Folha de S. Paulo: País precisa saber quem matou Vlado, diz viúva do jornalista

Clarice Herzog defende punição para crimes da ditadura e se diz assustada com ascensão de Bolsonaro.
Foto: Reprodução
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Clarice Herzog defende punição para crimes da ditadura e se diz assustada com ascensão de Bolsonaro

Por Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO – A vida de Clarice Herzog, 77, tomou um rumo trágico no dia 25 de outubro de 1975. Na manhã daquela data seu marido, o jornalista Vladimir Herzog, foi prestar depoimento no Doi-Codi de São Paulo, órgão da repressão do governo militar. Vlado, como era chamado por familiares e amigos, saiu morto de lá.

Nota oficial divulgada pelos militares dizia que ele havia cometido suicídio, enforcando-se com um cinto de macacão de presidiário. A foto criada para simular essa versão tornou-se um símbolo da repressão do período.

Testemunhos de outros presos no Doi-Codi, porém, apontavam que o jornalista, militante do Partido Comunista Brasileiro, fora torturado e morto por agentes militares.

Nas últimas quatro décadas, Clarice vem travando uma luta para que o Estado reconheça, investigue e puna os responsáveis pelo assassinato do marido. Em 1978 a Justiça condenou a União e determinou a apuração dos fatos, mas nada foi feito.

Tentativas posteriores de investigação foram arquivadas com base na prescrição do crime e na lei da Anistia.

No mês passado, dois fatos trouxeram o assassinato novamente à tona. No dia 4, divulgou-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por não esclarecer o crime e ordenou a retomada das investigações. No dia 30, o Ministério Público Federal em São Paulo anunciou que vai reabrir o caso.

“Esperamos que finalmente possamos saber o que ocorreu e quais são os responsáveis pela morte de Vlado”, diz Clarice.

Em entrevista à Folha, ela defende que os horrores da ditadura não devem ser esquecidos e se diz assustada com a ascensão do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e com grupos que pedem intervenção militar no país.

A decisão da Corte Interamericana e o anúncio de que o MPF vai reabrir o caso renovaram suas esperanças? 
Sim, nos dá um pouco mais de esperança, mas precisamos esperar para ver qual será o encaminhamento, né. Eu abri um processo lá atrás [1976]. Um juiz determinou que fosse descoberto o que ocorreu, mas nunca responderam isso, nunca. Mesmo com a determinação da Justiça, ignoraram sempre.

Mas agora há também a pressão de um tribunal internacional. 
A condenação foi muito importante, pois a corte exigiu que o Estado diga o que ocorreu. Não só a família, mas toda a sociedade tem o direito de saber a verdade. É preciso que grupos façam pressão. Do governo não sairá nada.

Que desfecho a família Herzog deseja para o caso? 
Precisamos saber quem matou o Vlado. O país precisa disso. Queremos que os assassinos sejam julgados, e que o Estado peça perdão pelo que houve.
Os militares se achavam tão donos da verdade que nem se deram ao trabalho de disfarçar bem as barbaridades que faziam. Como podiam dizer que foi suicídio? Na foto o Vlado aparece com os pés no chão. Com os pés no chão! Não havia altura para que seu corpo pendesse. Como poderia se enforcar assim?

Em nenhum momento acreditou na tese de suicídio? Nunca, imagina. Ele sai espontaneamente para depor e se mata?
Foi o seguinte, naquela semana vários jornalistas foram presos. Muitos trabalhavam com o Vlado. Então eu disse para ele: “Você também vai ser procurado, vamos passar o fim de semana fora”.
Então na sexta de noite, um dia antes da morte dele, três grandões bateram lá em casa. Disseram que queriam chamar o Vlado para fazer umas fotos de casamento.

A senhora desconfiou na hora? 
Sim, na hora. Eu disse a eles que meu marido não fazia esse tipo de atividade, que ele estava trabalhando naquela hora. Perguntaram onde, disse que na TV Cultura. Eles não sabiam o endereço, eu disse que também não. Aí eles foram embora. Eu peguei meus dois filhos, eram crianças na época, e fui correndo para a TV. Queria pegar o Vlado e ir para nosso sítio. Mas quando cheguei os homens já estavam lá.

Houve uma discussão, queriam levar o Vlado naquela noite mesmo. O pessoal da TV começou a negociar. Ficou então combinado que ele se apresentaria no dia seguinte. Então no sábado [25 de outubro de 1975] ele foi e saiu morto de lá.

A senhora imaginou que ele pudesse sofrer alguma agressão? 
Não, nunca imaginei. Pensei que ele voltaria para casa algumas horas depois. Mas ao longo do dia fui ficando preocupada. Então na noite daquele sábado três homens da TV chegaram lá em casa e contaram o que houve. Eu saí berrando, “mataram o Vlado, mataram o Vlado”.

O que acha que ocorreu no Doi-Codi? 
Tenho a impressão de que o Vlado reagiu. Tinha um papel picado no chão, com a letra dele, com nomes de outras pessoas de esquerda. Alguns colegas que estavam presos lá ouviram Vlado berrar. Imagino que foi torturado, recebeu choque elétrico. Quando houve uma pausa, ele deve ter rasgado o papel e xingado os torturadores. Aí caíram em cima. Ele ficou todo arrebentado.

