Mariana Schreiber*, BBC News Brasil
“Eu vou ganhar as eleições, e quando chegar dia primeiro de janeiro, eu vou pegar seu sigilo e vou botar o povo brasileiro para saber por que você esconde tanta coisa. Afinal de contas, se é bom, não precisa esconder”, prometeu o petista, no debate do segundo turno da TV Bandeirantes.
Além do fim desses sigilos, outras decisões do próximo governo também poderão afetar a família Bolsonaro, como a troca de comando da Polícia Federal e a escolha do novo Procurador-Geral da República em setembro do próximo ano. O presidente enfrenta acusações de ter interferido nessas instituições para evitar investigações contra si e seus filhos.
Entenda melhor a seguir as decisões que Lula tomará e como elas podem impactar o futuro ex-presidente.
Sigilo de cem anos
A imposição de sigilo de um século ocorreu em situações que ganharam destaque durante o governo Bolsonaro, como nesses quatro casos:
– O cartão de vacinação de Bolsonaro foi colocado em sigilo, em meio à pandemia de covid-19 e no contexto de que o presidente questionava eficácia e segurança dos imunizantes;
– O governo determinou sigilo de cem anos sobre informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome dos filhos Carlos Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro;
– A Receita Federal impôs sigilo de cem anos no processo que descreve a ação do órgão para tentar confirmar uma tese da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, sobre a origem do caso das “rachadinhas”;
– O Exército impôs sigilo de cem anos no processo que apurou a ida do general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello a um ato no Rio de Janeiro com o presidente Jair Bolsonaro e apoiadores do governo.
As decisões de manter o tema em sigilo são feitas em resposta a pedidos apresentados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), geralmente sob alegação de que documentos continham informações pessoais.
Também há caso em que o governo tentou manter a informação secreta e depois mudou de ideia — como os dados sobre visitas ao Palácio do Planalto de pastores suspeitos de favorecer a liberação de verbas do Ministério da Educação para prefeitos aliados.
O sigilo de no máximo cem anos, decretado em resposta a pedidos de informação do governo, está previsto na lei que acabou com o sigilo eterno de documentos oficiais — a Lei de Acesso à Informação. Ela foi sancionada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff — e foi assinada junto com a lei que criou a Comissão da Verdade.
No artigo 31, a lei prevê que informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem tenham acesso restrito pelo prazo de até cem anos.
Também está lá um trecho que busca conter o uso dessa medida: o texto diz que a restrição de acesso de “informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
Para o advogado Bruno Morassutti, fundador da agência especializada em transparência Fiquem Sabendo, pessoas que ocupam importantes cargos públicos, como a Presidência da República, não devem ter o mesmo nível de proteção de sua privacidade que cidadãos comuns.
Dessa forma, ele avalia que o governo Lula poderá, sim, revisar com facilidade os sigilos decretados pela gestão Bolsonaro.
“O presidente poderia, diante de alguns casos concretos, determinar a abertura das informações, já que ele é o chefe do Poder Executivo e tem competência jurídica para fazer isso. Ou, eventualmente, ele pode orientar o ministro da Transparência e os membros da Comissão Mista de Reavaliação de Informações a revisar essas decisões de acordo com critérios que ele estabelecesse”, afirma.
A Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI) é um órgão colegiado composto por nove ministérios: Casa Civil; Justiça e Segurança Pública; Relações Exteriores; Defesa; Economia; Mulher, Família e Direitos Humanos; Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; Advocacia-Geral da União e Controladoria-Geral da União.
Além dessas ações, Morassutti também diz que o governo pode alterar o decreto que regulamenta a LAI ou enviar uma proposta de alteração da lei ao Congresso para que seja adotada uma nova redação que impeça um uso inadequado do sigilo.
“A lei, interpretada da forma correta, não permitiria esse tipo de sigilo. Acontece que ela foi interpretada de uma forma que a torna muito restrita. É uma visão que não interpreta a lei junto com o restante da legislação e com o que a Constituição diz sobre acesso à informação pública”, ressalta.
Na sua avaliação, o potencial de impacto do fim desses sigilos vai depender do que for revelado.
No caso das visitas dos filhos do presidente ao Palácio do Planalto, por exemplo, o advogado acredita que há um interesse em saber se houve alguma atuação em encontros com ministros que poderia ser enquadrada como advocacia administrativa, que consiste no crime de patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública.
