Elimar Nascimento: A política quântica

O livro de Giuliano Da Empoli, Os engenheiros do caos, é um livro pequeno, mas que produz uma enorme inquietude nos espíritos daqueles que não concordam com o novo populismo, seja ele de esquerda ou de direita.
Foto: Reprodução/UnB
Foto: Reprodução/UnB

O livro de Giuliano Da Empoli, Os engenheiros do caos, é um livro pequeno, mas que produz uma enorme inquietude nos espíritos daqueles que não concordam com o novo populismo, seja ele de esquerda ou de direita. Aliás, em alguns casos, como na Itália, o maior partido populista (Movimento 5 Estrelas) ignora esta distinção e ganha eleitores de uma parte e de outra. Na Alemanha, o partido populista Alternativa para a Alemanha (AFD) e, na França, o Front Nacional de Le Pen fazem o mesmo. Ganham eleitores da direita e da esquerda. Redutos de eleitores comunistas, socialistas e sociais democratas deslocam-se no apoio a estes partidos. Hoje, o AFD é a terceira força política na Alemanha e Le Pen a segunda na França.

Ao final da leitura, tentando visualizar a imagem que fica do livro, veio-me a representação da física quântica. Aparentemente, ela define melhor o que é a configuração da política populista no mundo moderno. A física newtoniana descreve um mundo mecânico, em que uma certa causa produz uma certa consequência. A unidade última das coisas é o átomo, dotado de propriedades estáveis. A física quântica explode o átomo e salpica nosso mundo de paradoxos que desafiam a racionalidade científica. Nela, uma realidade objetiva não pode existir, pois um simples “olhar” muda a trajetória de uma partícula, que pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo. Assim, duas verdades podem existir sem que uma invalide a outra. Cada observador determina a sua própria realidade. Esta é a nova configuração da política hodierna, uma política quântica. É sobre esta base, movediça, que se erguem os novos populismos.

No livro, publicado pela Editora Vestígio no Brasil, Giuliano Da Empoli estuda a ascensão do populismo no mundo atual, citando várias situações, entre as quais a de Israel (Benjamin Netanyahu), França (Coletes Amarelos) e Brasil (Jair Bolsonaro). Centra-se, contudo, no estudo de quatro exemplos: Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump; Inglaterra, com a votação do Brexit; Hungria, com a permanência no poder de Viktor Orban; e Itália, o “Valle do Silício” do populismo moderno, com a constituição e ascensão ao poder do Movimento 5 estrelas (M5E). Este é o partido-algoritmo que nasce em 2010, sob a direção de um comediante, Giuseppe Pierre Grillo, conhecido como Beppe Grillo. Mas, estes personagens ou movimentos são os visíveis, aqueles que podemos ver nos meios de comunicação. O que o cientista politico ítalo-francês, formado na Science Politique de Paris, nos mostra é mais interessante. Mostra os feitores do sucesso destas novas forças políticas e, sobretudo, as práticas que lhes deram a vitória. Mostra quem são aqueles que trabalham nas assessorias, nas sombras, para produzir estas vitórias “inesperadas”, e como eles trabalham: físicos, matemáticos, engenheiros, tecnólogos e estatísticos. Porque a vitória eleitoral destas novas forças políticas depende mais destes novos profissionais do que de cientistas políticos e comunicadores. Da Empoli desvela essas feições que a maioria de nós não tem nem ideia. São eles, entre muitos outros: Gianroberto Casaleggio (Itália), que aliado ao comediante Beppe Grillo cria o partido-algoritmo M5E; Dominic Cummings (Inglaterra), que conduz o movimento Brexit ao sucesso, quando as expectativas eram inversas; Steve Bannon (EEUU), o grande estrategista de Donald Trump, que revolucionou sua campanha eleitoral, e seu auxiliar, o inglês Milo Yiannopoulos; Andrew Breitbart, o mestre de Bannon; e Arthur Finkelstein, americano nova-iorquino que leva Benjamin Netanyahu a vencer Simon Perez, em Israel, e leva Orban ao poder na Hungria.

