Le Monde: O Presidente, os militares e o astrólogo

Grandes Ministérios, serviços de saúde, pesquisa espacial… os militares ocupam posições estratégicas do país depois de eleger Jair Bolsonaro em 2018. Mas, desde então, o chefe de estado, sob a influência de um "Guru", se liberta de sua tutela.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Grandes Ministérios, serviços de saúde, pesquisa espacial… os militares ocupam posições estratégicas do país depois de eleger Jair Bolsonaro em 2018. Mas, desde então, o chefe de estado, sob a influência de um “Guru”, se liberta de sua tutela 

Bruno Meyerfeld – Rio de Janeiro (Brasil) ­ – correspondente
Tradução: Julia Otero

“Nós somos os cadetes do Brasil, com peito viril!”, gritam centenas de futuros oficiais brasileiros, metidos em seus uniformes “azulão”, azuis e brancos, com pluma vermelha. Neste sábado, 17 de agosto de 2019, é dia de festa na academia militar das Agulhas Negras: a cerimônia tradicional a cerimônia do sabre ocorre na presença do Chefe de Estado, Jair Bolsonaro.

No pátio do marechal Mascarenhas de Moraes (conhecido como o pátio “P3M”), no sopé dos picos da Serra da Mantiqueira, 170 quilômetros a noroeste do Rio de Janeiro, cada cadete recebe uma réplica da arma transportada, mais de um século atrás, pelo duque de Caxias, fundador e santo padroeiro do exército brasileiro. “Não há emoção ou honra maior como chefe das forças armadas do que presidir esta cerimônia, diz Bolsonaro na frente dos jovens que lhe dirigiam atenção. Como vocês, em 1974, eu também recebi minha espada neste P3M sagrado.”

“Muitos chefes de estado participam dessa cerimônia, mas, com Bolsonaro, naturalmente, estava tocante. Ele se formou a partir daqui e tem um relacionamento especial nesta escola. Nós o recebemos como amigo”, lembra o comandante Dutra, diretor da Academia das Agulhas Negras, uma grande academia brasileira de prestígio de 67 km2 que, desde 1944, forma a cada ano cerca de 400 oficiais.

OS MEMBROS DE UMA GRANDE FAMÍLIA
O presidente não veio sozinho. Na plataforma meia dúzia de seus ministros estão de pé: todos os militares, generais e capitães, todos os “antigos” das Agulhas Negras. Diante dos cadetes, o presidente lista seus nomes, exalta suas qualidades. Como se apresentasse membros de uma grande família, finalmente reunidos no topo do estado.
Desde o final da ditadura em 1985, nunca os militares estiveram presentes no meio do governo. Até o ponto em que a mídia do país hoje evocam uma “esplanada verde-oliva”, a cor das forças armadas para descrever o eixo monumental de Brasília, onde estão localizados o palácio presidencial do Planalto e os vários ministérios.

Além do capitão Bolsonaro e general Hamilton Mourão, vice-presidente, os militares chefiam vários departamentos: os da defesa, mineração e energia, infraestrutura, ciência e comunicação, controle geral de contas públicas (CGU). Eles também desempenham as funções de chefes de gabinete de segurança institucional (GSI, responsável pela segurança e
Inteligência) e Casa Civil, diretamente subordinada ao Presidente e aos que ganharam cargos em escritórios ministeriais.

O Exército, as forças armadas, também aumentou sua presença em todos os níveis de poder. Segundo relatos da imprensa, pelo menos 2.500 soldados estão servindo em escritórios ministeriais, como conselheiros ou secretários. O Ministério do Meio Ambiente, que empregava um soldado antes da chegada da extrema direita, em consideração hoje doze. Oficiais também foram nomeados para presidir várias agências públicas, como os Correios, serviços hospitalares ou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, responsável pelo monitoramento do desmatamento na Amazônia).

“A grande âncora do meu governo, são as forças armadas “, assumiu Jair Bolsonaro, cercado por policiais, durante discurso no Clube Naval de Brasília em dezembro de 2019. Nestes tempos de cortes no orçamento, o Ministério da Defesa é privilegiado: seus gastos aumentaram 10,9% em 2019. O exército é chamado em todas as circunstâncias: extinguir incêndios na Amazônia durante a operação de verão “Brasil Verde” em 2019; restaurar a ordem no estado do norte do Ceará, onde o crime explodiu em Fevereiro; apoiar funcionários da segurança social, oprimida pelo afluxo de casos no início do ano. E claro, hoje para combater a pandemia devido ao coronavírus.

