Flávio Bolsonaro é acusado de enriquecer desviando recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual
Mariana Schreiber / BBC News Brasil
Após mais de um ano de espera, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) adiou o julgamento previsto para esta terça-feira (31/08) que decidiria sobre o foro privilegiado concedido à Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na investigação que apura um suposto esquema de rachadinha – desvio de recursos do seu antigo gabinete de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O adiamento atendeu a um pedido apresentado na véspera pelo advogado de Flávio, Rodrigo Roca, sob a alegação de que estaria “impossibilitado de comparecer na sessão agendada”. Ainda não foi anunciada nova data para o julgamento.
O pedido de postergação pode indicar uma insegurança da defesa sobre se há votos suficientes para mater o foro privilegiado, concedido no ano passado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). A decisão garantiu ao senador, filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, o direito a ser julgado no próprio TJRJ, em vez de na primeira instância judicial, onde os casos tendem a andar mais rapidamente.
O julgamento do recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que contesta o foro concedido a Flávio havia sido marcado pelo novo presidente da Segunda Turma, ministro Kassio Nunes Marques, que chegou ao STF no ano passado por indicação de Bolsonaro. Como Marques tem tomado decisões alinhadas ao Palácio do Planalto, o fato de ele ter pautado o julgamento sobre o foro de Flávio poucas semanas após ter assumido a presidência do colegiado gerou, inicialmente, expectativas de que o placar seria favorável ao senador.
O cenário ficou mais otimista para Flávio com a transferência no início de agosto da ministra Cármen Lúcia da Segunda Turma para a Primeira Turma. Como o colegiado agora tem apenas quatro ministros (Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski), eventual empate favorece a defesa.
A Turma segue desfalcada porque ainda não foi aprovado um substituto para a vaga do STF aberta com a aposentadoria do ex-ministro Marco Aurélio. Jair Bolsonaro indicou seu ex-ministro da Justiça André Mendonça, mas sua nomeação depende de aprovação do Senado Federal.
Entenda a seguir em três pontos qual a controvérsia em torno do foro de Flávio Bolsonaro, qual pode ser o impacto desse julgamento e quais as acusações que pesam contra o senador.
1) Por que STF decidirá sobre foro de Flávio?
A investigação contra Flávio tramitou inicialmente na primeira instância judicial seguindo o entendimento firmado pelo plenário do Supremo em 2018, quando um julgamento da Corte limitou o foro privilegiado apenas a investigações relacionadas ao exercício do atual mandato do parlamentar.
No entanto, em junho de 2020, a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) atendeu a um recurso do senador e lhe garantiu o foro de deputado estadual nessa investigação, por dois votos a um. Com isso, o caso saiu das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, para a jurisdição do Órgão Especial do TJRJ, composto por 25 desembargadores, o que tirou agilidade do andamento investigativo e processual.
Embora o filho do presidente tenha no passado defendido o fim o foro privilegiado, sua defesa argumentou que Flávio não deixou de ter mandato político, já que passou de deputado estadual a senador. Na visão dos seus advogados, isso deveria manter o foro especial do filho do presidente, argumento que foi acolhido pela maioria da Terceira Câmara Criminal.
Logo após isso, o Ministério Público do Rio de Janeiro apresentou uma reclamação no STF, um tipo de recurso que questiona decisões que confrontam entendimentos já estabelecidos pelo Supremo (no caso, a restrição do foro privilegiado fixada em 2018).
O recurso foi distribuído para o ministro Gilmar Mendes, que optou por não dar celeridade a sua análise. O caso ficou cerca de nove meses parado em seu gabinete após manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR), sendo liberado para julgamento apenas no final de maio deste ano.
Além do recurso do Ministério Público, o partido Rede Sustentabilidade também apresentou ao STF uma ação mais ampla tentando reverter o foro concedido a Flávio, que deverá ser julgada pelo plenário do STF. Dessa forma, seja qual for o resultado do julgamento na Segunda Turma, ele ainda poderá ser revisto quando essa ação for analisada pela Corte.
Essa ação, porém, foi sorteada para relatoria de Nunes Marques, e segue parada em seu gabinete.
“Meu palpite: (a Segunda Turma do) STF vai confirmar foro de Flávio Bolsonaro no TJRJ. E o entendimento não durará um ano”, opinou o criminalista Davi Tangerino, professor de direito penal da UERJ e da FGV-SP, em sua conta no Twitter, quando o julgamento foi marcado para esta terça.
2) Qual pode ser o impacto do julgamento?
A demora do STF em decidir sobre o foro de Flávio Bolsonaro teve o impacto de retardar o andamento do caso, já que o TJRJ decidiu, inicialmente, esperar que o Supremo julgasse o recurso contra o foro de Flávio. Esse é um dos fatores que explica o fato de até hoje o Tribunal não ter decidido se aceita ou rejeita denúncia criminal apresentada pelo Ministério Público em novembro de 2020 contra Flávio, Fabrício Queiroz (ex-assessor apontado como operador do esquema de rachadinha) e mais 15 pessoas.
O senador e seu antigo assessor são acusados dos crimes de organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.
Mas, depois disso, outra decisão também afetou essa análise. Em fevereiro deste ano, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por quatro votos a um, anulou as quebras de sigilo fiscal e bancário do senador determinada em 2019 pelo juiz Flávio Itabaiana, por entender que ele não fundamentou adequadamente sua decisão. Com isso, parte das provas usadas na denúncia criminal contra Flávio foram anuladas.
O Ministério Público apresentou então uma nova denúncia, com provas que não teriam sido afetadas pela quebra de sigilo, como o acordo de delação premiada firmado por Luiza Souza Paes, que foi funcionária do gabinete de Flávio na Alerj e confessou o esquema de rachadinha.