Desde então sua luta tem sido provar que ele foi assassinado. 
Sim, ele nunca se mataria. Naquele dia eu queria ter ido com ele, mas não deixaram. Depois fiquei pensando que deveria ter insistido. Talvez ele estivesse vivo hoje se eu tivesse ido.
Um dia comentava isso com uma amiga, e ela me disse algo que não tinha passado por minha cabeça. “Se você também estivesse lá, talvez vocês dois estaivessem mortos hoje. Como ficariam seus filhos?”

E como contou a eles? 
Eu não podia dizer que a polícia matou o pai deles. A polícia mata bandidos. Então na manhã do dia seguinte, um domingo, quando acordaram, sentei na cama do Ivo, o mais velho. Tinha nove anos na época. Disse a ele: “Tenho uma notícia triste. Papai, quando estava saindo da TV Cultura, foi atropelado e morreu”. Mas no outro dia ele já percebeu tudo o que tinha ocorrido, o caso estava nos jornais, na TV.  Ele participaram de tudo, os levei em todas as homenagens, no culto da Sé. Acho que é melhor viver essas coisas.

O culto ecumênico na Sé tornou-se reuniu mais de 8.000 pessoas, tornou-se um fato marcante na luta contra a ditadura. Ficou na história, né?
Muitos se afastaram de nós, mas muita gente nos apoiou também. O Vlado era muito querido, era fora do sério. Naquela época ele queria se dedicar ao cinema. Como eu tinha um emprego bom na publicidade, nós combinamos, eu sustentaria a casa, ele faria cinema. Não deu tempo.

A senhora e a viúva de Manoel Fiel Filho, operário cuja morte no Doi-Codi também foi registrada como suicídio, foram depois homenageadas no verso “Choram Marias e Clarisses” da música “O Bêbado e a Equilibrista”. 
Sim, fiquei muito surpresa quando soube. Um dia encontrei os compositores [João Bosco e Aldir Blanc] e me apresentei. Nos abraçamos, foi um momento muito legal.

Teve medo de sofrer alguma represália ao lutar para provar que houve um assassinato? 
Não, não sentia medo. Eles disseram que Vlado se matou. Então, se matassem mais alguém de nossa família, aquela farsa cairia por terra. Eu sentia que meus filhos e eu estávamos bem protegidos.  Na frente de nossa casa ficou por meses um carro da polícia, mas não sentia medo. Nem olhava para eles. Eu trabalhava na agência de publicidade Ogilvy na época. Um dos chefes falou que poderia me transferir para um escritório fora do país, mas não aceitei. Disse a ele: “Meu lugar é aqui. Preciso provar que o pai dos meus filhos foi assassinado”.

Em 2013 vocês receberam uma versão retificada do atestado de óbito de Herzog, no qual constava como causa de morte “lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório” 
Sim, são algumas vitórias que tivemos ao longo dessa trajetória. A própria morte dele ajudou a conscientizar muita gente sobre a violência da ditadura.

A decisão da Corte Interamericana de condenar o Brasil pela morte de Herzog reabriu o debate sobre a lei da Anistia. Qual sua opinião? 
Como diz a sentença da corte, a morte de Vlado e de outras pessoas pela ditadura representa um crime contra a humanidade. A Anistia não deveria valer para esses casos.  Quem matou deve ser julgado e condenado. É lamentável que muitas pessoas ignorem esses crimes, até mesmo um candidato à Presidência da República.

A senhora se refere a Jair Bolsonaro (PSL). Perguntado sobre o caso Herzog, ele disse que “não estava lá” para confirmar que ele foi morto pelo regime e que “suicídio acontece, pessoal pratica”. 
Imagina, o cara quer ser presidente e diz uma coisa dessa? Acho um perigo, é assustador. Espero que perca seus eleitores durante a campanha. É um horror esse homem.

Vai votar em quem? 
Em nosso governador [Geraldo Alckmin (PSDB)]. Gosto muito do Henrique Meirelles (MDB), fez um trabalho muito bom na economia, mas não tem experiência nenhuma, não tem traquejo político. Aguentar aquilo ali deve ser barra pesada.

Como se classifica politicamente? 
Sou de esquerda.

Vota no PT? 
Não, sou contra o PT. Depois de tantos escândalos, não dá mais.

Como a senhora encara o fato de algumas pessoas irem às ruas pedir intervenção militar? 
É muita falta de informação, né. Muita gente ignora completamente o que foi a ditadura militar. Repetem sempre o discurso de que havia ordem naquela época. Uma loucura! Todas essas manifestações devem ser repudiadas fortemente pela sociedade. Acho que retomar o caso do Vlado pode ajudar a relembrar todo o horror daquele período.

Depois de 40 anos, a senhora se sente cansada? 
Sim, mas, sendo preciso, luto ainda mais para que o caso não fique impune.

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