“Estamos testemunhando a militarização do estado brasileiro”, diz um oficial preocupado, ex-funcionário, que exige anonimato e lembra que “começou antes de Bolsonaro”. Presidente Michel Temer (2016-2018) já havia baseado seu poder nas forças armadas confiando pela primeira vez a cadeira da defesa a um general e aumentou o orçamento para este ministério de 21%. No final de seu mandato, ele também ofereceu o comando de segurança no Rio de Janeiro aos militares.

FAZER UM “OBSTÁCULO AO SOCIALISMO”
Quem são esses soldados chamados à frente por Jair Bolsonaro, responsável, nos termos do Presidente, para “obstruir o socialismo”?
Entre os soldados, há todas as forças (terra, ar, mar), todas as fileiras (generais, tenentes, capitães, almirante etc.), todos os status (ativo, reservistas, aposentados), de todas as regiões (cariocas, paulistas, gaúchos do sul, mineiros do interior …): um verdadeiro “exército mexicano”.

Na realidade, o núcleo central é formado por alguns generais de quatro estrelas da terra, na casa dos sessenta e graduados da Agulhas Negras entre 1975 e 1978, como Jair Bolsonaro (turma 1977). Neste “quartél” muito selecionado, encontramos, entre outros, o vice-presidente Hamilton Mourão, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, o chefe da Casa Civil (equivalente ao primeiro Ministro) Walter Souza Braga Netto, e ainda Edson Leal Pujol, o discreto comandante-chefe das Forças Armadas.

“Esta é uma geração muito especial”, insiste Maud Chirio, historiadora e autora de A política uniformizada. A experiência brasileira, 1960-1980 (PUR, 2016). “Ela foi treinada na academia durante os períodos mais difíceis da ditadura para combater os “vermelhos”, travar a guerra contra o comunismo. Seus instrutores eram oficiais que tinham participado da repressão dos primeiros anos de chumbo e da tortura. Mas, saiu das Agulhas Negras e o país se democratizou. Não há mais guerra, mais ninguém para reprimir. Eles têm a sensação ter chegado atrasado para a reunião de história. De ter perdido a ‘“sua” grande guerra.

Frustrados, esses oficiais foram buscar a glória longe do Brasil. No Haiti, precisamente. O Brasil enviou para lá, de 2004 a 2017, a Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (Minustah), da qual participaram 35.000 soldados. “Esses oficiais que foram para o exterior se consideram uma elite, pacificadores, muito superiores aos “políticos” corruptos e ineficazes. Então quando o Brasil afundou na crise, alguns se perguntam: “Se eu ajudei o Haiti, por que não o país? “, analisa Christoph Harig, pesquisador na Universidade Helmut-Schmidt, em Hamburgo. De fato, cinco dos onze comandantes da “turma” do Haiti ocupam – ou têm ocupado – uma função dentro do poder bolsonarista.

Por que esses generais orgulhosos se juntaram ao “pequeno” capitão Bolsonaro? De fato, este último tem sido desprezado por seus superiores. Atribuído a várias posições de artilharia, depois de paraquedista do Rio, ele teve uma carreira medíocre. O cadete 531 tornou-se capitão, apelidado de Cavalão por seus colegas, melhor ilustrado por sua atuação em pentatlo ou mergulho (3’42 ” em apnéia) do que por seu gênio militar.

“ENCARNAÇÃO DO MAU EXEMPLO”
Em setembro de 1986, ele se tornou “a personificação do mau exemplo”, lembra um oficial. Frustrado com a democratização e a perda de privilégios militares, o capitão quebra o protocolo para publicar uma carta aberta na revista Veja. Sob o título “Os salários são (ou estão) baixos” e uma foto em que posa, com uma boina vermelha e um olhar severo, ele protesta contra a diminuição dos salários, provocando a fúria dos generais. O “amotinado” é punido com uma sanção disciplinar de quinze dias de prisão.

