Elio Gaspari: Os juízes no deserto de juristas

Pesquisa sobre magistrados contou tudo e sua digestão ajudará o debate.
Foto: Carlos Moura/SCO/STF (10/10/2018)
Foto: Carlos Moura/SCO/STF (10/10/2018)

Pesquisa sobre magistrados contou tudo e sua digestão ajudará o debate

Os juízes brasileiros vivem num deserto de jurisconsultos. Isso foi o que revelou a pesquisa da Associação de Magistrados Brasileiros depois de ouvir 4.000 doutores ativos ou aposentados. Diante de um pedido para que citassem três juristas que viam como referências importantes para o direito brasileiro, mencionaram cerca de 3.000 nomes. Os professores Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho e Marcelo Burgos filtraram os mais citados e disso resultou uma lista de 47 juristas. Apesar de seus 196 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal só produziu nove nomes.

Da atual composição da corte entraram quatro: Luís Roberto Barroso, Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Barroso, com 320 citações entre os juízes de primeiro e segundo graus, só perdeu para o monumental Pontes de Miranda (1892-1979), autor de mais de 300 obras. Entre os ministros de tribunais superiores, teve uma solitária menção, enquanto Pontes de Miranda ganhou cinco. (Conhecendo o tamanho dos egos do meio, os professores listaram as preferências dos juízes por ordem alfabética.)

A cultura jurídica dos magistrados que responderam à pesquisa revela grande respeito por autores que lidam com o lado processual da máquina e, em alguns casos, por advogados que produziram competentes manuais. Exagerando, pode-se dizer que são como pilotos que leem tudo sobre o funcionamento das aeronaves, mas não consideram relevante a autobiografia de Charles Lindbergh, a primeira pessoa a atravessar o Atlântico, num voo solo de 33 horas a bordo de um monomotor. Podem ter razão.

Juristas como Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, ex-ministros do STF cassados em 1968, ficaram de fora. Na outra ponta, José Carlos Moreira Alves, procurador-geral do general Emílio Médici, nomeado para a corte em 1975, também não entrou. Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura de 1969 a 1974, teve uma citação, mas Francisco Campos, o grande jurista do Estado Novo, autor do preâmbulo do primeiro Ato Institucional, não se classificou.

É surpreendente que entre os autores das 15 obras acadêmicas e filosóficas mais citadas pelos magistrados estejam apenas dois americanos. Isso numa época em que o direito brasileiro sofre as dores do parto da delação premiada e se discute a introdução de um mecanismo da “plea bargain” sem que haja sequer tradução consolidada para o instituto. (O ministro Sergio Moro diz que é “solução negociada”, mas há quem fale em “transação penal”) Mais de 80% dos magistrados brasileiros gostam da ideia. É verdade que o direito americano é diferente do brasileiro, mas, se o negócio é importar jeans, rock e leis, a discussão melhorará quando alguém citar Oliver Wendell Holmes (1841-1935), um campeão das liberdades públicas que ainda por cima combateu pelo Norte durante a Guerra da Secessão.

O relatório da pesquisa chama-se “Quem Somos — A Magistratura que Queremos” e está na rede. Foram 198 questões que produziram cerca de 800 tabelas. É um tesouro em si porque mergulhou na vida dos magistrados e, acima de tudo, porque a equipe de professores fez esse mesmo trabalho há 20 anos. Desta vez, sua realização foi coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Poucos países do mundo puderam fazer a mesma coisa. Sua completa digestão deverá levar algum tempo.

Quem quiser começar a examiná-la partindo de temas atuais, pode ter um auxílio começando pela questão 176, a da “situação de moradia”: 70% dos juízes de primeiro grau e 93% daqueles do segundo grau vivem em casa própria.

 

Privacy Preference Center