo da disputa política nacional. Goulart apresentou às lideranças políticas um anteprojeto de reforma agrária que previa a desapropriação de terras com título da dívida pública, o que forçosamente obrigava a alteração constitucional. Uma segunda iniciativa para agilizar a agenda das reformas foi o encaminhamento de uma emenda constitucional, que propunha o pagamento da indenização de imóveis urbanos desapropriados por interesse social, com títulos da dívida pública.

Essas propostas, porém, não foram aprovadas pelo Congresso Nacional, o que provocou forte reação por parte dos grupos de esquerda, inclusive nas Forças Armadas. Em setembro de 1963, a Revolta dos Sargentos — movimento que reivindicava o direito de que os chamados graduados das Forças Armadas (sargentos, suboficiais e cabos) exercessem mandato parlamentar em nível municipal, estadual ou federal, o que contrariava a Constituição de 1946 — acirrou a polarização ainda mais. Entretanto, isso aumentou o isolamento de Jango, já agravado pelo rompimento com o Partido Social Democrático (PSD) e Juscelino Kubitschek, que era candidato a presidente nas eleições previstas para 1965.

Diante dessa situação, Jango pediu a Raul Ryff, seu secretário de Imprensa, que era membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que agendasse um encontro com o líder comunista Luiz Carlos Prestes. O encontro foi organizado por Antônio Ribeiro Granja, membro do secretariado do PCB, num apartamento em Copacabana. À época, Prestes já articulava a reeleição de João Goulart, o que era inconstitucional, à falta de melhor opção para enfrentar as candidaturas de Juscelino e de Carlos Lacerda (UDN), pois o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, cunhado do presidente da República, era inelegível. O conselho de Prestes foi Jango apelar às massas e fazer as reformas de base por decreto. Para isso, os comunistas organizariam comícios populares em todos os estados do país, ao qual Jango compareceria.

A mobilização foi iniciada no dia 13 de março de 1964, com o comício realizado na estação da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, também denominado Comício das Reformas, ao qual compareceram cerca de 150 mil pessoas. Na ocasião, Goulart proclamou a necessidade de mudar a Constituição e anunciou a adoção de importantes medidas, como a encampação das refinarias de petróleo particulares e a possibilidade de desapropriação das propriedades privadas valorizadas por investimentos públicos, situadas às margens de estradas e açudes.

Era o começo de uma escalada fatal para democracia, pois, em resposta ao comício, várias manifestações e “marchas” foram convocadas por setores do clero e por entidades femininas. A primeira, A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorreu em São Paulo, a 19 de março, no dia de São José, padroeiro da família. Contou com a participação de cerca de 300 mil pessoas, entre as quais Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara. A última, no dia 2 de abril, após a derrubada de Jango, levou às ruas cerca de um milhão de pessoas e legitimou o golpe militar de 1964, revelando uma correlação de forças favorável à implantação do regime autoritário.

Novo cenário
Ontem, com sinal trocado, durante uma escala em Roraima, a caminho do encontro com o presidente Donald Trump, em Washington, recepcionado por 400 apoiadores, o presidente Jair Bolsonaro resolveu convocar seus partidários para a manifestação do dia 15 de março, com objetivo de pressionar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). “É um movimento espontâneo e o político que tem medo da rua não serve para ser político”, disse Bolsonaro. Na semana passada, havia negado que estava convocando o protesto nas suas redes de WhatsApp, apesar das evidências. Na verdade, o movimento não tem nada de espontâneo: está sendo organizado por grupos de extrema-direita que apoiam Bolsonaro, que também se utiliza de um exército de robôs comandado pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro, o 02, seu filho, nas redes sociais.

Há duas motivações aparentes para Bolsonaro convocar a manifestação: manter a pressão sobre o Congresso, que votará os projetos regulamentando a execução das emendas parlamentares ao Orçamento da União; e reforçar os protestos, que estavam sendo esvaziados pelo acordo feito pelo Palácio do Planalto para resolver o impasse em relação ao Orçamento de 2020. Uma terceira motivação, porém, é subjacente: o fracasso do governo na economia começa a lhe subir à cabeça, depois do PIB de 1,1% do ano passado. Além disso, o cenário na economia mundial sinaliza tempos difíceis pela frente, ainda mais com a chegada da epidemia de coronavírus ao Brasil. Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso.

Como vimos, em que pese as diferenças polares, não é o primeiro presidente a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas e enfrenta dificuldades com o Congresso.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-apelo-as-massas/

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