Érica Gorga: Criminalidade e prisão em segunda instância

Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza a análise empírica.
Foto: Nelson Jr./SCO/STF (26/09/2019)
Foto: Nelson Jr./SCO/STF (26/09/2019)

Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza a análise empírica

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, ao proferir o voto que mudou novamente a cambiante jurisprudência da mais alta Corte, afirmou que não é a prisão após segunda instância que resolve problemas de criminalidade e de impunidade, ou evita a prática de crimes. No entanto, tal argumento retórico, defendido com forte emoção, não é amparado por estudos científicos que fundamentam a política criminal da grande maioria dos países.

Convém lembrar a Toffoli e aos demais ministros do STF, que repetem acriticamente argumentos de advogados criminalistas muito bem remunerados, que a hipótese sobre se a aplicação de punição severa (prisão) de modo mais ágil contribui ou não para a diminuição da criminalidade é empiricamente testável. Ou seja, tal hipótese pode ser considerada válida ou inválida a partir de análise empírica.

Cesare Beccaria e Jeremy Bentham, que lançaram as bases da criminologia nos séculos 18 e 19, respectivamente, entendiam o crime como produto de decisão de cálculo racional. Infratores avaliam a probabilidade de serem condenados e punidos, e quando ela é baixa se engajarão em mais práticas criminosas. Ambos defenderam a tese de que as leis e as penas devem desestimular indivíduos a cometer infrações, e que a prisão produz efeito preventivo, inibindo comportamentos criminosos em toda a sociedade.

Mas foi o professor Gary Becker, da Universidade de Chicago, que, em 1968, desenhou a análise criminal contemporânea, fomentando o surgimento de literatura abundante que instrui as políticas públicas na Europa, nos Estados Unidos e em outros países. Becker estabeleceu modelo matemático internacionalmente reconhecido para avaliar a criminalidade, contribuição que lhe valeu nada menos que o Prêmio Nobel de Economia em 1992.

O modelo de Becker usa variáveis sobre danos causados pelos crimes, custos de apreensão e condenação dos criminosos, número de crimes e formas de punição, entre outros fatores, para investigar as melhores políticas públicas de combate à delinquência. Atualmente há consenso internacional entre os estudiosos, amparado por estatísticas e metodologia científica, de que, mantidas outras variáveis constantes, o aumento na probabilidade de condenação e punição, em geral, repercute na redução do número de delitos.

Logo, dizer que a prisão após a decisão em segunda instância não contribui para solucionar problemas de criminalidade e impunidade, como fez Dias Toffoli, equivale a sustentar que a quimioterapia não auxilia no tratamento do câncer. Ora, estudos com evidências empíricas comprovaram que a quimioterapia é tratamento eficaz contra a doença, da mesma forma que foi demonstrado que a prisão é solução eficaz contra a criminalidade.

O resultado do julgamento do STF do dia 7/11 coloca o Brasil em posição isolada no mundo, conforme apontou estudo da subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, já que 193 dos 194 países da ONU adotam o início da execução da pena de prisão após decisão judicial de primeiro ou de segundo grau.

Pesquisas de Steven Levitt, da Universidade de Chicago, demonstram que a prisão impacta o crime em razão do efeito dissuasório sobre potenciais agentes criminosos. Levitt e Daniel Kessler testaram os efeitos de mudanças legais com incremento de penas de prisão para diversos crimes na Califórnia e concluíram que elas acarretaram a diminuição de ilícitos nos anos posteriores. Estudo de Siddhartha Bandyopadhyay analisou o impacto de condenações e prisões na Inglaterra e no País de Gales e concluiu que as prisões, no geral, fazem decrescer a criminalidade.

Becker também expôs que a probabilidade de condenação e punição é relacionada à renda do criminoso. Ao reconhecer o poder econômico de alguns litigantes, a literatura jurídica americana trata, cientificamente, de temas que entre nós ainda são verdadeiros tabus.

Por exemplo, artigo de John Goodman no Journal of Legal Studies já em 1978 argumentava que juízes podem ser persuadidos com os esforços financeiros das partes ao defenderem as suas causas, por meio de investimentos em pesquisa jurídica, contratação de advogados talentosos e argumentação mais bem formulada. Goodman apresentou modelo matemático em que a probabilidade de uma parte vir a ganhar um processo judicial dependerá do quantum em dinheiro que cada parte gasta para usufruir a melhor defesa.

O autor identificou que o Direito pode evoluir de maneira ineficiente para a sociedade quando os interesses da parte não refletirem os custos e os benefícios sociais agregados que decorrem da norma jurídica que está sendo questionada. Isso ocorre quando o resultado é bom para a parte, mas ruim para a sociedade.

Paul Rubin e Martin Bailey argumentaram que advogados têm interesse de longo prazo na jurisprudência resultante e exercerão pressão contínua para que ela evolua a favor de teses jurídicas que beneficiem seus clientes, atuando como grupo de interesses organizado. Os autores citam o caso da evolução da jurisprudência criminal que enfatiza questões processuais, assegurando a demanda por serviços advocatícios. Tal análise auxilia na compreensão do resultado do julgamento histórico do STF, já que uma das ações que suscitou a mudança jurisprudencial foi impetrada pela própria OAB.

Portanto, é de esperar que, dentre os cerca de 5 mil presos que se podem beneficiar da decisão do STF, os que têm mais recursos financeiros para despender na sua defesa perante o Judiciário sairão mais rapidamente da prisão, como já se vem verificando. Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza análise empírica, embora ela explique a certeza da impunidade para alguns e a insegurança jurídica em que vive a maior parte da sociedade.

Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza a análise empírica

*DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE

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