São realidades distintas as estudadas pelo autor, e como era de se esperar cada qual com suas diferenças, suas especificidades. Mas, elas têm elementos comuns. São estes, e não o específico de cada local, o que tem de mais relevante no livro. E que tentaremos mostrar aqui, de forma breve, em nove pontos.

As elites como inimigas, a inexperiência como qualidade. À semelhança dos demagogos na Grécia antiga e dos nazistas e fascistas dos anos 1930, os principais adversários do populismo moderno são as elites: financeiras, políticas e intelectuais. Para os seus eleitores, as elites constituem uma casta blindada formada por traidores do povo e da nação, indivíduos corruptos. No slogan dos líderes populistas, o mundo assiste, hoje, à revolta dos povos contra as elites globais, o capital financeiro, a intelectualidade de esquerda e, sobretudo, os políticos e partidos tradicionais, tanto de esquerda, quanto de direita. O comediante Beppe Grillo e os ministros do primeiro governo do M5E, em 2018, são neófitos na política e inexperientes no trato da coisa pública. Para seus eleitores, é sinal de pureza, de distanciamento das elites. Prova de que são “bons políticos”.

A política sem cortesia, a grosseria como valor. Em todos os casos estudados (EEUU, Itália, Hungria e mesmo Israel e Brasil) os líderes populistas são diretos, grosseiros, sem “papas na língua”. Isso, que poderia ser defeito, é lido como qualidade por seus leitores. É sinal de autenticidade. Traços que os distinguem das elites políticas, que seus eleitores odeiam e culpam por todos os males que sofrem: a perda de emprego e renda; as dificuldades no acesso aos serviços de saúde e educação de qualidade; o transporte sofrível e a habitação cara; a violência urbana; a ameaça à família tradicional, com os novos formatos; o desmoronamento dos valores tradicionais, por práticas discursivas dos esquerdistas e as ameaças imaginárias, provindas dos imigrantes, entre outros.

A política populista vive da mentira. Arthur Finkelstein define com clareza este aspecto da política do moderno populismo: “ninguém sabe de nada e o que você percebe como verdade passa a ser verdade”. O bom político é o cara que diz uma série de coisas verdadeiras para, em seguida, dizer uma série de coisas falsas. Uma mentira tem em média 70% mais chances de se propagar do que uma verdade. Como já dizia Mark Twain “uma mentira pode fazer a volta ao mundo no mesmo tempo em que a verdade calça seus sapatos”. No meio dos eleitores do populismo, um líder que agrega Fake News (FN) a sua narrativa é um homem de ação, que constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus seguidores. Pois, para estes, a veracidade dos fatos não conta. O que importa é a versão explicitada pelo líder, pois para os eleitores do populismo “Ele sabe, ele conhece, ele diz o que pensamos e sentimos. Ele diz a verdade”.

A raiva e o medo como motores da ação. A propaganda do populismo moderno é assentada nos sentimentos de raiva, medo e rancor, existentes no âmbito de pequenos grupos extremistas e, de maneira difusa, na grande massa dos seus eleitores. Os primeiros compõem o núcleo duro de seus apoiadores, que se mobilizam, investem, agem. Soldados em combate nas redes sociais, espalhando Fake News para todo lado. A estes, soma-se a grande massa dos eleitores que se sentem ameaçados por inimigos reais ou imaginários que são os imigrantes, a globalização, a União Europeia, a valorização da diversidade cultural, os valores tradicionais ameaçados pelas mudanças dos costumes etc.

É interessante observar como a raiva é o afeto narcisista por excelência, segundo os psicólogos. Afinal, a raiva é uma grande fonte de energia em pleno desenvolvimento no mundo inteiro. Por sua vez, ela é agudizada pelas redes sociais. Os líderes populistas a compreendem e a justificam: “a culpa é dos outros e você pode se tornar um soldado pela justiça, agregue-se a nós”. O mote da vitória do Brexit era: descubra porque as pessoas estão com raiva, identifique o quê, diga que a culpa é da Europa e peça para ela votar contra a Europa.