Os inquéritos contra Bolsonaro
Bolsonaro enfrenta acusações de interferir na Polícia Federal, órgão que tem inquéritos abertos contra o presidente e seus filhos. Uma dessas investigações apura acusações de interferência levantadas pelo ex-ministro Sergio Moro em 2020, quando pediu demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Assim que assumir o cargo, em primeiro de janeiro de 2023, o petista poderá nomear um novo diretor-geral para a Polícia Federal. O novo chefe da instituição, por sua vez, deve escolher novos nomes para postos chaves, como as superintendências regionais.
Para o professor de direito penal da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Davi Tangerino, a gestão petista não vai promover uma “perseguição” à família Bolsonaro, tentando direcionar a atuação da PF contra o antigo clã presidencial, mas deve dar autonomia para que a polícia toque as investigações que julgar pertinentes.
Tangerino lembra que os governos do PT garantiram independência a órgãos de investigação, algo que até expoentes da operação Lava Jato já reconheceram, como o próprio Moro.
“É certo que o governo na época tinha inúmeros defeitos, aqueles crimes gigantescos de corrupção que aconteceram naquela época, mas foi fundamental a manutenção da Polícia Federal para que fosse feito o bom trabalho, seja de bom grado ou por pressão da sociedade, mas isso (a autonomia) foi mantido”, disse o ex-juiz da Lava Jato, ao deixar o governo Bolsonaro.
Atualmente, há quatro inquéritos autorizados pelo STF em que o presidente é investigado pela Polícia Federal por suspeitas de diferentes crimes:
– Sobre divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888);
– Sobre vazamento de dados sigilosos sobre ataque ao TSE (INQ 4878);
– Inquérito das fake news, sobre ataques e notícias falsas contra ministros do STF (INQ 4781);
– Sobre interferência na Polícia Federal (INQ 4831).
Bolsonaro sem foro
Bolsonaro também enfrenta as acusações de crimes feitas pela CPI da Covid, que estão em apuração pela Procuradoria Geral da República (PGR).
No entanto, a partir do momento em que deixar a Presidência da República, Bolsonaro perde o foro privilegiado e passa a responder por suspeitas na Justiça Comum.
A Polícia Federal poderá continuar as investigações sem autorização do Supremo. As apurações que estão sendo feitas pela Procuradoria Geral da República passarão para a competência de instâncias inferiores do Ministério Público. Os processos no TSE passam para o TRE da região onde houve a suspeita.
Se o Ministério Público decidir fazer uma denúncia contra Bolsonaro, ele será julgado por um juiz de primeira instância.
Uma exceção a essa regra, porém, pode ocorrer no caso do inquérito das fake news, já que nesse caso pessoas sem foro privilegiado estão sendo investigadas no STF, suspeitas de ataques contra a própria Corte e o Estado Democrático de Direito.
Enquanto Bolsonaro perderá o foro privilegiado, seus filhos Eduardo Bolsonaro (deputado federal) e Flávio Bolsonaro (senador) continuam tendo foro especial no STF em casos de supostos crimes relacionados ao seus mandatos. Eduardo Bolsonaro é alvo também do inquérito das fake news.
Dessa forma, ambos podem ser afetados por uma provável mudança no comando da PGR, que hoje é chefiada por Augusto Aras, visto como um aliado do presidente. Seu mandato acaba em setembro.
Quando Lula foi presidente entre 2003 e 2010, sempre escolheu como Procurador-Geral da República o primeiro de uma lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). O petista inaugurou essa tradição, vista como determinante para garantir a independência do Ministério Público Federal.
Dilma Rousseff manteve o procedimento, enquanto Michel Temer nomeou a segunda pessoa da lista tríplice. Já Aras foi nomeado por Bolsonaro sem ter sido selecionado para a lista da categoria.
Lula não se comprometeu na campanha a respeitar novamente a lista, mas Davi Tangerino acredita que ele pode resgatar a tradição, já que a escolha de Aras acabou gerando um desgaste grande para o Ministério Público Federal.
“Foi Lula quem começou (a nomear o PGR pela lista tríplice). Por que mudar agora, justamente para substituir um Procurador-Geral sobre quem sempre pesou a acusação de ser muito dócil com quem o indicou? Eu acho que é um ônus que o Lula não precisa”, avalia o professor da FGV.
Flávio Bolsonaro, por sua vez, é alvo de investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio de recursos) em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio de Janeiro. Essa investigação, porém, tramita na Justiça do Rio.
Texto publicado originalmente em BBC News Brasil.