Ivan Alves Filho: Uma cidade chamada Colônia

Era a época do ditador Garrastazu Médici e as notícias que chegavam até nós eram as piores possíveis
Foto: Divulgação
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Ivan Alves Filho

Cheguei à Alemanha, mais precisamente à cidade de Colônia, em 1973, onde fui acolhido por Samuel Yavelberg, uma das melhores figuras que conheci na vida e valoroso opositor à ditadura militar que ensanguentava, então, o Brasil. Samuca era irmão de Yara Yavelberg, a companheira de Carlos Lamarca.

Fiquei em sua casa quase um ano, enquanto trabalhava, em Colônia e arredores, nos mais diversos tipos de emprego (operário em uma gráfica, lavador de pratos, professor de português). O trabalho em fábrica era particularmente extenuante, senão massacrante: eu entrava ali às seis da tarde e só saía às seis da manhã do dia seguinte. Éramos cerca de 600 operários, trabalhando naquela gráfica, manipulando esteiras que lembravam aquela famosa cena de Charles Chaplin em Os tempos modernos. Enlouquecedor. A socialdemocracia vista do chão das fábricas era para lá de complicada. Os operários eram todos estrangeiros, os chamados gastarbeiter ou trabalhadores convidados. O chefe do serviço era um alemão e o subchefe holandês. Era assim que a banda tocava.

Mais tarde, o saudoso Oswaldo Peralva, ex-representante do Partido Comunista Brasileiro no Cominform, que sucedeu, a partir de 1947, à Internacional Comunista formada por Lênin e seus companheiros, em 1919, me repassou seu apartamento e lá permaneci por alguns meses, até ir para a França. Isso se deu, creio, no início de 1974 (a nossa memória, às vezes, falha). O apartamento era uma encantadora água-furtada e também fui muito feliz ali. 

No eixo Colônia-Bonn havia um número razoável de brasileiros. Todos bons de papo e com uma bonita história de vida. Além do Samuel e do Peralva, desejaria recordar figuras como Leandro Konder, Aparício, Arthur Poerner, Clemens, Ida, Paulão, Wambier, Júlio Medaglia, Marschner, este último correspondente do jornal O Estado de São Paulo, o Estadão. Quase todos havíamos sido tocados do Brasil pela ditadura militar. Eu mesmo vinha de uma passagem traumática pelo DOI-Codi, no Rio de Janeiro. 

Era a época do ditador Garrastazu Médici e as notícias que chegavam até nós eram as piores possíveis: torturas, desaparecimentos de pessoas, repressão generalizada aos trabalhadores, à intelectualidade e aos artistas. Ásperos tempos aqueles. Nós procurávamos nos organizar para denunciar aqueles crimes todos. Dávamos entrevistas à televisão alemã, mantínhamos contato com a Anistia Internacional, participávamos de encontros com os companheiros do Partido Comunista Português e do MPLA de Angola.

Eu me recordo, em particular, do querido amigo Alberto Passos, fundador do MPLA e que estivera preso com Agostinho Neto, por volta de 1960, e que depois assumiria responsabilidades governamentais importantes em Angola independente. Samuel e eu tivemos, inclusive, a honra de almoçar com o Alberto, em Lisboa, no próprio dia em que o Brasil reconheceu a Independência angolana: Alberto fora o representante de Angola nas negociações com o embaixador do Brasil lotado em Portugal.  Exatamente naquele dia, as duas ex-colônias portuguesas colocavam um ponto final no colonialismo. Um momento histórico. Emociona ainda hoje. 

 Eu estudava alemão na Universidade, para melhor me integrar à vida local. Idioma um tanto quanto difícil para nós – as declinações, em particular, embolavam um pouco o nosso aprendizado -, o alemão nos impressionava sobretudo por sua precisão. Aliás, praticamente toda a Alemanha se pautava pela organização quase perfeita de sua vida social. Colônia, em particular, era uma cidade limpíssima, concebida em escala humana, com as ruas apinhadas de pedestres. O espaço para os automóveis era muito pequeno, devido à excelente qualidade do transporte público, assegurado por bondes, e aos seus calçadões.

Eu tinha, então, uma necessidade tremenda de entender a Alemanha e a aventura hitlerista. Como um povo tão culto se deixara arrastar para a aventura nazista?  Como um país economicamente desenvolvido entrara naquela esparrela? Como? Eu frequentava a fantástica Cinemateca de Colônia, onde assistia aos documentários do período hitlerista, tentando entender aquilo. Anos depois, eu chegaria a uma conclusão: o nazismo era uma doença, um movimento construído em torno de um agrupamento de milicianos, e seus principais dirigentes estavam envolvidos com o crime organizado. A lógica do nós contra eles predominava, revelando que a exclusão e o extermínio estavam no comando e não a negociação, algo próprio da política. Só marginais enveredavam pela lógica da destruição.

O regime nazista se alicerçava no grande capital e na chamada escória da sociedade, o lumpesinato, para nos valermos de uma expressão de Karl Marx. O terror imperava. Mas não era muito fácil explicar o que acontecera na Alemanha entre os anos 20 e 40. Estava mais para Freud, talvez. Tenho, contudo, uma certeza: o nazismo só prosperou porque as instituições desmoronaram, uma a uma, durante a chamada República de Weimar, que antecedeu à subida de Hitler e seu bando ao poder. Na também culta e desenvolvida Inglaterra, o nazismo não se criou: as instituições liberais-democráticas funcionaram a contento, seguraram a onda, como se diz. Claro, a corrupção fez o resto: ela sempre é uma ameaça à Democracia. Que isto sirva de lição a todos nós, brasileiros.

Pretendo finalizar esta pequena nota, lembrando que Colônia era a cidade onde Karl Marx fizera sua iniciação política, praticamente, dirigindo o jornal A Gazeta Renana. O grande revolucionário e filósofo viveria ali, em 1848 e 1849, período em que redigiria, com seu companheiro Friedrich Engels, o Manifesto do Partido Comunista.  

Decididamente, ninguém passa impunemente por Colônia.

*Ivan Alves Filho é jornalista, historiador, autor de várias e importantes obras, das quais a última é Os nove de 1922

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