No entanto, na segunda-feira da semana passada (23/08), o ministro do STJ João Otávio de Noronha, em decisão individual, acolheu recurso de Fabrício Queiroz e mandou suspender também a análise dessa nova denúncia, sob o argumento de que ela reaproveitava provas já anuladas.
Com esta decisão em vigor, seja qual for a determinação da Segunda Turma do STF sobre o foro do senador, o caso deve seguir parado na Justiça, ao menos até que a validade da nova denúncia seja julgada pela Quinta Turma do STJ.
Noronha também é visto como um aliado de Bolsonaro no Judiciário e chegou a receber elogios públicos do presidente no ano passado, quando presidia o STJ.
“Prezado Noronha, permita-me fazer assim, presidente do STJ. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário. Muito obrigado a Vossa Excelência”, disse Bolsonaro, em cerimônia no Palácio do Planalto.
3) Quais são as acusações contra Flávio e o que diz a defesa?
As suspeitas envolvendo Flávio Bolsonaro vieram à tona no final de 2018 com a revelação de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontando movimentações vultosas de recursos por Fabrício Queiroz, que era funcionário do seu gabinete na Alerj.
Queiroz, antigo amigo de Jair Bolsonaro, é acusado pelo Ministério Público de ser o operador do esquema de rachadinha – ou seja, seria ele que gerenciava a contratação dos funcionários fantasmas, o recolhimento dos salários e o repasse desses valores ao filho do presidente.
Os promotores dizem ter levantado provas de que esse dinheiro era usado por Queiroz para pagar na boca do caixa contas da família de Flávio, como boletos do plano de saúde ou da mensalidade escolar das filhas. Além disso, afirmam que parte do recurso desviado era lavada através do investimento em imóveis e por meio de uma loja de chocolate que o senador possui em um shopping no Rio de Janeiro.
Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz negam que tenham desviado recursos do gabinete da Alerj por meio de funcionários fantasmas. A versão de Queiroz é que recolhia parte dos salários para conseguir contratar mais pessoas para atuar pelo mandato de Flávio no Estado do Rio de Janeiro. Ele nunca apresentou provas disso.
Já o hoje senador afirma que não tinha conhecimento do que seu ex-assessor fazia e nega ter sido beneficiado pelo esquema. Ele também se diz perseguido politicamente pelo Ministério Público.
Em julho, uma série de reportagens do portal UOL revelou gravações de pessoas que teriam atuado como funcionários fantasmas nos antigos gabinetes de deputado federal de Jair Bolsonaro e de deputado estadual de Flávio, aumentando os indícios de que a prática era adotada por ambos.
As novas revelações envolvem irmão de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe do quarto filho do presidente, Jair Renan Bolsonaro.
Em um áudio obtido pelo portal UOL, Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada de Bolsonaro, diz que seu irmão André foi demitido do gabinete do hoje presidente porque se recusava a devolver toda a quantia exigida pelo então deputado federal.
A reportagem informa que, após atuar por dois períodos no gabinete de vereador de Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) entre 2001 e 2006, André passou a integrar a lista de funcionários do gabinete de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados em novembro de 2006, sendo demitido em outubro de 2007.
“O André deu muito problema porque ele nunca devolveu o dinheiro certo que tinha que ser devolvido, entendeu? Tinha que devolver R$ 6.000, ele devolvia R$ 2.000, R$ 3.000. Foi um tempão assim até que o Jair pegou e falou: ‘Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'”, diz Andrea na gravação obtida pelo UOL.
Em outro áudio, Andrea revela também que devolvia a maior parte do salário recebido por ela mesma como funcionária do gabinete de Flávio Bolsonaro. “Eu ficava com mil e pouco e ele ficava com sete mil reais, então assim, certo ou errado agora já foi, não tem jeito de voltar atrás”, diz ela, que antes também foi funcionário do gabinete de Jair Bolsonaro.
Os áudios são de conversas ocorridas entre 2018 e 2019. O UOL preservou o sigilo da fonte que disponibilizou as gravações.
Na ocasião, a defesa do senador divulgou uma nota questionando a validade dos áudios revelados pelo portal UOL.
“Gravações clandestinas, feitas sem autorização da Justiça e nas quais é impossível identificar os interlocutores não é um expediente compatível com democracias saudáveis. A defesa, portanto, fica impedida de comentar o conteúdo desse suposto áudio apresentado pela reportagem”, diz a manifestação assinada pelos advogados Luciana Pires, Rodrigo Roca e Juliana Bierrenbach.
A nota dizia também que Andrea Siqueira Valle “trabalhou na Alerj e cumpria sua jornada dentro das regras definidas pela assembleia”.
“Flávio Bolsonaro, nas suas atividades parlamentares, não tinha como função fiscalizar e orientar a forma como a servidora usufruía do seu salário”, acrescentam os defensores.
Os advogados alegaram ainda que Flávio Bolsonaro, quando era deputado estadual, “nunca recebeu informação ou denúncia de que havia qualquer irregularidade no seu gabinete ou em relação ao pagamento dos colaboradores”.
“Portanto, não passa de insinuação e fantasia a ideia de que o parlamentar participou de qualquer atividade irregular. Esse é apenas mais um ingrediente na narrativa que tentam armar contra a família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro confia na Justiça e tem a certeza de que a verdade prevalecerá”, concluía a nota.
Após as reportagens do UOL, a PGR abriu uma investigação preliminar para apurar eventuais crimes de Jair Bolsonaro. No entanto, caso as suspeitas se confirmem, ele só poderá ser denunciado após deixar o cargo, já que a Constituição impede que o presidente seja punido por eventuais crimes anteriores ao seu mandato.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58389961