Janio de Freitas: No país que nunca chega lá

Não se vê bom senso que preveja resultados não assustadores para o próximo ano
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil

Não se vê bom senso que preveja resultados não assustadores para o próximo ano

Janio de Freitas / Folha de S. Paulo

Piores notícias sobre o custo de vida e as condições da economia fortalecem, a cada dia, o contraste entre a urgência social de impulsos reais para a retomada e a inabilitação embromatória de Paulo Guedes. Nos últimos dias, sucederam-se as seguintes constatações, carentes da divulgação com a visibilidade necessária:

— A produção industrial caiu, em outubro, pelo quarto mês consecutivo. Já em pleno período de atividade para abastecer o comércio natalino. Queda de produção tem reflexo direto em desemprego, redução de salários em eventuais contratações e queda de arrecadação federal e local;

— 70% dos trabalhadores recebem, hoje, menos do que recebiam antes da pandemia, em 2019. E esses dados nem estão com atualização precisa. O economista Daniel Duque fez o estudo, na Fundação Getulio Vargas, com dados até junho. Mas nos quatro meses desde então, os componentes da pesquisa só a fariam mais ácida. A favor de Bolsonaro e Paulo Guedes, a pesquisa teve a correção de registrar ganhos, também: nos 30% que tiveram ganho ou, ao menos, nada perderam, os 10% mais abonados ganharam 8% limpinhos.

— Os preços dos alimentos consumidos pelas camadas mais pobres aumentaram 20% nos últimos 12 meses e agressivos 40% durante a pandemia;

Sobre esse chão esburacado, e em apenas dois dias da semana passada, Bolsonaro soltou R$ 909 milhões de verbas para aplicação por parlamentares. Foi seu modo de aprovar na Câmara o tal “projeto dos precatórios” (dívidas oficiais com pagamento programado). Essa autorização de elevados gastos efetivaria também o remendo social, e sobretudo eleitoral, chamado Auxílio Brasil, substituto do bem-sucedido Bolsa Família. Nada mais incerto, porém.

Quase um bilhão deram a Bolsonaro apenas quatro votos acima do mínimo. Compra descarada, chantagem e corrupção enlaçadas, com deputados do PDT (de Ciro Gomes), do PSDB (de João Doria e Eduardo Leite) e do PSD (de Rodrigo Pacheco) invertendo sua oposição ao projeto. O quase bilhão cobre a segunda votação na Câmara e as duas no Senado.

Mesmo que obtenha as três aprovações, o rumo e o ritmo da degradação econômica prometem esvaziar o Auxílio em pouco tempo. O governo não terá meios financeiros nem políticos para mais bilhões de novo e apressado remendo. O escândalo da compra-e-venda, por seu lado, eclodiu também nos partidos e mexeu até com o rascunho de pré-candidaturas à eleição presidencial, acentuando a dificuldade já da próxima votação. Esvaziado e não recomposto o Auxílio, a realidade das diferenças socioeconômicas não se contentará com os tons de cinza tão atuais.

E surge, ainda, um problema benfazejo, na palavra incisiva de alta decisão judicial. Ao determinar a suspensão do sigilo e de liberações das chamadas emendas parlamentares —corrupção usual no pós-ditadura—, a ministra Rosa Weber feriu uma das imoralidades, senão a maior, que condenam o país a nunca chegar lá, quando se pretende uma solução necessária e correta, seja em que questão for.

Devida ao PSOL, a ação ainda irá ao plenário do Supremo, mas a grandiosa liminar de Rosa Weber abre um processo corretivo fundamental para hoje e o amanhã. Com ou sem apoio do plenário, o Supremo já pôs no cadafalso o truque ordinário das emendas corruptoras.

Se aprovado, o Auxílio não sustentará nem a situação grave deste momento. Tal como sua derrota não encontrará na perplexidade fantasiosa de Paulo Guedes, com “a venda da Petrobras” e “um trilhão em venda de imóveis da União”, alguma inteligência contra a derrocada socioeconômica e seus fins imprevisíveis. Por isso não se vê bom senso que preveja resultados toleráveis para este ano e não assustadores para o próximo.

Até o Banco Central reduz as estimulantes previsões que emite. Não é preciso dizer mais. Exceto sobre a miséria que se alastra, a fome, a nova onda assassina contra os indígenas. E sobre o sugestivo prestígio das milícias do Sudeste que se implantam na exploração clandestina da Amazônia. Como Bolsonaro e a cúpula da Polícia Federal sabem.

Leia livre

As infiltrações, as traições e as delações fatais são um problema complexo, com nuances a cada caso, para o qual as experiências revolucionárias de século e meio não encontraram solução, apesar de todas suporem tê-la. Lucas Ferraz, um dos grandes repórteres brasileiros, dedicou-se ao tema por seis anos. E agora sai “Injustiçados” (Cia. das Letras): importante como relato histórico, incitante pela exposição de casos problemáticos na luta armada brasileira durante a ditadura, e de objetividade jornalística admirável —não faz nem discute teoria; conta erros que houve, acertos que faltaram, a força do medo. O leitor conhecerá e viverá o problema do perdão e do “justiçamento”.

Lucas Ferraz integrou o melhor time de repórteres tido pela Folha. Hoje vive na Itália.

Fonte: Folha de S. Paulo

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