Dorrit Harazim: O cidadão-dejeto na tragédia do Rio

Junto com os dois prédios que se esfarelaram na comunidade da Muzema, no Rio de Janeiro, exauriu-se o tempo da esperança.
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Junto com os dois prédios que se esfarelaram na comunidade da Muzema, no Rio de Janeiro, exauriu-se o tempo da esperança

Dias atrás, ao desembarcar em São Paulo com seu novo livro, “O bebedor de horizontes”, e participar do relançamento de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, o moçambicano Mia Couto ainda estava acachapado. O ciclone Idai havia deixado um rastro de mais de mil mortos em terras africanas, e destruíra Beira, a cidade natal e chão afetivo do escritor. Antes de vir ao Brasil, ele fora ver o que dela restou. Resumiu assim o seu estado d’alma: “Confirmei, lá, que eu estava órfão da minha infância”.

Boa parte da população do Rio de Janeiro também está órfã. Não apenas de uma infância que nunca teve, mas também do presente e, por antecipação, de qualquer perspectiva de futuro decente. Não há espinha dorsal de cidadania que aguente a sucessão de calamidades que tem se empilhado no cotidiano desse cidadão, sobretudo quando a origem de tanto desperdício de vidas não é um ciclone. São horrores feitos pela mão humana, portanto mais cruéis e evitáveis.

Em recente programa no canal GNT, referindo-se à fuzilaria de dez militares do Exército contra o carro de uma família em passeio domingueiro, o MC Emicida, autor de “Levanta e anda”, diagnosticou: “Se o Brasil tivesse respeito por seus cidadãos, era para este país estar pegando fogo hoje…” O seu tom de voz não foi incendiário, era de lamento. O mesmo lamento clínico do escritor americano James Baldwin, que definiu assim o que era ser negro e relativamente consciente nos Estados Unidos nos idos de 1960: “É estar revoltado quase o tempo todo”.

No atropelo das tragédias recentes, fica difícil transitar entre uma raiva improdutiva e uma inação desmesurada. A linguagem universal e prevalente passa a ser a fácil indignação on-line, aquela do discurso cívico que grita e é consumido em segundos até se apagar. Quando crimes se empilham, já ensinou B. Brecht, eles se tornam invisíveis.

Pouco mais de dois meses atrás, com o país em choque e as quase 300 vítimas fatais de Brumadinho ainda envoltas em lama tóxica, apontou-se aqui para a indignação como grande força de comunicação social, mais contagiosa do que qualquer outra forma de emoção humana. Com uma diferença: naqueles dias em que as vísceras do descaso da Vale e do poder público ficaram expostas à execração nacional, ainda foi possível acreditar na tímida possibilidade de ocorrer alguma mudança na legislação, responsabilização, fiscalização e prevenção de crimes no setor de mineração.

Desta vez, junto com os dois prédios que se esfarelaram na comunidade da Muzema, no Rio de Janeiro, exauriu-se o tempo da esperança. Além das vidas ali soterradas, ruiu o que gerações de cidadãos tratados como dejetos supérfluos procuraram construir: uma vida melhor. Confinados à antessala da sociedade moderna, os moradores desse Rio rapinado há décadas formam uma massa de refugiados em sua própria cidade, perdedores de uma engrenagem social perversa.

Como já é de rotina, coube aos bombeiros e socorristas anônimos reconciliarnos com o que acreditamos ter de melhor no nosso DNA. Foi emocionante a arriscada operação de resgate, por helicóptero, de um ferido da Muzema do alto de um dos prédios periclitantes. Gerou merecidos aplausos. O improvisado transporte ladeira abaixo de um vizinho ferido colocado às pressas sobre uma porta transformada em maca, ainda antes da chegada de qualquer ajuda pública, não teve plateia. Foi solidariedade na veia.

Como também já se tornou rotina, o despreparo das autoridades diante de tragédias que lhes competem continua abissal. Foi no mínimo constrangedora a entrevista concedida pelo secretário municipal da Infraestrutura e Habitação, Sebastião Bruno, despachado pelo prefeito Marcelo Crivella para o local do desabamento. Com a cidade ainda em estado de crise e calamidade após a devastação causada pela chuva do início da semana, o Rio que se sente órfão não tem a quem recorrer. A milícia lhe oferece o pacote segurança/medo, e uma moradia irregular que vai ruir. Por onde andará o capitão foragido Adriano Magalhães da Nóbrega, vulgo Gordinho, uma das lideranças do grupo miliciano Escritório do Crime? Por onde andará Fabrício Queiroz, o ex-assessor encrencado do hoje senador Flávio Bolsonaro, que há 45 dias também se desmaterializou, junto com a família igualmente encrencada.

“Ao trabalhador que corre atrás do pão/ É humilhação demais que não cabe nesse refrão”, canta o rapper Criolo em “Convoque seu Buda”.

É.

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