Hamilton Garcia: Clientelismo, Cargos e voto – a erosão oligárquica da democracia

Em artigo de setembro do ano passado (Os candidatos e suas estratégias para superação da crise política), eu dizia: "Até que ponto e em qual momento a ingovernabilidade sistêmica, contratada pela ausência de reforma político-eleitoral, vai se apresentar ao candidato vitorioso, não é possível determinar, mas é certo que o fará em algum momento (…); naturalmente, a depender do grau de resistência que seu programa encontre na sociedade e no Estado”.
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Em artigo de setembro do ano passado (Os candidatos e suas estratégias para superação da crise política), eu dizia: “Até que ponto e em qual momento a ingovernabilidade sistêmica, contratada pela ausência de reforma político-eleitoral, vai se apresentar ao candidato vitorioso, não é possível determinar, mas é certo que o fará em algum momento (…); naturalmente, a depender do grau de resistência que seu programa encontre na sociedade e no Estado”.

O problema da disfunção eleitoral do nosso sistema político foi discutido em outro artigo (Accountability e Reforma Política), onde argumento que o sistema proporcional de lista aberta agrava e amplifica a dificuldade histórica em instituir um governo representativo. Em perspectiva diversa, a escola institucional-formalista[i] desloca a tensão para o plano das escolhas políticas, considerando que o sistema eleitoral atual “gera incentivos para o multipartidarismo” diminuindo as chances “de o partido do presidente alcançar sozinho a maioria (…) do Congresso”. Sendo assim, a escolha mais eficiente seria a de “montar e gerenciar coalizões pós-eleitorais” ofertando “recursos políticos e financeiros (…) (aos) potenciais parceiros em troca de apoio político”, processo que, em tese, requereria “negociação, não necessariamente corrupção”.

Que tal tese se tornou marginal em face do desenvolvimento mais recente de nossa tradição política, frente aos problemas estruturais conhecidos, e da puerilidade do quadro partidário, avesso ao etos programático das poliarquias estáveis, restam poucas dúvidas.

Por isso mesmo, a descrição dinâmica do modelo, de que lançam mão os formalistas, aparece sob a forma fotográfica ideal da Nova República sob FHC, como se as “escolhas do presidente” hoje estivessem postas nos mesmos termos dos anos 1995-1998, quando a crise de representatividade estava em seu início e sua solução aparentava estar no eixo paulistano do PSDB-PT: “Coalizões com um menor número de parceiros (…) ideologicamente homogêneos”, compartilhando “poder e recursos de forma proporcional com os aliados”, que espelhem “a preferência mediana do Legislativo”, produziriam “um governo de coalizão eficiente, com uma taxa de sucesso legislativo muito alta e um custo de governabilidade muito baixo”.

Como as preferências medianas do Legislativo, todavia, sofreram sensível agravamento depois de 13 anos de governos petistas e do aprofundamento da fragmentação partidária – dos 20 partidos com representação congressual em 1998 (FHC), passamos a 30 em 2018 (Bolsonaro) –, depois que o STF, em 2006, considerou inconstitucional qualquer restrição ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda dos partidos, é crível que os resultados da “melhor escolha”, garantidos pelo modelo, podem não ser mais satisfatórios.

O problema dessa abordagem é, precisamente, seu déficit de concretude, que permite ao analista não só desconsiderar os elementos sincrônicos da complexidade histórico-estrutural, como os diacrônicos do seu contínuo desenvolvimento, tornando, assim, sua análise pouco efetiva. Como frisava Montesquieu (1689-1755)[ii], as leis políticas (e da política) são forjadas em meio ao “gênero de vida dos povos”, vale dizer, suas relações econômicas, espirituais e costumeiras, que ele considerava o “espírito das leis” – que “consiste nas diversas relações que as leis podem ter com diversas coisas”.

Portanto, a aproximação com a realidade exige a agregação, aos modelos explicativos do funcionamento do “presidencialismo de coalizão”, dos elementos constitutivos de nossa difícil e irresoluta democratização (vide, A Democratização do Estado), calcada numa cidadania marcada pelas mazelas da disparidade moral e material deixadas pelo regime servil-escravocrata[iii] em seus 300 anos de dominação – mal superados por quase 100 anos de modernização sob a marcada do liberalismo de Casa-Grande. Mais especificamente, é preciso entender como o Parlamento, que, no momento, se arvora em antídoto ao autoritarismo bolsonarista, na verdade, consiste em um de seus importantes combustíveis – como outrora ocorreu, mesmo que por omissão, nos momentos críticos que antecederam a República (1889), a República Nova (1930) e a Revolução Redentora (1964). O DNA do nosso parlamento, associado a seu desenvolvimento, sobretudo na Primeira República (1889-1930), nos dá pistas preciosas da questão.