A xenofobia é outro traço do populismo moderno. Em todos os países que as forças populistas ascenderam, o nacionalismo é um elemento central dos discursos de seus lideres. Como diz Orban: “não queremos nenhuma minoria com patrimônio cultural diferente do nosso”. O sentimento anti-imigração reúne a direita e a esquerda sob o manto do novo populismo. Dessa forma, apenas repetem uma das características do nazi-fascismo dos anos 1930.

A propaganda costumizada e o fim dos programas partidários. As redes cultivam a cólera, exacerbam os conflitos de forma generalizada. Aproveitando deste fato, a publicidade populista rearticula os conflitos e os substitue pelo conflito entre “nós” e “eles”, o povo e as elites. Alimentada, sobretudo, pelas emoções negativas como a raiva e a cólera; aproveitando do escárnio dos excluídos como ferramenta para dissolver as hierarquias e o medo para mobilizar as pessoas em ações pouco racionais, a propaganda populista cria uma mensagem em conformidade com as características de cada eleitor. E tudo isso sem a necessidade de ter coerência no coletivo, pois cada um recebe a mensagem que lhe cabe. Ninguém sabe o que o outro recebe, só o centro da propaganda conhece cada um e os seus sentimentos. Não existe comunicação horizontal, só vertical. Para cada eleitor identificado e caracterizado pelos computadores é produzida uma mensagem particular, pessoal, com variações e modalidades distintas, e em grande quantidade. Trump emitiu 5,6 milhões de mensagens desta natureza; Hillary, sua rival, 66 mil.

As mensagens produzidas nos computadores visam mobilizar seus eleitores e desmobilizar os eleitores do adversário. Permita-me utilizar o exemplo de Trump, que está mais perto de nós brasileiros para explicar este último aspecto. Nas vésperas das eleições, a campanha dele enviou mensagens particulares para eleitores de Hillary, particularmente três grupos. Aos que apoiaram o candidato democrata que perdeu as primárias para Hillary, Bernie Sanders, foram enviadas mensagens das relações de Hillary com o mundo financeiro. Para as jovens mulheres, eleitoras do Partido Democrata, mensagens sobre “desvios” sexuais da família Clinton. Finalmente, para os afro-americanos foram enviados trechos de discursos da adversária, em geral retirados de seu contexto, que se referiam de maneira indelicada ou grosseira aos negros americanos. As mensagens legais, que tinham algum respaldo na imprensa, em relatórios ou livros eram enviadas pela central da campanha de Trump. As mensagens ilegais, Fake News sobre os mesmos temas, eram enviadas por centenas de centros distribuídos no mundo, inclusive São Petersburg, na Rússia.

A política tornou-se uma tarefa de softwares. O método dos assessores dos líderes políticos populistas, em todo o mundo, é o microtargeting: análises demográficas sofisticadas, levantamento de dados nas redes sociais e sondagens eleitorais constantes, correlacionadas por máquinas inteligentes e superpotentes. Identificar os eleitores, seus gostos, dúvidas e raivas é o objetivo primeiro. Com isso, produz-se mensagens customizadas em função dos rancores e dúvidas de cada eleitor. Como diz Dominic Cummingis: “Se você quer fazer progresso em política, contrate físicos ao invés de cientistas políticos e comunicadores”. O físico está habituado a trabalhar com uma infinidade de dados, o que não estão os cientistas políticos. Na física, o comportamento de uma partícula não é previsível, mas o de aglomerados, é. Pela observação do sistema é possível prever o médio, estabelecer padrões. O sistema possui características e regras que o tornam previsível. Os físicos e estatísticos sabem usar métodos de simulações dos sistemas, convergência para solução ótima e correlações entre as variáveis. Há 10 anos atrás, os dados não permitiam trabalhar com os aglomerados humanos, hoje sim. E cada ser humano pode ser tratado como uma variável de um sistema simulado.