A ruptura é consumida um ano depois. Veja, sempre, afirma, em outubro de 1987, que Bolsonaro seria o co-autor de um plano chamado “Beco sem saída”, que planejava detonar bombas em vários quartéis e academias. O requerente nega isso, mas é condenado por um tribunal militar. Absolvido um ano depois, ele deixa o ativo para a reserva, evitando a desonra da exclusão.

“Seu caminho é a política”, aconselha um coronel, que acerta na mosca. Eleito vereador em 1988, então deputado federal pelo Rio de Janeiro em 1990, o “capitão bomba” se destaca como a voz do militar do “baixo clero”: tropas, sargentos e corporais. Ele ganhou popularidade no quartel, mas sofreu aborrecimento e humilhação por parte dos oficiais. Durante anos, ele foi banido de academias, quartéis e até áreas reservadas para oficiais. “Os generais nunca amaram meu pai”, um de seus filhos, Carlos, repete regularmente.

Sua reconciliação com a equipe teve que esperar até 2011 pela criação, sob a presidência Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores, PT, esquerda), da Comissão Nacional da Verdade encarregada de investigar os crimes da ditadura. “Para nós, foi uma ruptura, um golpe sério e simbólico. Esta comissão era como uma caça às bruxas, uma “Bolivarização” de exércitos. Destruiu nosso relacionamento com o PT “, lembra o general Sergio Westphalen Etchegoyen, 68, um forte gaúcho do sul e ex-chefe de gabinete do exército. “Então sim, quando tocamos na essência da nossa profissão, nós reagimos”, continua ele.

Bolsonaro, sentindo subir a raiva dos quatro estrelas, se comporta como o líder do grupo da anti-comissão. Multiplicando por dezenas suas intervenções sobre o assunto, ele evoca o “Vinte anos de glória” da ditadura, sob aquela em que o povo “aproveitou ao máximo de liberdade e de direitos humanos “, e não hesita em prestar homenagem ao “herói nacional” da época, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais torturadores do regime.

Em sua ascensão política, o capitão recebe apoio discreto de oficiais de alta patente, mas também do Clube Militar do Rio – uma associação muito conservadora de oficiais. O general Eduardo Villas Bôas, comandante chefe do exército, se opõe, no Twitter, em abril de 2018, para uma possível liberação do ex-chefe de Estado Lula, então encarcerado e principal candidato de Bolsonaro à eleição eleição presidencial seguinte: uma incursão sem precedentes na política por um cargo tão alto, de renome por sua moderação.

CONCILIAÇÃO COM AS ALTAS CLASSES
“Os grandes generais do Haiti viram em [Bolsonaro] uma oportunidade de expulsar o PT do poder e salvaguardar seus interesses “, disse um oficial ativo, um conhecedor da elite militar. Nesta grande conciliação, um homem desempenha um papel essencial: General Augusto Heleno, agora um braço O chefe de gabinete de segurança institucional de direita e influente de Bolsonaro, responsável por coordenar as atividades da inteligência. Tem 72 anos, homem de cabelos brancos perfeitamente penteado é uma lenda do exército brasileiro. Esportista emérito, o mais destacado em três escolas emblemáticas do exército, esse general também foi o primeiro comandante da missão da ONU no Haiti. Mais velho e mais radical do que seus colegas no governo, partidário da linha dura repressiva da ditadura jamais escondeu suas convicções de extrema direita. Seu encontro com Bolsonaro remonta à década de 1970, Nas Agulhas Negras, onde ele era um instrutor. Todos os dois “bocas grandes” (falastrões, exibidos, que gostam de ostentar), esportistas e anticomunistas se dão maravilhosamente bem e mantêm um forte vínculo.

O general Heleno é um dos primeiros a quem Bolsonaro confia seus sonhos de ascensão ao poder em um almoço em 2016. “Você acha que eu sou louco?” Ele perguntou ao general, diante de um prato de camarão. Muito pelo contrário: o quatro estrelas se torna seu principal apoio. E montou um “comando” de três generais para apoiá-lo em sua campanha. “A ideia, era estar com pessoas em quem você confia”, disse o general Aléssio Ribeiro Souto, 71, ativista de uma escola “anti-socialista” e membro do “comando” que, toda quarta-feira, a partir de janeiro de 2018, reúne-se no piso de um triplex no norte de Brasília. “Foi muito informal. Conversamos até o meio dia, fizemos apresentações ao candidato sobre assuntos de infraestrutura, educação, desenvolvimento, às vezes economia”, lembra ele.