Entre nós, as Câmaras surgem no período colonial pela necessidade da Corte portuguesa de controlar o processo de ocupação do território, na prática levado à cabo por colonos privados escolhidos e apoiados pela Metrópole. Com o desenvolvimento da ocupação e da empresa agrário-exportadora, as Câmaras vão se transformando em aparelhos de dominação senhorial sem perderem suas características de ligação com o poder central, dando origem, na república, ao coronelismo, “sistema político (…) dominado por uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido”[iv].

É sob tal compromisso que os latifundiários renovam seu poder sobre a grande massa, utilizando o voto para captar recursos públicos que reforçariam a “sujeição de uma gigantesca massa de assalariados, parceiros, posseiros e ínfimos proprietários”, “quase sub-humanos (…) no trato de suas propriedades”. A “superposição de formas desenvolvidas do regime representativo (…)(a) uma estrutura econômica e social inadequada”, ao invés de produzir a emancipação dos indivíduos, como rezava a cartilha liberal, “havendo incorporado à cidadania ativa um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão política, vinculou os detentores do poder (…) aos condutores daquele rebanho eleitoral. (…) Despejando seus votos nos candidatos governistas nas eleições estaduais e federais, os dirigentes políticos do interior fazem-se credores de especial recompensa, que consiste em ficarem com as mãos livres para consolidarem sua dominação no município”[v].

Foi por meio de tal sistema de “aparelhamento do Estado” que as oligarquias foram capazes de “conter qualquer rebeldia do poder privado”[vi], aprisionando nossas instituições e nossa cidadania nas velhas práticas coloniais-imperiais do favor. Tendo hoje caducado a necessidade de cabrestear a sociedade civil – papel desempenhado hoje pelo PT, em chave diversa (“correia de transmissão”) –, resta ainda à tradição, embora claudicante, a vital função de manter o controle sobre as instituições, impedindo-as de se republicanizar na dimensão exigida pelas modernas sociedades, ou seja, por meio do governo representativo, em oposição ao clientelismo forjado na fome de cargos e na sede de erário, que substituem o programa e o partido na livre competição pelas cadeiras legislativas.

Até aqui, conservadores, liberais, social-democratas e populistas, conseguiram manusear o modelo com maior ou menor eficiência, não importa, mas sempre apoiados numa carga disfuncional de impostos e de ordenamento burocrático-administrativo, cuja externalidade (o subdesenvolvimento) sufoca cíclica e continuamente nossa economia até a apoplexia, quando aí se faz necessário algum tipo de choque institucional para reverter a paralisia.

Os bolsonaristas estão convencidos de que este momento chegou, mas parecem presos a outro modelo que caducou: o velho autoritarismo de caserna, que, em seus vinte anos de plena vigência, não foi capaz de desatar o nó histórico, não obstante o tremendo avanço material obtido.

O viés autoritário do bolsonarismo, bafejado pelo neointegralismo olavista e suas invectivas anti-institucionais, todavia, não deveriam nos iludir quanto ao ponto nevrálgico da crise, que não está nas inclinações plebiscitárias do Presidente – que são só a consequência –, mas no anacronismo de nosso sistema político, que alimenta um “pacto oligárquico” que se tornou insustentável pela sociedade e pelo Estado.

 

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF[vii])

São João da Barra, 04/06/19.

[i] Vide Carlos Pereira, Coalizão x presidencialismo plebiscitário, O Estado de S.Paulo, 02 de junho de 2019, in. <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,coalizao-x-presidencialismo-plebiscitario,70002853544>.

[ii] Charles-Louis de Montesquieu, O Espírito das Leis, in. Francisco Weffort, “Os Clássicos da Política”, vol. 1, ed. Ática/SP, 1993, p. 126.

[iii] Vide Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, ed. Publifolha/SP, 2000, p.4.

[iv] Víctor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto o município e o regime representativo no Brasil, ed. Alfa-Omega/SP, 1975, p. 252.

[v] Idem, pp. 20/56/253.

[vi] Idem, p. 252.

[vii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).

Privacy Preference Center