Lilia Lustosa: Não olhe para cima, não saia da caverna

Longa-metragem dirigido por Adam McKay já é o segundo filme mais assistido da Netflix
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Não olhe para cima! Nem para direita, nem para esquerda! Não saia da caverna! Permaneça olhando para baixo, para seu umbigo. Não veja a realidade e continue acreditando nas sombras. Uma fórmula antiplatônica quase perfeita para o desentendimento, o non-sense, a ignorância, a deturpação de ideias e suas consequências macabras para as sociedades contemporâneas.

Tendo essas constatações como mote, o diretor e roteirista americano Adam McKay nos envia um recado forte e duro com seu fantástico Não Olhe Pra Cima. Um filmaço que vem dando o que falar nas redes e nas conversas de bar, por ser uma sátira perfeita dos nossos tempos, um retrato fiel da nossa sociedade do espetáculo, cada vez mais espetacular. Uma sociedade que dá mais valor às notícias de casamentos/rompimentos de celebridades do que a notícias sobre o fim do mundo, ou sobre a descoberta de vacinas salvadoras… Uma sociedade que se alimenta de fake news e que é comandada por dirigentes extremistas sem nada na cabeça, assessorados por “técnicos” (ou parentes) mais vazios ainda. Fatores que, combinados, levam à polarização, ao negacionismo e à cegueira das sociedades, que vivem numa constante ameaça de guerra civil, com famílias se separando, amizades se desfazendo, empregos sendo perdidos, pessoas sendo “canceladas”. Um verdadeiro caos que precisa ser contido com urgência!

Em Não Olhe Pra Cima, acompanhamos a saga de dois astrônomos pesquisadores da Universidade do Michigan – a doutoranda Kate Dibiasky (Jennifer Laurence) e seu orientador, o Professor Randall Mindy (Leonardo Di Caprio) –, que após terem descoberto que um cometa gigantesco se encaminha em direção à Terra, tentam, sem êxito, informar às autoridades e à população sobre o iminente fim do mundo.

Nessa batalha pela verdade, os dois vão contar com o apoio do doutor Oglethorpe (Rob Morgan), mas vão esbarrar em uma série de obstáculos, passando por índices de rejeição/apr ovação da presidente da República Orlean (uma hilária Meryl Streep) que pretende se candidatar à reeleição, sem falar nos militares corruptos, como o que cobra 20 dólares por um lanche que é grátis, nos empresários gananciosos que já tendo conquistado todo o planeta Terra rumam agora à conquista do espaço, ou ainda a imprensa sensacionalista que faz de tudo para não perder audiência, desprezando assuntos relevantes caso esses não deem muito “Ibope”.

Uma comédia de equilíbrio perfeito, com textos inteligentes, em que nos reconhecemos o tempo todo, infelizmente. Um espelho do que estamos vivendo, levado, naturalmente, ao extremo, com o objetivo de nos alertar sobre o caminho equivocado e perigoso que nossa sociedade está tomando. Uma história divertida e, ao mesmo tempo, triste e profunda, que coloca a ciência sob holofotes, copiando a realidade que insiste em desmenti-la por meio de mirabolantes teorias da conspiração, saídas das cabeças de pseudofilósofos e teóricos de botequim. Sem querer, é claro, desmerecer as fascinantes conversas que acontecem em tantos botecos mundo afora…

Tudo em Não Olhe Pra Cima beira o artificial, (o céu, o avião voando, o espaço), o caricato, o excesso. Uma maneira de nos inserir desde o início no universo da ironia, do inverossímel, mas também de nos mergulhar no mundo fake em que estamos de fato metidos. Uma “realidade” em que as vidas acontecem mais nas redes sociais do que nas ruas e lares. Vidas paralelas, muitas vezes até opostas, que ganham dimensões absurdas quando “viralizadas”, sendo capazes de des truir sólidos caminhos percorridos, de eleger líderes grotescos ou de levar adolescentes ao desespero, muitas vezes a caminhos sem volta.

O filme de Adam McKay é assim um grito de alerta, um aviso importante para que paremos para refletir aonde é que tudo isso vai parar. Um filme que vem dividindo opiniões, mas que também bate diariamente recordes de “bilheteria” (hoje, os famosos views dos streamings). E o mais interessante de tudo é que Não Olhe Para Cima, além de contar com um elenco estelar (Cate Blanchett, Johnah Hill, Timothée Chamalet, Arianda Grande etc, fora os já citados), é uma obra nascida em Hollywood, berço por excelência de quase tudo o que é criticado ali no filme. Seria então uma autocrítica, uma mea culpa por parte dos deuses do olimpo cinematográfico? Ou trata-se apenas de mais uma maneira de desviar a atenção para essa indústria que se alimenta justamente das fake news, dos índices de audiência e das corrupções e politicagens do meio?


*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2022 (39ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

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