El País: “Bolsonaro acredita no ‘líder acima de tudo’, inclusive da saúde da população em tempos de pandemia”, diz Finchelstein

Foto: Kike Para/El País
Foto: Kike Para/El País

Federico Finchelstein, historiador argentino, diz que mentiras do presidente aplicam método fascista: “O que diz acaba se tornando um artigo de fé e não algo que tenha a ver com a realidade”

O historiador argentino Federico Finchelstein é um dos principais especialistas em fascismo e populismo, autor de livros como Do Fascismo ao Populismo na História e As Origens Ideológicas da Guerra Suja ―sobre a ditadura militar argentina, sem versão em português―, além de obras sobre o holocausto e a Alemanha nazista. Para 2020 prepara Uma Breve História das Mentiras Fascistas, no qual dedica uma parte ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, visto por Finchelstein como uma das lideranças populistas mais próximas ao fascismo. Ele chegou a escrever na revista Foreign Policy durante as eleições de 2018 que o bolsonarismo se inspirou no manual nazista de propaganda lançado por Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler entre 1933 e 1945.

Em entrevista ao EL PAÍS por telefone, o professor da New School for Social Research afirma que “existe um claro golpismo” nas manifestações a favor do Governo do domingo passado (15), por causa das mensagens contra os demais poderes. Também afirma que as mentiras ditas por Bolsonaro e outros líderes ultranacionalistas e da extrema direita, como Donald Trump (Estados Unidos) ou Matteo Salvini (Itália), os aproximam mais do fascismo do que do populismo. “Esses líderes acreditam em suas próprias mentiras, em suas próprias fantasias, até que a realidade se impõe sobre elas”, explica.

Pergunta. No domingo passado, manifestantes gritavam palavras de ordem a favor do Governo Bolsonaro e contra o Congresso e o STF. Muitos inclusive pediam uma intervenção militar e um novo AI-5. O presidente chegou a romper sua recomendação de isolamento por causa do coronavírus para cumprimentar manifestantes. Como enxerga tudo isso?

Resposta. Existe um claro golpismo apoiado por um líder post fascista e que gostaria de ser um ditador fascista. Por um lado, os bolsonaristas têm o direito de se organizar e de participar de todas as reuniões que queiram. Mas uma manifestação contra o Congresso e a independência dos poderes está mais próxima dos atos fascistas ou das manifestações pró-Pinochet que de uma manifestação democrática. Está nas mãos da cidadania, da oposição, da imprensa e dos poderes independentes defender a democracia brasileira.

P. Há provas de que os atos foram impulsionados pelo próprio Governo Bolsonaro, inclusive através de canais oficiais. Com a pandemia do coronavírus, o presidente chegou a fazer pronunciamento em cadeia nacional desencorajando o que chamou de manifestações “espontâneas”. Em outros países governados pela extrema direita já aconteceu algo parecido?

R. Acontece o mesmo tipo de situação em diferentes governos, que se apoiam em diferentes atos massivos. Donald Trump costuma fazer atos não nas ruas, mas em estádios. A pergunta é: por que essa mentira de que são espontâneas, de que não são organizadas? Ou inclusive por que fazem durante a crise do coronavírus? Me parece um exemplo claro da demagogia Bolsonaro, de suas ideias políticas com raízes fascistas acima de tudo. É, principalmente, o líder acima de tudo, inclusive da saúde e do bem-estar da população em tempos de pandemia.

P. Como avalia o Governo Bolsonaro até aqui?

R. Do ponto de vista democracia a avaliação não poderia ser mais negativa. Bolsonaro, dentro do que é a história do populismo, é um dos populistas mais extremistas que existe. E o mais próximo ao fascismo. É uma pessoa que vem degradando a democracia de várias formas, demonizando a oposição, a imprensa… Mas a questão vai além de adjetivos. Existe uma ideologia por trás de sua vulgaridade que, em um ponto, vai se distanciando do populismo e se aproximando do fascismo.

