Dorrit Harazim: O enterro de um mundo

O perigo, agora, é que Trump passou a declarar sua intenção de moldar as regras do poder democrático com vigor redobrado.
Foto: Tia Dufour /White House
Foto: Tia Dufour /White House

O perigo, agora, é que Trump passou a declarar sua intenção de moldar as regras do poder democrático com vigor redobrado

O dique foi rompido na sexta-feira, formalmente. Nancy Pelosi, a presidente da Casa dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória da Casa Branca, encaminhou a criação de uma comissão bipartidária que terá 16 membros, com função decisória sobre eventual incapacidade de futuros presidentes. A proposta não tem chance nem tempo hábil para entrar em funcionamento ainda em 2020, mas ela acata a pergunta que ronda a Casa Branca desde a eleição de 2016: Donald Trump é, ou está, mentalmente são? O comportamento errático do 45º presidente às vésperas do pleito mais neurastênico do país, somado à incógnita quanto a seu real estado de saúde aditivado com medicamentos pesados, passou à emergência nacional.

Com uma agravante: a 25ª Emenda Constitucional que trata do tema não contém qualquer regra para uma eventual incapacitação simultânea também do vice-presidente. Considerando que Mike Pence, primeiro na linha sucessória, esteve e continua ao alcance do surto de Covid-19 que infesta a Casa Branca, a barafunda é grande. Segundo escreve Garrett Graff na última edição da revista “Politico”, o maior pesadelo a rondar Washington é, justamente, um Pence também afastado temporariamente pela Covid.

O histórico da Vice-Presidência na construção política dos Estados Unidos é cheio de sinuosidades. De início, o cargo nem sequer existia per se: os dois nomes mais votados para presidente simplesmente ocupavam o 1º e 2º cargos, mesmo quando filiados a partidos opostos. Imagine-se a confusão. Até meados do século XX, quando Dwight Eisenhower ficou hospitalizado por sete semanas em 1955 no auge da Guerra Fria, seu vice Richard Nixon não recebeu o aval do chefe para tomar as rédeas. Ele tampouco pôde exercitar qualquer poder quando “Ike” foi submetido a uma cirurgia estomacal, seguido de um derrame. O documento informal de quatro páginas que Eisenhower entregou em mãos e em segredo a Nixon, já no último quadrante do mandato, definindo as regras para o vice assumir, se necessário, só se tornaria publico décadas mais tarde.

Foi um arranjo extraconstitucional, sem registro nem processo formal, uma aberração para aqueles tempos nucleares. Ainda assim, nos anos seguintes, também John Kennedy e seu vice Lyndon Johnson trataram de eventual sucessão de maneira não formal, com base na confiança.

(No caso atual, o risco é inverso: a probabilidade de Trump confiar em alguém é nula. E de ele transferir o poder voluntariamente, mesmo que por um dia, é menor ainda. Só mesmo à revelia.)

Foi somente depois do assassinato de Kennedy, em 1963, que o Congresso emplacou a 25ª Emenda. Além de lidar com doença, morte ou incapacitação do chefe da nação, ela também criou o mecanismo de substituição do vice pelo presidente da Câmara, se necessário. Foi graças a essa emenda que o então deputado Gerald Ford entrou no lugar do vice defenestrado por Nixon, tornando-se, com a renúncia posterior do próprio Nixon, o primeiro mandatário americano que nunca fora eleito presidente nem vice.

O que inexiste até hoje, porém, é clareza na continuidade do poder em caso de acefalia dupla: a incapacitação simultânea do presidente e do vice. A vulnerabilidade à Covid e fragilidade geral do candidato democrata Joe Biden, de quase78 anos, é outro pesadelo institucional às vésperas da eleição.

“Ele não dura mais de dois meses no cargo”, vaticinou Trump num de seus rompantes mais desvairados da semana, acenando com o terror que se abaterá sobre o país quando a “comunista Kamala Harris” assumir o poder. Foi um ato falho, durou apenas um átimo, mas foi revelador do inferno mental no qual chafurda o presidente, ao aventar a hipótese de ser derrotado por Biden e dá-lo como morto dois meses depois.

Trump já havia cometido um primeiro ato falho dias antes, quando anunciou que estava infectado e a caminho do hospital: “Quero agradecer a todos pelo imenso apoio recebido…”. Foi a primeira vez em três anos e meio em que se dirigiu à nação inteira, não apenas a sua base. Mas o efeito benéfico de sua, até então, impensável vulnerabilidade logo se dissipou.

Até o 3 de novembro, Trump está condenado a desempenhar o papel que mantém seu eleitorado turbinado: o comandante que suplanta qualquer obstáculo, o homem de ação que se apresenta no balcão da Casa Branca sem temor nem máscara, um Mussolini americano, embora algo arfante. Essa imagem de audácia, destemor, masculinidade idealizada tem impacto crucial em seguidores que talvez sonham em também ser assim. Em ter a astúcia de também driblar o sistema e não pagar impostos.

Anand Giridharadas, autor do aclamado “Winners Take All: The Elite Charade of Changing the World”, define Donald Trump como “um homem fraco que sempre almejou ser forte, mas cuja ideia de homem forte é de um fraco”. Ele cita Robert O’Neill, o atirador dos Navy Seals que matou o líder terrorista Osama Bin Laden em 2011, como exemplo perfeito desse terror masculino de parecer impotente — O’Neill postou uma foto sua sem máscara, num voo comercial recente, com a legenda “não sou maricas”.

Segundo Giridharadas, a era Trump só se tornou possível porque tantos eleitores abraçam esta força fake. O perigo, agora, é que o presidente passou a declarar abertamente sua intenção de moldar as regras do poder democrático com vigor redobrado. Alguém consegue imaginar mais quatro anos com Donald Trump na Casa Branca? Seria, simplesmente, o enterro de um mundo. Imunidade de rebanho.

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