Em outubro de 2018, quando Bolsonaro saiu vitorioso da eleição, os generais escolhem os melhores cargos (em francês é utilizada a expressão “cortar, escolher, dividir a parte do leão”- se taille la part du lion – que significa pegar, escolher o maior, o melhor de alguma coisa), coloca seus homens, impõe sua cadência. Reunindo nacionalistas e preocupados com a imagem do país, os militares também trabalharam para moderar seu presidente, aconselhado, por exemplo, a desistir de intervir militarmente na Venezuela, ou para receber uma base militar norte-americana em solo brasileiro.

Eles, no entanto, vão encontrar um forte oponente na pessoa de Olavo de Carvalho. Este ex-astrólogo de 72 anos que vive nos Estados Unidos, que acredita que a Terra é plana e considera os cigarros bons para a saúde, é o mentor da ala ideológica do Governo Bolsonaro, representado, entre outros, pelos filhos do presidente e pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. E ele vomita nos militares.

Entre os “Olivas” e os “Olavistas”, a guerra é declarada. Em 2019, no Twitter, o guru zomba o vice-presidente geral Mourão dos “cabelos tingidos e uma voz hipócrita “, da “mentalidade golpista” e da “vaidade monstruosa”. Os oficiais não se privam de responder contra isso “Trotsky da direita”. “Os olavistas são um grupo fanático que pensam apenas em criar tumulto: o oposto do pragmatismo militar. São inúteis, fantoches”, pragueja Paulo Chagas, general de 70 anos com um elegante bigode, francófilo e louco por cavalaria (ele passou pela escola Saumur), que apoia o presidente.

Bolsonaro vence sua culpa, recusando-se a arbitrar, mas acaba se irritando com a supervisão dos generais. Até o confronto na primavera de 2019: General Carlos Alberto dos Santos Cruz, então poderoso Secretário Nacional de Segurança Pública atraiu a ira de Olavo Carvalho, que o chamou de “merda” e “estrume sugado”. Sob o fogo de uma intensa campanha de difamação online lançada pelos filhos do presidente, e libertado por Jair Bolsonaro, o general deixa o governo.

O evento correu mal entre os “Olive”, porque Santos Cruz não é um qualquer um. Ele comandou a Minustah do Haiti, mas também a missão da ONU no Congo (Monusco), 23.000 soldados da paz, onde ele perdeu a vida. Depois de sua partida, outros seis soldados renunciaram ao governo ou foram demitidos, como os generais Franklimberg de Freitas, presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Maynard Marques de Santa Rosa, da Secretaria de Assuntos Estratégicos.

NEGAÇÃO DA GRAVIDADE DO CORONAVÍRUS
O medo mudou de lado e a hierarquia se inverteu. Bolsonaro, presidente e chefe das forças armadas, “não aceitava mais ser um capitão no meio de generais”, explica a jornalista Thais Oyama em seu livro Tormenta (“Tempête”, Companhia das Letras, 2020, não traduzido), escrito no ano de 2019 sobre o poder brasileiro. Contrário às Forças Armadas, ele, por exemplo, aprovou o assassinato, pelo exército General Iraniano Ghassem Soleimani e apoiou o plano de paz para o conflito israelense-palestino de Donald Trump, e continua a negar a gravidade do coronavírus. “Esses policiais esperavam subjugar Bolsonaro e eles falharam. Ele escapa deles. Ele mostrou a eles que não era seu subordinado e que até o mais brilhante dos generais brasileiros pode ser demitido “, acrescenta João Roberto Martins Filho, especialista em exército.

Desde então, os militares obtiveram novas posições do governo como a Casa Civil, em fevereiro, e Bolsonaro permanece muito popular entre a base da instituição. Mas na elite, algo quebrou. “Entre amigos em geral, achamos que ele deveria se controlar, morder a língua antes de falar “, diz o general Paulo Chagas. “Bolsonaro não é soldado há muito tempo. Ele passou dois terços da sua vida na política. É isso o que ele procura, é o poder “, diz seu “camarada” de quatro estrelas, Sergio Etchegoyen.

