Elio Gaspari: No filme de Tancredo, uma aula para hoje

Vem aí uma aula de política. É o filme "O Paciente", de Sérgio Rezende. Conta a agonia e morte de Tancredo Neves, em 1985. Na véspera de sua posse, o presidente eleito foi internado às pressas para o que seria uma cirurgia banal, talvez de apendicite.
Foto: Reprodução/O Paciente
Foto: Reprodução/O Paciente

Vem aí uma aula de política. É o filme “O Paciente”, de Sérgio Rezende. Conta a agonia e morte de Tancredo Neves, em 1985. Na véspera de sua posse, o presidente eleito foi internado às pressas para o que seria uma cirurgia banal, talvez de apendicite. Os médicos e os hierarcas de Brasília informaram que ele sairia do hospital em poucos dias, e os principais jornais do país noticiaram sua alta iminente em dez ocasiões. Tancredo entrou no Palácio do Planalto 36 dias depois, para o velório.

O filme conta uma história dramática de erros médicos, dissimulações e mentiras que hoje soam como uma narrativa concatenada. Para quem tem menos de 40 anos, o drama faz sentido e seu desfecho é minuciosamente exposto, mas, à época, tudo o que hoje se vê no filme era segredo.

“O Paciente” é uma aula. Mostra como se mentiu e como se manipulou a opinião pública. Horas depois da primeira cirurgia, oficialmente bem-sucedida, Tancredo teve uma parada respiratória e quase morreu, mas isso foi escondido. Daí em diante, tudo o que podia dar errado, errado deu.

Othon Bastos, o Corisco de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, é um Tancredo impecável, apesar dos muitos quilos a mais. Suas expressões ressuscitam o memorável mineiro. Paulo Betti como o “professor doutor” Henrique Pinotti é um primor na exposição de um intrujão megalomaníaco e exibicionista. O egocentrismo das equipes médicas não tem exageros e é coisa de dar medo a quem entra hoje num hospital.

Quem matou Tancredo? Todos os personagens do filme, inclusive ele, que escondia seus padecimentos. Suas dores abdominais haviam começado em janeiro e ele se iludia tomando antibióticos. Deixou que os médicos falassem em apendicite, mas sabia que extraíra o apêndice havia 50 anos. (Essa é a única imprecisão do filme, pois informa que o apêndice estava lá.)

A morte de Tancredo mutilou a base da redemocratização do país, pois colocou na Presidência o vice José Sarney, assombrado pela contestação de sua legitimidade. As pessoas foram dormir esperando que na manhã seguinte veriam Tancredo com a faixa e acordaram com Sarney vestindo-a. A posse do ex-presidente do partido da ditadura era constitucional, mas não fazia sentido. Tudo bem, porque Tancredo ficaria bom.

Passaram-se 33 anos e hoje não há médicos na crise, mas algumas coisas também não fazem sentido. Assim como fingia-se que Tancredo reassumiria, finge-se que Lula preso, com 39% das preferências na pesquisa do Datafolha, é apenas um detalhe. Lula foi condenado em duas instâncias e garante que nunca ouviu falar das roubalheiras petistas. Ainda assim, em vez de cair nas pesquisas, sobe.

Em 1985, fez-se o que a lei mandava. Em 2018, faz-se o que a lei manda, mas pode-se intuir o tamanho da próxima crise. Felizmente, agora pode-se escolher o próximo presidente.

UMA GRANDE VIAGEM À RÚSSIA DE TODOS OS TEMPOS
Está chegando às livrarias “A Lanterna Mágica de Molotov – Uma viagem pela história da Rússia”, um dos melhores retratos da terra do czarismo, do comunismo e do putinismo. A autora, Rachel Polonsky, é professora da Universidade de Cambridge e chegou a Moscou com um projeto de pesquisa literária. O acaso levou-a a alugar um apartamento no edifício onde vivera a nata da elite soviética. Outro acaso levou-a a encontrar um vizinho banqueiro que ocupava o apartamento de Molotov, o ministro das Relações Exteriores de Stálin. Mais um, e ela viu que a família do hierarca deixara por lá muitos livros e objetos. O banqueiro franqueou-lhe o tesouro. Molotov tinha uma volume de poemas de Anna Akhmatova (“a freira prostituta”, segundo Stálin), de Marina Tsvetáieva (matou-se na Sibéria) e de Osip Mandelstam (morto a caminho do Gulag, chamava Molotov de “meia pessoa”).

A viagem de Polonsky pela Rússia foi de Moscou ao Ártico, até Vladivostok, no mar do Japão. “A Lanterna de Molotov” não tem cronologia e seu roteiro é irrelevante. É o livro de uma autora erudita, que busca significados, misturando lugares e poetas, “uma barafunda do passado, causada por livros e lugares”.

É na barafunda que está a mágica do livro, que mostra sem querer ensinar. A rua onde viviam os hierarcas era fechada por milicianos e hoje é povoada por agentes de empresas de segurança privada, com coletes a prova de balas. Ela vai da casa de banho de uma protegida de Catarina, a Grande, às casas de campo da elite cultural soviética, onde viveu um charlatão que prometia plantar trigo para colher cevada. Com a ajuda de Dostoievsky, Polonsky visitou em Novgorod a semente da Rússia de outrora, recuperada por Vladimir Putin.

O apartamento de Molotov foi vendido a um produtor de TV que já comprara outro, o último lar de Leon Trótski em Moscou. Sua mulher tinha uma galeria de fotos. Uma delas, com Miuccia Prada, a dos sapatos.

FARRA FINAL
Na sua farra de fim de governo, nomeando diretores de agências reguladoras com mandatos de vários anos, o governo se superou. Foi reanimado o Conselho de Saúde Suplementar, inativo desde 2000, quando suas atribuições passaram para a Agência Nacional de Saúde. Até aí, mais uma boquinha, mas a medida incluiu um jabuti, criando uma câmara técnica “destinada à análise técnica de resoluções pretéritas”. Rever decisões tomadas há 18 anos seria coisa inútil, a menos que elas ricocheteiem, mexendo em normas criadas pela ANS.

Seria mais fácil fechar a ANS, entregando suas funções às operadoras amigas.

MARIN E SEU GATO
A sorte, essa trapaceira, fez com que num mesmo dia a Mesa da Câmara cassasse o mandato de Paulo Maluf e a Justiça americana condenasse o detento José Maria Marin a quatro anos de prisão.

Maluf foi governador de São Paulo de 1979 a 1982, quando deixou o cargo para disputar a eleição presidencial indireta. (Ele foi derrotado por Tancredo Neves.) Marin, seu vice, governou o Estado por quase um ano.

Estranho personagem o doutor Marin. Vivia num apartamento de abonados e um de seus vizinhos, o empresário Paulo Cunha, percebeu que sua conta de luz estava absurdamente alta. Foi atrás e descobriu que Marin tinha um “gato” roubando energia de sua rede. Até aí, golpe velho, mas a fé de Marin na própria impunidade era tamanha que, quando o repórter Juca Kfouri contou o caso, ele processou-o. O juiz que derrubou a queixa reconheceu que o cartola teria todos os motivos para processá-lo, salvo pelo fato de que a informação era verdadeira.

Maluf está em prisão domiciliar no seu palacete paulista e Marin rala na carceragem de Nova York.

ETIQUETA
Michel Temer é um homem formal. Dá a impressão de que dorme de paletó e gravata. Por isso, bem que podia pedir aos ministros Moreira Franco e Raul Jungmann para calçarem meias quando forem a uma reunião pública no Jaburu, mesmo que ela aconteça num domingo.

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