FAP Entrevista: Paulo Fábio Dantas

Esperar unificação ou até mesmo impermeabilidade política da Justiça brasileira neste ano de eleições parece algo distante da realidade, acredita Paulo Dantas.
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal

Esperar unificação ou até mesmo impermeabilidade política da Justiça brasileira neste ano de eleições parece algo distante da realidade, acredita Paulo Fábio Dantas

Por Germano Martiniano

A insegurança no meio jurídico decorrente da politização do Judiciário neste ano de eleições presidenciais – com exemplos como a tentativa de soltura do ex-presidente Lula por meio de uma ação do desembargador Rodrigo Favreto (TRF-4), numa manobra política liderada por três deputados petistas – aliada à ausência de uma alternativa concreta do centro democrático brasileiro na disputa do principal cargo do executivo brasileiro foram os principais temas discutidos com o cientista político Paulo Fabio Dantas na entrevista da semana da série FAP Entrevista. A série, que a Fundação Astrojildo Pereira está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, tem o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.

Com mestrado em administração pela UFBA (1996) e Doutorado em Ciências Humanas/Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/IUPERJ (2004), Paulo Fábio Dantas acredita que é ingenuidade se esperar unificação da Justiça brasileira. “Isso não me parece realista e mesmo em tempos de calmaria, é um conto da carochinha. Como seria possível (caso fosse desejável) que o STF, cimo de um Poder, ficasse alheio à temperatura política? O que é anormal é se permitir que ele exerça poder normativo para além da Constituição”, avalia.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

FAP Entrevista – Como o senhor avalia essa sistemática insistência do PT em desmoralizar a justiça brasileira para soltar Lula?
Paulo Fábio Dantas – Factualmente o problema é anterior à prisão de Lula e não envolve apenas o PT. Desde o final da década passada acumulam-se, lentamente, sinais de alteração da tradição política brasileira, marcada pela adoção do entendimento e da conciliação como método preferencial para a prevenção ou resolução de conflitos. Antes da crise dávamo-nos ao luxo de especular se isso era bom ou ruim e as avaliações variavam, tendentes a sopesar aspectos em uma e em outra direção, crendo todos que as mudanças eram processuais, das políticas sociais ao combate à corrupção. Mesmo após o processo do Mensalão, ao país aparente parecia bastante a prisão de José Dirceu se ela permitia seguir crendo que Lula não sabia de nada. Mas desde 2013, com a não resposta da elite política (governo e oposição) às manifestações de rua e, principalmente, após a entrada em cena da Lava-Jato, em diferentes pontos do espectro político e dos ambientes institucionais prospera a subversão daquela tradição. Sistema político e sistema de Justiça estão em aberto conflito desde que ficou claro, de um lado, que a PF, o MPF e setores do Judiciário optaram pelo caminho de uma faxina ao molde de uma “revolução moral” como base para uma “refundação da República”, encontrando para tanto uma ampla cobertura midiática que potencializou predisposições moralistas presentes na sociedade; por outro lado também ficou claro que, como seria de esperar, o sistema político não se deixaria abater sem luta.

A situação tornou-se mais grave porque essa reação da elite política não foi politicamente articulada e até aqui assume a feição de um salve-se-quem-puder. E aí sim, o PT assume protagonismo, seja por ter sido o alvo inicial da operação moralizante, seja porque tem alta expertise em matéria de construção e desconstrução de inimigos. Sua vocação política, desde o berço, é a da combatividade a partir da auto referência, como de resto é a vocação de parte amplamente majoritária da esquerda brasileira, que ainda não assimilou historicamente, o golpe de 1964 e vive parada naquela estação, em busca de desforra. Não consegue enxergar o imenso passo à frente, o virar de página histórico dado pela transição democrática dos anos 70 e 80. A velha esquerda populista e o PT entraram em simbiose há duas décadas e o resultado é esse aí: um misto de voluntarismo, corporativismo, hegemonismo e ressentimento a que se dá o nome de “resistência”. Lula solto ou Lula preso passou a simbolizar a resiliência ou a ultrapassagem dessa agenda retrô. Penso que o pronunciamento do eleitorado é crucial nesse instante para decidir como sair do ponto morto em que entramos esse ano, desde que tanto o Fora Temer quanto a agenda positiva do governo Temer perderam a vez e o sentido. O fim do Fora Temer convoca o PT às urnas, por mais que Lula tente desviar o partido desse caminho. E o fim da agenda do governo reduz o horizonte da pinguela a um juntar de cacos. Foi assim, está sendo assim. O que se pode fazer? Tocar a vida como ela é, porque por enquanto temos o principal: democracia.