Com a internet das coisas e o Big Data, teremos uma profusão de dados ainda maior sobre as pessoas, que permitirão fazer uma política de convencimento e mobilização como jamais vista no mundo. Cada eleitor receberá uma mensagem adequada ao seu perfil, e nenhuma outra pessoa saberá, salvo o centro emissor e controlador dos dados. E essa propaganda escapa a qualquer forma de controle.

O centro político se esvazia, os extremos crescem. Com a propaganda personalizada, o jogo político não consiste mais em reunir as pessoas em torno de um denominador comum, um programa de ideias e proposições, mas inflamar as paixões, estimular os grupelhos nos extremos e depois adicioná-los, mesmo à revelia. Unir os extremos e impedir os eleitores de convergirem para o centro.

Afinal, a política dos populistas é como um carnaval. Não há lugar para observador na política populista, todos são atores. Não há lugar para comportamentos politicamente corretos, tudo é gozação e grosseria. O intelectual progressista é um pedante, e é preciso ridicularizá-lo. Não existe compromisso com a verdade, com os fatos, mas apenas com a brincadeira, a narrativa do líder populista. Antes, havia opiniões e interpretações diferentes em torno dos mesmos fatos. Agora não, os fatos são distintos e existem ou não em função da narrativa de cada um, da verdade de cada pessoa. O carnaval não se afina com o bom senso, nem com a racionalidade habitual, ele tem sua própria lógica. Está concentrado na intensidade da narrativa e não na exatidão ou veracidade dos fatos.

Como dizem os especialistas em organização e mobilização, o absurdo é um fator organizacional mais eficaz do que a verdade. O carnaval da política populista se alimenta de dois elementos: a cólera de alguns meios populares e uma máquina superpotente de dados. Se Lênin dizia que o comunismo nascia do casamento dos sovietes e da energia, os engenheiros do caos afirmam que o populismo nasce do casamento da cólera com os algoritmos.

Para finalizar, duas conclusões de caráter mais geral: a) uma máquina superpoderosa irrompeu na política, transfigurando-a; b) as campanhas eleitorais se transformaram em guerras entre softwares. O jogo eleitoral mudou. Antes, predominava uma força centrípeta, ganhava quem ocupava o centro do corpo eleitoral. Agora, domina a força centrífuga, que estimula os grupelhos extremistas, radicaliza-os e, depois, agrupa-os no dia das eleições. A mensagem agora é individual e pode ser contraditória sem que ninguém perceba. O líder político se torna um homem oco, pois sua vontade é ditada pelo que as máquinas conseguem captar dos sentimentos dos indivíduos. Dessa forma, e de maneira surpreendente, as minorias intolerantes ditam o rumo da história em alguns países. Assim, a vitória dos líderes populistas depende da existência do apoio de uma minoria intolerante e de uma maioria tolerante. Afinal, os extremistas se tornaram o centro do sistema político.

Nem tudo está perdido, porém. Um sistema movido por uma força centrífuga escapa do ponto de equilíbrio e fica cada vez mais instável. E elementos de instabilidade concentram-se em diversas dimensões no mundo. Na economia, observa-se o aumento acentuado das desigualdades; no plano internacional, o crescimento exacerbado do nacionalismo e da xenofobia; na cultura, a intolerância cresce em relação aos que pensam diferente; na política, registra-se o crescimento das forças extremas do leque ideológico; no social, constata-se o incremento dos processos de exclusão social. Finalmente, na dimensão ambiental, a crise ecológica não é corretamente enfrentada com riscos crescentes para as condições da vida dos humanos, senão da sua própria existência. Tudo isso causa uma enorme instabilidade no mundo e não sabemos quando ocorrerá a ruptura. E, sobretudo, para onde ela nos levará.

De toda forma, há sinais interessantes de reação, inclusive no berço do populismo moderno, a Itália, como o movimento conhecido como das Sardinhas. Vale a pena conhecê-lo.

*Sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (René Descartes, 1982), e pós-doutorado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor do livro Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (FAP, 2020).

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