Elena Landau: Sem rumo, sem laços

Bolsonaro vive em outra dimensão; não indica estar preocupado com a crise.
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Bolsonaro vive em outra dimensão; não indica estar preocupado com a crise

Ken Loach fez um filme forte. Para mim, mais perturbador que Parasita ou Coringa, muito bons e grandes vedetes do ano. Mas nesses me senti distante daquelas realidades, apesar da relevância da discussão sobre desigualdade de renda, pobreza e violência retratados. Em Você Não Estava Aqui, a experiência foi oposta. A direção é seca, com atores excepcionais, sem trilha sonora ou glamourização na atuação e na cenografia. A vida como ela é.

Cansado de pular de emprego, dos patrões e da falta de oportunidades compatíveis com sua experiência, Ricky resolve se arriscar e virar autônomo. Vai ser entregador de encomendas. É avisado na partida de todos os riscos que estava correndo, tanto pelo contratante de seus serviços quanto pela própria mulher. Mas se joga. Não vê alternativas. A realidade, no entanto, se revela muito pior que imaginava.

O filme é visto como uma denúncia sobre a precarização das relações trabalhistas. É mais que isso. Há questões importantes ali levantadas, como a queda do padrão de vida após a recessão de 2008, os adolescentes que perdem interesse no ensino tradicional e a terrível realidade da falta de emprego para a meia-idade. Todos temos por perto alguém vivendo a mesma situação de desesperança. É o retrato de uma família que poderia ser a nossa. Um soco no estômago.

É passado no Reino Unido, mas faz pensar sobre Brasil. O impacto da nova revolução tecnológica sobre mercado de trabalho ou a necessidade de adaptação do currículo escolar, que evite a evasão de jovens, são temas comuns. A grande diferença está na rede de proteção social, que aqui não existe. Lá, serviços públicos ajudam a família a lidar com a situação por eles inesperada. Transporte que permite à mulher, mesmo que com muito sacrifício, manter seu emprego como cuidadora; acesso à rede de saúde, e uma escola que mantém um acompanhamento rigoroso da frequência e desempenho dos filhos.

Aqui, o País está despreparado e, pior, parece despreocupado para enfrentar a revolução tecnológica disruptiva dos dias atuais. Muitas profissões estão deixando de existir. O assunto é sério, por isso, é injustificável a indiferença com a requalificação, ou mesmo a qualificação, do trabalhador brasileiro. O abandono da área de Educação, a mais importante porta para igualar oportunidades, hoje comandada por um incapaz, é mais que chocante. É criminosa.

A indiferença social deste governo está por toda a parte. O desmonte do Bolsa Família, as filas no INSS e a desumanidade na prova de vida convivem com a proteção à indústria e o gigantismo do Estado. Pequenos arroubos liberais não atingem a elite empresarial ou as fortes corporações. Não há privatização, abertura comercial ou eliminação de isenções e créditos tributários. A competitividade e a produtividade seguem baixas, e não geram emprego nem em quantidade nem com qualidade necessárias. O governo é liberal na pregação, mas capenga na prática.

E agora temos uma crise recessiva e humanitária com o coronavírus para aprofundar os problemas que já temos, que vai exigir respostas mais efetivas. Frustrados com o fraco desempenho da economia, muitos vaticinam: “o modelo liberal não deu certo”. A verdade é que ele nem sequer foi testado. Faltaram políticas públicas que gerem igualdade de oportunidades, mobilidade social e assistenciais, que terão que ser ampliadas em tempos de covid-19. Nesse ambiente, a pressão pelo abandono do controle de gastos aumentou e o apelo ao retorno ao que já deu errado cresce.

A única resposta para uma sociedade atônita foi a insistência de Guedes nas reformas. A lista de “prioridades” do ministro de Economia é longa e confusa. Traz 19 projetos e 48 propostas. A falta de empatia dos governantes com a população assusta.

As reformas são importantes, claro, mas já o eram no 1.º dia de mandato. A Previdência foi aprovada na Câmara em junho do ano passado. Nada mais aconteceu nesses nove meses. O governo não se empenhou sequer na votação da PEC, que traz “emergência” no nome. A desarticulação e o despreparo são reflexo de um governo que tem desprezo pela política e pela democracia.

Indiferente, o presidente mantém sua briga pessoal contra os Poderes Legislativo e Judiciário. Nada indica que esteja preocupado com a grave crise nacional e internacional. Vive em outra dimensão. Não há uma resposta para a crise. Um retrato do liberalismo sem alma e sem direção deste governo.

O filme de Ken Loach termina com um pedido: “Quero voltar ao que tínhamos antes”. Impossível. Não tem volta.

* Economista e advogada

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