O Judiciário, por sua vez, também não está unificado, como se pode ver por meio de ações de ministros e desembargadores, por exemplo, que se valem de seus ofícios para beneficiar certos políticos e partidos. Aonde chegará essa politização da Justiça?
Penso que chegará até onde a política como vocação (profissão) permitir, pela ação ou pela omissão. E isso está ligado à confecção do cardápio eleitoral (missão da elite política), ao modo de servi-lo aos eleitores (missão dos candidatos e suas campanhas) e ao efeito digestivo pós eleitoral, que é sempre uma interação entre o que se come, como se come e a saúde precedente de quem come. Nos intestinos do eleitorado abundam maus sinais, tanto de constipação por má digestão, quanto de diarréia verbal. Isso torna ainda mais cruciais as missões da elite política de um modo geral (oferecer cardápio leve) e dos candidatos em particular (não vender gato por lebre). Se mal sucedidos ou omissos nesses místeres, podemos esperar que a porta do Judiciário continuará sendo assediada por demandas políticas crescentes.

No mais, não creio que se deva esperar unificação ou mesmo impermeabilidade política da Justiça. Isso não me parece realista e, mesmo em tempos de calmaria, é um conto da carochinha. Como seria possível (caso fosse desejável) que o STF, cimo de um Poder, ficasse alheio à temperatura política? O que é anormal é se permitir que ele exerça poder normativo para além da Constituição. Nesse caso, assumindo (se voluntariamente ou não, pouco importa) papeis que numa democracia são dos políticos, não há como esperar que seus agentes ajam senão como políticos, isto é, estrategicamente. E como são amadores, o fazem desastradamente e permitem vazamentos da sua autoridade para baixo, isto é, não aparentando a isenção que devem sempre aparentar estimulam que a mesma conduta se difunda na base do Judiciário. Em resumo, ao atuarem, inapropriadamente, como elite política “para fora” deixam de sê-lo “para dentro”, como seria preciso.

O senhor disse em seu último artigo “Factoide golpista na ressaca da Copa”, que ‘é inaceitável que se queira corrigir um suposto erro cometendo um erro induvidoso maior’ em relação ao ex-presidente brasileiro. Por que Lula não deveria ter sido preso agora?
Porque a Constituição conserva o direito do condenado provisório ao trânsito em julgado. O STF relativizar esse direito é algo muito polêmico (e se já temos polêmicas de sobra, penso que o Judiciário não deveria provocar novas) mas enfim, o STF criou nova jurisprudência então, paciência, em respeito às suas prerrogativas e também em nome da minimização de controvérsias, deve-se aceitá-la. Mas não seria mais fácil fazê-lo se o STF decidisse de uma vez? E por que diabos a sua presidente não coloca o assunto em pauta e em vez disso permite/fomenta a estabilização da incerteza? Mas ainda que se resolva definitivamente pela possibilidade de prisão em segunda instância (e não vejo nisso problema), possibilidade não seria jamais obrigatoriedade da prisão, como quer a mídia (a “grande” e boa parte das redes sociais), a PF e a parte militante do MPF. E se ao juiz deve ocorrer um juízo de razoabilidade em cada caso, penso que no de Lula ele aconselharia não prender, seja pela ausência de pacificação dos juízos, seja por respeito a uma percepção de senso comum que não deveria ser ignorada. Lula não deve ser candidato pois a Lei da Ficha Limpa impede. Mas por que impedi-lo de se expor na campanha como cabo eleitoral e condenado provisório? Talvez se esteja subtraindo ao eleitor brasileiro a chance de virar a página do lulismo sem margem a esperneio de revanchistas. Pessoalmente ajudaria com meu modesto voto. Seria arriscado? Sim, mas democracia é (também) risco, desde que corridos dentro da lei.

