Hamilton Garcia: Democracia, idiotia e facciosismo

Na medicina, a idiotia é descrita como "atraso mental e/ou intelectual caracterizados pela ausência de linguagem”. Por sua vez, a idiotice é comumente definida como o contrário da perspicácia e da inteligência.
Foto: Facebook
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Na medicina, a idiotia é descrita como “atraso mental e/ou intelectual caracterizados pela ausência de linguagem”. Por sua vez, a idiotice é comumente definida como o contrário da perspicácia e da inteligência. Entre ambas as definições existe um leque de arranjos e combinações à disposição da criatividade. É certo, porém, que a contínua revolução das comunicações – da impressa à falada – e da educação escolar foram desenvolvendo um novo idiota: não só apto à linguagem, como possuidor de certa inteligência.

O problema reside justamente no paradoxo: a linguagem e a comunicação encerram, desde seu nascedouro, o desafio do entendimento que, conforme evoluímos, vai se tornando cada vez mais difícil para todos, o que pode nos levar a sérios mal-entendidos. Assim, a idiotice, numa sociedade cada vez mais complexa, informada e democrática, onde todos são instados a se posicionar sobre tudo e todos em tempo real o problema do tempo não deve ser subestimado –, é o fantasma que nos assombra.

No que tange à idiotia política, no caso brasileiro, as coisas ficam sensivelmente piores em meio ao baixo nível da educação formal, o mesmo acontecendo com a idiotice quanto ao mérito funcional da escolarização. Em ambos os casos, as péssimas instituições republicanas que nos governam e deseducam – sobretudo os partidos políticos – nos levam a um desarranjo ainda pior. Caberia ao partido político um papel de antídoto, pelo menos à idiotice, que entre nós é quase desconhecido, selecionando os quadros que irão constituir os vários níveis da elite política dirigente (legislativa e executiva) do Estado.

Fora os partidos de esquerda radical – que, mesmo assim, caíram na idiotice pelo dogma – ou moderada, todos os outros tem graus variados de anomia institucional onde pululam regras discricionárias em benefício de oligarquias (fechadas ou semifechadas) que não toleram o debate de ideias, ignoram o desenvolvimento pessoal e cultivam o desprezo pelo pensamento sistemático (filosófico ou científico); o que também afeta, de alguma maneira, a direita radical e seu (re)aparecimento tardio (olavismo e bolsonarismo) em ruptura com a tradição integralista (Plínio Salgado) e com a crítica ao espírito de clã (Oliveira Vianna) – tão cara ao positivismo militar.

Em tais condições, os quadros políticos são formados fora do sistema político (stricto sensu), o que afeta tanto sua quantidade quanto sua qualidade. Quanto ao primeiro aspecto, não porque sejam poucos os formados no campo associativo, mas porque são poucos aqueles que se dispõem a transitar para a esfera mais complexa e incerta do Estado (poder político). Quanto ao segundo, a formação associativa (corporativa ou particular-expandida) é insuficiente para habilitar o engajado à esfera da política (geral-superior).

No caso da esquerda, tal problema é contornado pelo fato de a esfera corporativa ser intensamente habitada pela partidária, de modo que o militante (sindical, estudantil ou social) já recebe treinamento partidário em paralelo ao seu próprio – como se pode notar no número de políticos provenientes do movimento estudantil, sindical e identitário.

Não é por outro motivo que liberais e conservadores vêm lançando mão de institutos próprios de formação de quadros políticos, alguns deles se posicionando em leque variado de partidos – como fazem os evangélicos. Neste segmento, situado à extrema-direita, o olavismo se coloca como movimento vocacionado para a formação de um bloco histórico de poder em combate aberto com o campo progressista, como outrora, em forma e direção radicalmente diversos, o catolicismo de esquerda (teologia da libertação) pretendeu, na época de ouro do petismo, sem êxito.