As forças Armadas poderiam deixar Bolsonaro? Existe, para elas, uma “linha vermelha”? “Os militares começaram a voltar ao poder antes de Bolsonaro. Eles não fizeram tudo isso para sair rapidamente. Se Bolsonaro for longe demais, é ele quem terá que sair”, acredita um oficial, ex-funcionário da presidência, contra a politização do exército. “Pode afetar nosso relacionamento com a população. Perderemos nossa credibilidade, nossa imparcialidade, seremos responsáveis ​​pelo desastre deste governo. A política, não é o nosso terreno”.


O exército brasileiro, do positivismo ao anticomunismo paranóico

Para proteger seus 16.800 km de fronteiras e equipar seus 360.000 soldados, o “gigante” brasileiro gasta apenas 1,5% do seu PIB em defesa – contra 2,1% em média a nível mundial. E, no entanto, por mais de um século que os militares dão o ritmo no país. “Os militares sempre quiseram se intrometer na política e governar. Após a ditadura, sua presença na vida pública foi somente mais discreta ”, destaca João Roberto Martins Filho, especialista militar e professor da Universidade Federal de São Carlos.

Em 15 de novembro de 1889, foram elas quem derrubaram um império sem fôlego e proclamaram a república, dando no país seu primeiro presidente, marechal Deodoro da Fonseca. O brasil foi presidido por dez presidentes do exército, durante trinta e sete anos – mais de um quarto de sua história moderna. O capitão Jair Bolsonaro é qualquer coisa menos uma exceção.

No final do século XIX , o Exército brasileiro é progressista, influenciado pela França e pela filosofia positivista de Auguste Comte. No poder, decreta a separação entre a igreja e o estado, cria o primeiro ministério da educação e proclama o novo lema nacional Ordem e Progresso.

Coluna “vermelha”
O quartel altamente politizado é o cenário de debates fervorosos e revoltas incessantes, muitas vezes para exigir melhores salários. E às vezes em nome de ideais esquerdistas, como, na década de 1920, o movimento Tenentista, liderado pelo capitão Luís Carlos Prestes, o “cavaleiro da esperança”, segundo o escritor brasileiro Jorge Amado.

Na cabeça de uma coluna “vermelha” de centenas de soldados amotinados, ele viaja mais de 25.000 quilômetros durante de uma “longa caminhada” através do Brasil, de 1925 a 1927, tentando elevar a população em seu caminho.

Ele levará décadas para profissionalizar essa turbulento tropa. Nesse sentido, a missão militar francesa no Brasil, liderada pelo general Gamelin, no final da Primeira Guerra Mundial, foi decisiva: disciplina reforçada, centralização do comando, treinamento de ponta, desenvolvimento de indústrias essenciais de armamento … “a nova concepção de defesa abrangeu todos os aspectos relevantes da vida nacional”, sublinha o historiador José Murilo de Carvalho em sua obra de referência Forças Armadas e Política no Brasil (Todavia, 2019, não traduzido). A consagração chega durante a segunda guerra mundial. Mais de 25.000 pracinhas são enviados para o front ao lado dos aliados e obter muitas vitórias notáveis nos Apeninos italianos contra Alemanha nazista.

Um episódio fundador
Ideologicamente, positivismo e ideais socialistas foram, depois de muito tempo, abandonados. Ao contrário, segundo Martins Filho, “as forças armadas são marcadas por um anticomunismo paranóico” cujo episódio fundador é a Intentona de 1935. Neste ano, um punhado de militares, principalmente relacionados ao movimento comunista, fomentou um golpe. Dominado rapidamente, este constituirá, no entanto, um trauma que inaugura “a associação de comunismo com o mal, representado como uma doença”, diz o historiador Celso Castro em A Invenção do Exército brasileiro (Zahar, 2002, não traduzido). Uma quinta coluna, espreitando nas sombras.

Foi essa “paranóia” que levou militares, escaldados pelo precedente castrista em 1959 em Cuba e com o apoio de Washington, para liderar, em 1964, outro golpe. O presidente de esquerda João Goulart, eleito democraticamente três anos antes, foi derrubado. Os generais, que desejavam o poder mais que tudo, manteve as rédeas do estado por vinte e um anos – a mais longa ditadura militar no subcontinente. A repressão fez oficialmente 434 mortos, em comparação com uma estimativa de 30.000 na Argentina e 3.000 no Chile. O que fez Jair Bolsonaro declarar em 2016 que o erro da ditadura brasileira tinha sido apenas “torturar e não matar”.

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