Em seu artigo, o senhor também citou que a ordem democrática ainda não encontrou uma convergência contra os discursos populistas e extremistas. Por quê?
Não tenho essa resposta e duvido que alguém a tenha. Quero antes de discutir isso esclarecer duas coisas: primeiro, que populismos e extremismos também fazem parte da ordem democrática. No caso dos populismos eles são em geral fenômenos cultivados no chão da democracia, embora possamos considerar que muitas vezes, quando predominam, conduzem-na a impasses. E mesmo os extremismos (inimigos da democracia) precisam ser tolerados ainda que sempre vigiados pela lei. É essa tolerância que distingue uma democracia e ela não tem nada a ver com bom mocismo e sim com uma reflexão realista: os preços da não tolerância costumam ser mais nocivos ao ambiente político e social do que as ameaças extremistas à ordem democrática quando essa ordem está legitimamente assentada. Então qualquer posição ou opinião pode ser livre desde que tente prevalecer por meios democráticos, isto é, dispute eleições. O segundo esclarecimento vem do primeiro: se todos (inclusive extremistas) podem disputar eleições dentro da ordem então não tem sentido falar em convergência da ordem democrática. Numa eleição o confronto é salutar. A unidade que na minha opinião deve se buscar – e vem sendo concretamente buscada embora com resultados ainda parcos – é em torno de uma candidatura competitiva capaz de gerar governo e não mais crise. É por isso que tem de ser moderada. O caminho para isso até aqui está bloqueado e isso tem a ver com a perda de fôlego do governo federal a partir das investidas feitas a partir de 2017 para derrubá-lo. Salvou-se mas perdeu força porque várias forças políticas essenciais à sua sustentação retiraram-lhe apoio com os olhos postos no imediatismo eleitoral. Pragmatismo eleitoralmente improdutivo, porque fica no eleitorado a sensação de que as promessas do impeachment não foram cumpridas e isso deu algum fôlego novo ao PT. Era (e ainda apesar do tempo perdido) de se esperar que os partidos e lideranças que se apresentaram ao país como fiadoras daquela solução estivessem juntas em outubro próximo.

Na Conferência Nacional A Nova Agenda do Brasil, organizada pela FAP no início deste ano, teve uma discussão ‘acirrada’ em sua mesa sobre o papel do Estado brasileiro, que deveria ser mais enxuto, mais regulador do que provedor e até se falou de uma aliança de uma centro-esquerda com os liberais. Não parece contraditório esquerda e liberalismo econômico?
Convergência através de alianças políticas práticas tem havido e não é de hoje, no Brasil e fora dele. A questão naquela discussão foi convergência de pensamento, algo mais perene e capaz de interpelar certezas dos dois campos. O centro não é liberalismo econômico (embora uma agenda comum deva incluí-lo, sem fundamentalismos) e sim a democracia política (com fortalecimento do pluralismo e da representação e com ampliação da participação política), um reformismo social assumidamente incremental e uma perspectiva cosmopolita e amplamente liberal quanto à cultura. Devemos dizer de qual liberalismo se fala. Penso num corpo de ideias que durante muito tempo existiu, conforme a imagem de Raymundo Faoro, como “corrente subterrânea”, um corpo de ideias não convertido em pensamento político conectado de modo feliz com a ação. Conforme a interpretação faoriana esse liberalismo teria sido “arredado” da história política brasileira, com as decisões na política real sendo tomadas ao seu largo. Nabuco?

Na esquerda, ou seja, no mundo das contra elites, parece ter ocorrido algo similar com uma corrente específica dentro da “linhagem” de pensamento que Gildo Marçal Brandão chamou de marxismo de matriz comunista. Essa corrente, que trocou a perspectiva revolucionária pela do reformismo democrático e social, é deslocada no interior da esquerda desde a emergência, nos anos 60, da contestação nacional-popular (à qual se incorporou), depois pela resistência armada à ditadura, e, por fim pela interação desde o final do século passado e, mais tarde, numa estrutura de poder, do nacional-popular com uma concepção iliberal de democracia que crescera no petismo. É um link dos ideários do nacional desenvolvimentismo e da democracia de “alta intensidade” com perspectivas identitárias “pós modernas”, emergentes na sociedade civil. Isso tem levado a esquerda brasileira para ainda mais longe da perspectiva cosmopolita, institucional e incremental do reformismo democrático. Em que isso resultará? Difícil dizer mas uma das hipóteses é que essa esquerda arredada encontre, no campo liberal, a interlocução interditada na esquerda canônica. Afinal o liberalismo, ao contrário, parece “desarredar-se” a cada dia num país em que o acerto de contas com a Era Vargas parece caminhar para um estágio decisivo.

O que o senhor espera do novo presidente brasileiro?
Espera-se que a consciência da improdutividade do pragmatismo raso que ajudou a enfraquecer a pinguela apresse as tratativas políticas para que alguma candidatura moderada e reformista ainda tenha chance de chegar ao segundo turno. Se chegar, minha suposição é a de que vencerá as eleições. Se vencer espera-se que tente implementar a agenda que defendeu na campanha mas com o realismo político de flexibilizá-la para que as políticas sejam aprovadas pela via normal da democracia representativa. Se perder, espero que a agenda siga sendo defendida mesmo na oposição porém que estejamos atentos à necessidade – que é de toda a sociedade – do governo eleito governar.

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