P. Qual é a diferença entre os dois conceitos?

R. O populismo é uma forma autoritária de democracia e o fascismo praticamente destrói a democracia por dentro para criar uma ditadura. Não podemos dizer que, neste momento, existe um governo fascista no Brasil porque, sobretudo graças à sociedade civil e à imprensa, Bolsonaro não conseguiu destruir a democracia como ele gostaria e como já expressou em distintos momentos. Mas a história de Bolsonaro é a história de um governante que tenta destruir essa sociedade civil e democrática. Depende dos brasileiros que não consiga.

P. Mas quais são os parâmetros para dizer que Bolsonaro (e também líderes como Donald Trump e Matteo Salvini) estão mais próximos do fascismo que do populismo?

R. O fascismo tem três elementos. O primeiro, e principal, é a xenofobia e o racismo direcionados a distintas minorias. Não necessariamente é um elemento central da maior parte dos populistas. Pensemos nos casos do Brasil, que viu um populismo de viés corporativo de Getúlio Vargas o de viés neoliberal como o de Fernando Collor de Mello. A xenofobia não era elemento central desses governos.

O segundo elemento é a violência política, central para o fascismo. E neste caso existe uma dúvida: lembremos que pessoas próximas de Mussolini assassinaram alguns líderes da oposição; no Brasil, temos visto certa proximidade da família Bolsonaro com milicianos [que controlam territórios no Rio de Janeiro e influenciam na política local] e os supostos assassinos da vereadora Marielle Franco.

E, finalmente, o terceiro elemento principal é a ditadura. E o mero fato de que estejamos conversando mostra que este elemento ainda não chegou no Brasil, já que não existe liberdade de imprensa na ditadura. Nesse sentido, o que temos por ora é uma proximidade bastante preocupante do populismo de Bolsonaro ao fascismo. Ele fala como um fascista, mas governa como um fascista? Acredito que a resposta tem a ver não apenas com o que ele quer fazer, mas sim com os limites que os brasileiros colocam.

P. Mas os populistas não abraçam alguns desses elementos?

R. Entre os populistas não existe o uso da violência política nem a discriminação, a xenofobia e o racismo. E, diferentemente do fascismo, os populistas de esquerda e de direita tem uma concepção de povo muito diferente. Para o fascismo, o povo está baseado em qualidades étnicas e religiosas. Para o populismo, o povo são aqueles que votam no líder. É uma ideia autoritária, uns são o povo e outros são os antipovo. Mas, ainda que seja autoritária, é uma definição baseada nas ideias, e não necessariamente em conceitos étnicos e religiosos. E isso vai de Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón a Collor de Mello, Berlusconi ou Chávez. O que vemos em líderes como Trump, Bolsonaro, Modi [primeiro-ministro da Índia] ou Salvini é que o povo passa a ser entendido de outra forma. Se Bolsonaro define os brasileiros como cristãos, o que acontece com aqueles que não acreditam em Deus?

P. Você chegou a escrever durante a campanha que de 2018 que Bolsonaro estava mais próximo de Goebbels que do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi.

R. Existe um quarto elemento do fascismo que é a mentira. E acredito que Bolsonaro, Trump ou Salvini mentem como fascistas, e não como populistas. Historicamente, os populistas não se atrevem a deixar de lado as evidências mais óbvias. Nesses casos, a mentira é mais demagógica, cínica. É propaganda, eles não acreditam em suas mentiras.

Mas quando digo que mentem como fascistas, é porque esses líderes acreditam em suas próprias mentiras —até que a realidade se impõe sobre elas. Pensemos nessa convocação de protestos no contexto do coronavírus. Trump vinha negando a importância do tema, enquanto que Bolsonaro chegou a dizer que era uma fantasia. Chega ao ponto de que o círculo se completa, por assim dizer, quando um de seus próprios secretários [Fabio Wajngarten, titular da Secretaria de Comunicação] dá positivo no texto.

P. Os ataques à imprensa se explicam por causa dessas mentiras que acreditam?

R. Sim, porque a imprensa independente o que faz é apresentar dados empíricos para contrastar as versões oficiais de propaganda. Por isso ela é um eixo central da democracia e também por isso ela um problema para esse tipo de líder e suas mentiras.

