Eugênio Bucci: O patrimonialismo e o atraso

“A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade as compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada, num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimi-dade se assenta no tradicionalismo – é assim porque sempre foi”

Raymundo Faoro

O livro Os Donos do Poder foi publicado em 1958, quando seu autor, Raymundo Faoro, completou 33 anos de idade. Passados quase 60 anos, os extensos trechos que descrevem os traços patrimonialistas do Estado e da sociedade brasileira parecem mais atuais do que nunca. Na raiz histórica dessa “forma de poder”, que remonta ao passado ibérico, o Estado não se distinguia do patrimônio pessoal do soberano. Depois, no “florescimento natural” desse “tipo de domínio” nas terras do pau-brasil, a propriedade privada não se distingue do naco de discricionariedade estatal que desfruta o político. Com o perdão da palavra, é uma desgraça.

Ainda ontem este jornal, o Estado, no editorial de alto de página, Sobre a imoralidade (A3), lamentou uma vez mais o apego dos costumes políticos brasileiros à doença ancestral diagnosticada por Faoro. O editorial comentava o episódio Geddel-Calero, de que o leitor já tem notícia. O atual ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, comprou um apartamento num edifício em Salvador cujas obras foram embargadas pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Diante do pequeno embaraço, Geddel pediu a Marcelo Calero, então titular do Ministério da Cultura (ao qual se subordina funcionalmente o Iphan), que desse uma, digamos, amaciada na situação e, sabe como é, desobstruísse o negócio. Calero não o atendeu. Em vez disso, resolveu se demitir e, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, alegou ter sofrido pressões de Geddel.

O interessante nesse caso é que o ministro da Secretaria de Governo, sem negar que tenha conversado com o agora ex-ministro da Cultura e sem negar que tenha feito mesmo a solicitação imobiliária ao seu colega de Esplanada, acha que não praticou nem disse nada de indevido. Em entrevista ao Estado (para Naira Trindade e Tânia Monteiro), permitiu-se mesmo certos ares de indignação: “Que ilegalidade há nisso? Qual a imoralidade que há em tratar desse tema com um colega meu?”.

Convenhamos que a profusa e prolixa legislação brasileira ainda não inventou o tipo penal “pedir ao ministro da Cultura que quebre esse galho para a gente e libere logo de uma vez um ou dois apartamentos embargados em Salvador”. Esse tipo penal ainda não consta da lei, ao menos não com essas palavras. Logo, em sentido superestrito, Geddel não praticou esse crime superespecífico. Mas o conflito de interesses do qual se vangloria, um conflito de interesses que zomba do princípio constitucional da moralidade, atordoa o observador de boa-fé. Se essa conversa o ministro admite como normal e inocente, o que não dizer das outras?

O editorial observa, com razão: “Se o Brasil realmente tem a intenção de superar seu crônico descompasso com o mundo desenvolvido, o primeiro passo deve ser a renúncia à velha prática do patrimonialismo.”

A questão que fica em aberto, no entanto, é desalentadora: quem conduzirá a renúncia ao patrimonialismo? O governo de Michel Temer? Bem se sabe que os governos Lula e – como era mesmo o nome dela? – Dilma não apenas não romperam com o patrimonialismo, como o turbinaram e o elevaram ao patamar de “negócios estruturados”, no bojo de um capitalismo anticoncorrencial de cartéis marcados. Bem se sabe, em suma, que os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, que foram eleitos com um discurso enfático de oposição às práticas viciadas do coronelismo, das oligarquias e dos parasitas da economia estatizada, além de não cumprirem suas promessas de combate à apropriação privada da coisa pública, cederam alguns de seus quadros mais proeminentes para o posto de aliados – e beneficiários – do problema. Disso já sabemos e isso é uma tragédia inominável. Agora, esperar que o PMDB cumpra essa dificílima renúncia talvez seja uma ingenuidade ainda maior do que ter acreditado nas promessas moralizantes de seus antecessores no Alvorada.

Em relação ao patrimonialismo histórico e endêmico no Brasil, o PT era um corpo estranho. Por isso podia representar uma esperança aos olhos dos eleitores. Quanto ao PMDB, em relação ao patrimonialismo pode-se dizer que, com todo o respeito, é farinha do mesmo saco. Mais do que isso. De algumas décadas para cá o PMDB, não contente em ser a farinha, assumiu também as vezes do saco que contém a farinha do velho e sempre novo patrimonialismo.

A coisa é grande e vasta. Não estamos falando de um desvio geddelino, de um ponto fora da curva, mas de uma cultura quase imemorial, um hábito, um modo de ver o mundo – e de uma engrenagem (um engenho) de acumulação que não esmorece. Ao contrário, o patrimonialismo entre nós demonstrou ser capaz de se aprimorar, soube lançar mão das tecnologias digitais, de planejamentos estratégicos mil e das teias internacionais de fluxo de capital para se reproduzir e se expandir. O patrimonialismo modernizou seus métodos para manter o Estado no atraso.

É assim que o atraso brasileiro se materializa numa ordem de privilégios, de um lado, e de excluídos, de outro – e cobra seu preço em corrupção. Embora seja verdade que nem toda corrupção é patrimonialista, não há como negar que, à luz das exigências do Estado de Direito, todo patrimonialismo é, em essência, corrupto e corruptor.

E quem é que vai romper com isso? A Presidência da República? A base que só pensa em anistiar o caixa 2? Difícil. Estamos falando de algo que “é assim porque sempre foi”.

* Eugênio Bucci – Jornalista, é professor da ECA-USP

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