O olavismo, em especial, vem sendo associado à idiotice reinante no debate político do país, embora não se possa, quanto ao método, acusá-lo de pioneirismo: a histeria e, pior, a violência verbal – muitas vezes disfarçada de “performance” –, dois aspectos constitutivos da idiotice reinante, foram usadas e abusadas pelo campo progressista muito antes, na época em que “bolsonarismo” não passava de um xingamento assacado contra qualquer crítico do PT depois do Mensalão. A imensa avenida pavimentada pelos petistas – aberta em priscas eras pelos stalinistas – encontra-se hoje tomada por bolsomínions (e seus antípodas siameses) inspirados ou formados pelo “Professor Olavo”.

A fonte histórica deste aprendizado da “política de massas”, de onde se origina a explosão participativa  que veio a redimensionar o fenômeno em tela, foi o jacobinismo (francês) do séc. XVIII e o movimento operário (inglês) do XIX, otimistamente percebidos por Marx e Engels como rudeza do aprendizado. É dessa fonte, mais particularmente de Lênin, que Olavo de Carvalho pretende derivar seu método de ação, a partir de sua experiência no PCB dos anos 1970, onde conheceu tais autores.

Lênin, na Russia dos anos 1910, em meio a uma sociedade esmagadoramente camponesa, impactada pelo capitalismo europeu, entrou em rota de colisão com a ortodoxia marxista da II Internacional, de base urbana e sindical, passando a valorizar o protagonismo das massas camponesas exploradas, sob a liderança do operariado, inaugurando uma inédita aliança operário-camponesa-estudantil que derrubaria o regime liberal que sucedera o czarismo e abriria caminho para o socialismo (comunismo de guerra, 1918-1920).

O uso de métodos autoritários e heterodoxos, por parte dos leninistas, para impulsionar tal projeto revolucionário, rendeu à Lênin críticas, tanto à direita (K.Kautsky) como à esquerda (R.Luxemburgo) da social-democracia, em relação ao abandono da perspectiva democrática do movimento operário. Os desdobramentos da vitoriosa Revolução Bolchevique (1917) e sua consolidação pós-Lênin (stalinismo), não deixaram dúvidas quanto ao acerto de tais críticas.

Foi este aspecto da eficiência da técnica do atraso, como nos mostra Thaís Oyama[i], que fascinou Olavo de Carvalho e o fez sustentar seu método na guerra político-cultural contra a esquerda. Argumentando que os adversários ascenderam se valendo da manipulação e da desonestidade intelectual, concluía ele que seria justo que a direita recorresse aos mesmos métodos para derrotá-los.

Daí os ataques abaixo da linha da cintura e as investidas destinadas a desmoralizar os adversários preconizados por ele – que também caracterizaram o terror stalinista na URSS, tendo sido copiado e refinado pelo nacional-socialismo alemão: “Não puxem discussão de ideias”, dizia Carvalho em dezembro de 2018, “investigue alguma sacanagem do sujeito e destrua-o. Essa é a norma de Lênin: nós não discutimos para provar que o adversário está errado. Discutimos para destruí-lo socialmente, psicologicamente, economicamente”[ii].

A batalha cultural do professor de filosofia on-line vem gerando um número surpreendente de militantes fanatizados (idiotas), é verdade – embora não exclusivamente. Mas, isto não se deve ao método, tomado isoladamente. Hoje, como outrora, os riscos derivam do encontro desses métodos com sistemas de dominação em crise, fato que vem sendo sistematicamente negligenciado por setores democráticos do conservadorismo, liberalismo e socialismo, deixando o tema da crítica e das reformas (quase) exclusivamente aos cuidados dos adeptos do método-totalitário.

Persistir em, simplesmente, apontar o dedo contra os agentes idiotizantes ou os próprios idiotas, sem buscar cessar o fomento proporcionado pelo quadro geral onde a idiotia medra – vale dizer, no caso brasileiro, elites despreparadas, instituições (historicamente) carentes de legitimidade, baixa eficiência e altíssimo custo , não deve nos levar a porto seguro.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])

São João da Barra, 09/03/20.

[i] Tormenta – o governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, ed. Companhia das Lestras, sd, p.198.

[ii] Apud Oyama Idem, p.199.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.

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