Revista online | Guilherme Casarões: Reflexões sobre a nova ordem mundial

Pandemia, desaceleração econômica e conflito na Ucrânia mostram, aparentemente, que estamos no alvorecer de uma nova ordem
Foto: AFP via Getty Images)
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Guilherme Casarões / Revista Política Democrática online

Virou lugar-comum entre analistas a percepção de que a invasão russa da Ucrânia inaugura um novo momento das relações internacionais. Parte importante do debate recente busca, justamente, especular sobre quais seriam os elementos desta “nova ordem mundial”, expressão consagrada pelo então presidente americano, George Bush, contemplando o fim da União Soviética e do início da Guerra do Golfo.

Na encruzilhada entre pandemia, desaceleração econômica e conflito no Leste Europeu, não parece haver dúvidas de que estamos no alvorecer de uma nova ordem. Mas em vez de olharmos para a frente nesse exercício especulativo sobre o que os próximos tempos nos reservam, proponho uma volta ao passado.

De certa maneira, a agressão da Rússia contra os ucranianos nos coloca numa máquina do tempo, em que cada parada nos proporcionará um elemento constitutivo deste futuro ainda incerto.

A primeira tarefa dessa viagem temporal é abandonarmos o que esses trinta últimos anos representaram para as relações internacionais. A ocorrência de projetos imperiais universais, calcados no triplo poderio militar, econômico e ideológico-cultural de um só país, é tão rara quanto efêmera. A “era da unipolaridade” inaugurada pelos Estados Unidos, em que o planeta foi sendo moldado aos valores liberais, democráticos e globalizados da superpotência, já é parte do passado e dificilmente voltará.

Ao revisitar o passado, nossa primeira parada é o ano de 1945. Trata-se do único ano, na história, em que um país utilizou armamentos nucleares contra populações civis – nos bombardeios americanos contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, onde entre 100 e 200 mil pessoas morreram. Hoje, segundo o “relógio do juízo final”, dispositivo utilizado pelo Boletim dos Cientistas Atômicos para estimar a probabilidade de uma catástrofe humana generalizada, estamos a 100 segundos da meia-noite – o ponto mais próximo do apocalipse a que chegamos desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Nada impede que essa catástrofe venha na forma de uma hecatombe nuclear. Essa é a leitura de especialistas, sob o argumento de que Vladmir Putin, ao considerar o emprego de armas atômicas no decurso da operação militar na Ucrânia, abre a possibilidade de uma escalada sem precedentes, que pode envolver as cinco principais potências nucleares do planeta – e causar danos irreversíveis à humanidade.

Mas a realidade atual nos obriga a voltar ainda mais no tempo. Se 1945 foi o ano da maior violência nuclear da história, também foi o momento no qual se consolidaram as regras básicas do direito internacional, soberania e autodeterminação, que prevaleciam até outro dia, quando o governo russo decidiu invadir um país vizinho ao arrepio da legalidade – e sem sequer construir um “casus belli” coerente (os Estados Unidos, claro, foram violadores contumazes do direito internacional, notadamente no Iraque, mas eram a única superpotência do planeta).

Regressamos, pois, ao último quarto do século 19. O mundo vivia a escalada de tensões políticas entre as potências europeias, que se posicionavam a partir de considerações geopolíticas, nacionalistas e imperialistas. Os mesmos três ingredientes voltam a aparecer nas interações entre os quatro grandes polos de poder contemporâneos – EUA e Europa, China e Rússia – e definem os embates correntes. Assim como no passado, as alianças vão se formando a partir do desejo de dominar partes importantes do globo e conduzindo a uma corrida armamentista sem precedentes.

Putin, czar dos tempos modernos: ninguém duvida de seu desejo de reconstruir a grandeza do Império Russo. Foto: Sputnink/AFP

Putin é um czar dos tempos modernos e ninguém duvida de seu desejo de reconstruir a grandeza do Império Russo, cujo ápice foi, precisamente, o fim do dezenove. Creio, no entanto, precisarmos de uma terceira parada, agora em 1453. A Rússia, então conhecida como Moscóvia, inaugurava a era do Ivan III, O Grande, que derrotou os mongóis, lançou as bases do Estado russo e triplicou seu território. Mas o principais eventos daquele ano foram a queda de Constantinopla para os otomanos e o fim da Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra.

Antes da consolidação do Estado moderno, vivíamos uma era de civilizações. Em 1453, o Ocidente estava no auge do seu nacionalismo religioso, em que sentimentos protonacionais fundiam-se com o poder econômico e ideológico Igreja Católica na construção de um ambicioso projeto universal. Sob a dinastia Ming, o Império Chinês atingia seu zênite naval e os muçulmanos consolidavam-se territorialmente pelas mãos dos sultões otomanos. Hoje, revisitando Samuel Huntingon, argumentos civilizacionais, culturais e religiosos nunca foram tão comuns para justificar (e incitar) conflitos ao redor do mundo.

A história nos oferece lições poderosas para podemos imaginar o futuro. Não se trata de repetir o passado, mas de entender quais elementos podem compor o quebra-cabeça da ordem vindoura. E não nos iludamos: o mundo que vem por aí, infelizmente, será mais bruto, mais incerto e menos harmonioso. A nós, caberão a sabedoria, a disposição e a resiliência para enfrentá-lo.

Saiba mais sobre o autor

* Guilherme Casarões é doutor e mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (Programa SAN Tiago Dantas). Leciona Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP)e na FGV-SP. Pela Contexto é autor do livro Novos olhares sobre a política externa brasileira.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março/2022 (41ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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