P. No momento em que o dólar disparava, as Bolsas registravam enormes perdas e a crise do coronavírus se agravava, Bolsonaro disse, sem apresentar provas, que as eleições presidenciais foram fraudadas e que ele ganhou no primeiro turno. Trata-se apenas de uma cortina de fumaça para desviar o foco da imprensa, como se costuma dizer, ou existo algo além disso?

R. No sentido mais concreto e no sentido mais histórico trata-se de uma estratégia típica do fascismo para substituir a realidade com propaganda, isto é, com as mentiras mais evidentes. Isso tem a ver com a política da fé, então o que diz Bolsonaro acaba se tornando um artigo de fé e não tanto algo que tenha a ver com a realidade. Outra questão sobre Bolsonaro é que ele tende a se basear muito no que Trump faz. Ele diz coisas que Trump já disse em algum momento, como a referência sobre as supostas fraudes em sua própria vitória. Trump dizia que ganhou no voto popular, o que não aconteceu. E vemos a mesma estratégia com o coronavírus. Parece haver um delay: Trump dizia que era uma fantasia, e Bolsonaro segue repetindo isso —enquanto Trump parece se afastar um pouco dessa ideia. A mesma coisa acontece com a imprensa, tratada por Trump como inimiga do povo. O problema é que a imprensa independente precisa reportar com evidência, e esse mero ato implica um desafio a essas políticas de propaganda de governos extremistas. O mero ato de perguntar ou de pedir evidências significa um desafio a essas tendências autoritárias. Quando diz que uma pandemia é uma fantasia, não existe algo intermediário. Para os jornalistas não pode haver duas versões da realidade. Não existe dois lados, existe um personagem mentindo baseado na fantasia e no mito, e por outro lado está a realidade. E por isso a imprensa é tratada como inimiga… Num regime fascista não existe imprensa independente, apenas fantasia e propaganda.

P. Quais são as outras características do manual de propaganda de Goebbels que o bolsonarismo copia?

R. A principal é que mente e acredita em suas mentiras e fantasias, mas outro tema central tem a ver com a projeção. No geral, o que ele costuma dizer é a realidade de seu próprio ser, do próprio Bolsonaro. Todos sabemos que o coronavírus não é uma fantasia. E todos sabemos que, ao contrário do que disse Trump, o coronavírus não é um problema estrangeiro. É um problema também dos Estados Unidos, e tanto é assim que um Secretário da Comunicação foi contagiado dentro do país. Mas a culpa sempre é dos outros, mesmo quando tem a ver com suas próprias responsabilidades. São eles que mentem, não planejam e não pensam na saúde da população.

P. E as pessoas, incluindo seus próprios eleitores, pagam um preço, não? A fila do Bolsa Família aumenta, as pessoas não conseguem suas aposentadorias… Essas mentiras são viáveis a longo prazo?

R. Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências.

P. Essas mentiras também servem para manter a base eleitoral mobilizada enquanto são feitas reformas ultraliberais impopulares?

R. Não sei se estou de acordo. São fanáticos porque acreditam nisso. Os nazistas não fizeram um uso cínico da propaganda, eles acreditavam nessa propaganda. Na cabeça deles não existe distinção entre repressão, discriminação e ajuste neoliberal. A ideologia não tem um lugar secundário, mas sim central. Acreditam em suas próprias mentiras e representam um perigo para a democracia.

P. Há quem diga que o candidato democrata Bernie Sanders é o Bolsonaro da esquerda norte-americana, ou que o PT e o ex-presidente Lula representem o extremo oposto. Está correto?

R. Não estou de acordo. E o que seria o extremo oposto ao fascismo? O antifascismo [risos]? O populista é aquele que atribui a si mesmo a voz do povo e personifica o povo. É o líder que se vê como um enviado de Deus para falar em nome do povo e decidir em nome do povo. Foi o caso de Hugo Chávez e de Cristina Kirchner, mas isso é menos claro no caso de Lula e, definitivamente, não me parece que seja o caso de Sanders. Lideranças fortes são típicas da história da democracia, mas não necessariamente tem a ver com populismo. Também não se pode igualar políticas populares com populismo. E, mais uma vez, com Sanders e Lula não existe o uso da violência política nem a discriminação, a xenofobia e o racismo, e isso não é menos importante.

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