Diretores negros ganham visibilidade com produções identitárias

Festivais internacionais, premiados filmes e seminários específicos aumentam a visibilidade de criadores negros
Foto: Embaúba Filmes/Divulgação
Foto: Embaúba Filmes/Divulgação

Ricardo Daehn / Correio Braziliense

Num circuito de festivais de cinema que já incluíram Cannes, Roterdã, Brasília e Tiradentes, faltava à produtora mineira Filmes de Plástico chegar ao Festival de Sundance. Representante brasileiro no evento, o longa Marte Um despontou com uma leva de fitas realizadas por diretores negros, entre os quais Carey Williams, W. Kamau Bell e Adamma Ebo. Todos estavam alinhados no festival recém-encerrado. “A receptividade foi maravilhosa: tivemos trocas de experiências potentes, ainda que de modo on-line. Pipocaram muitas críticas e veio o impacto do festival. Estou muito feliz, é impressionante ver como críticos escrevem textos interessantes e tão diversos. Tiveram muita generosidade com o filme”, observa Gabriel Martins, diretor de Marte Um, em entrevista ao Correio.

Gabriel, no segundo longa-metragem (com Maurílio Martins, realizou o primeiro, No coração do mundo) diz não trabalhar com a chave virada sobre o tipo de imagem que projetará do Brasil no exterior. “Não racionalizo sobre isso, não em nível consciente, planejando o que os gringos vão achar do filme”, diverte-se. O diretor aposta, sim,”em filme honesto e sincero”, que esteja atrelado à necessidade da história pretendida. Marte Um, como ele diz, foi feito para elogiar esteticamente a presença de pessoas negras na tela. “Aposto nas nossas narrativas, em situações que têm a ver com a nossa história. Isso pode ser uma contribuição para que mais pessoas negras queiram filmar. Algo que talvez até inspire ou estimule para pessoas fazerem de forma até diferente da que eu fiz”, explica.

Marte Um fala da classe média baixa, de encantamentos com futebol, de maldições e do dia a dia na periferia de uma grande cidade. Tudo gira em torno de Deivid (Cícero Lucas), que tem ambição para, em 2030, ser atuante como astrofísico. O enredo se passa em 2018, com Bolsonaro eleito. Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau) é o porteiro, pai de Deivid; Tércia (Rejane Faria), a mãe, e Eunice (Camila Damião), a irmã que não tem coragem de assumir um relacionamento lésbico. Raça e gênero integram a trama possibilitada por um fundo de orçamento para diretores negros, gerado em 2016.

O cineasta acredita que o filme, tendo passado num festival grande, determina impacto na importância do cinema negro no Brasil. “Devido ao Festival de Sundance, trechos de Marte Um foram mostrados no Jornal Nacional, o maior do país. Com muita exposição, isso é colocar o cinema negro no mapa da história. Me parece uma contribuição possível para que a gente seja visto e esteja vivo, e que possamos sair deste vazio de possibilidades em que a gente está agora — tanto financeiras quanto mercadológicas. Viabilizar um filme, no Brasil, pode passar a se mover, numa direção a cenário diferente do que temos”, avalia.

Um dos roteiristas do longa Alemão, estruturado sob demanda da RT Features, e criador de um retrato de violência impresso no curta Rapsódia para o homem negro, Gabriel Martins conta da vontade de navegar por vários sentimentos, no registro de cinema. “O Marte Um espelha minha história enquanto cineasta de periferia, tem uma carga otimista. É um filme que, de alguma forma, acredita na potência de um sonho. E eleva isso a um romantismo da situação, sem deixar de ser atento às contradições do mundo, sem acatar postura ingênua. Traz uma dose de crença no ser humano, talvez”, revela Gabriel Martins.

Mais terreno 

No quarto curta-metragem, e ao final da graduação em cinema pela UFF, aos 27 anos, o diretor Bruno Ribeiro vive um ótimo momento: competirá pelo Urso de Ouro, no Festival de Berlim, com o curta Manhã de domingo, que estreou na 25ª Mostra de Tiradentes (MG). “O filme é roteirizado por negros, a protagonista é negra. Há toda a questão em torno de discurso identitário que está posta no Brasil, e lá fora também, numa escala um pouco maior. É um tema dos nossos tempos. Mas não foi isso apenas que pesou para a seleção em Berlim. Existe uma produção negra hoje muito vasta que disputa lugares em festivais e editais. Acredito que seja importante a pauta da representatividade”, opina o realizador.

Tópicos variados absorvem Bruno, que, em Manhã de domingo, traz Raquel Paixão interpretando a pianista negra Gabriela, dona de instabilidade emocional, na primeira participação em prestigiado recital. “Precisamos de um prolongamento do debate da nossa questão. A produção negra é muito vista por meio de chaves temáticas muito difundidas e isso, às vezes, atrapalha a construção de um olhar mais atento e cuidadoso com a singularidade das obras. Temos que pensar: ‘Para além dos corpos, o que mais pode ser absorvido de uma obra?'”, pontua o cineasta.

Com a visão ampliada, diante do acesso à internet, na qual descobriu infinitas cinematografias, Bruno Ribeiro celebra o potencial da versão presencial do evento em Berlim, prevista para fevereiro. “Gosto da possibilidade de que o filme se conecte com plateias cada vez mais amplas. Ao invés de buscar consagração no cenário internacional, quero romper minhas bolhas, e desbravar o mundo.” Sem minimizar a questão da representatividade, Bruno explica que, na interlocução “com amigos pretos”, busca nas artes pautas mais coerentes com os tempos experienciados. “A pauta da representatividade já foi absorvida pelo mercado, de forma mais ampla — desde a publicidade. Artistas pretos já lutam por outras coisas”, demarca.

Crítica / Summer of soul (… ou, quando a revolução não pode ser televisionada) ****

Uma luz nas sombras

Múltiplo em funções artísticas, Questlove teve ouvido e olhos atentos na primeira investida em cinema, que resultou no aclamado Summer of Soul, documentário que trata de lacuna na historiografia do preconceito racial na escala norte-americana. O desprezo publicitário e de apoio financeiro direcionado exclusivamente para o Festival de Woodstock, deixou no limbo um evento musical similar realizado a 150 km das ruidosas apresentações de apreço à contracultura. Tratava-se do Harlem Cultural Festival, encontro que levou 300 mil pessoas a um templo de amor e liberdade, promovido no Mount Morris Park novaiorquino, em emblemático momento de revalidação da cultura africana e pleno de altivez negra. Tudo sob o comando do produtor Tony Lawrence que, sob resguardo de ativistas do partido dos Panteras Negras, e manto progressista do prefeito branco John Lindsey, fez eclodir uma festa pra lá de fértil.

Antes de retratar o radicalismo de parte do público do festival — que viu a chegada do homem à lua como um desperdício de dinheiro e cristalizava a expressão “meganha” para designar policiais —, o filme reforça o espírito de família e os laços de irmandade exaltados por Sly, compositor do Sly and the Family Stone. Contribuem em muito depoimentos como os do guitarrista gospel Roebuck Staples, capaz de tarimbar sons pentecostais como “terapia ao estresse” da opressão social ou ainda o mero registro da agressiva guitarra de Sonny Sharrock. Entre a catarse e a possessão espiritual das matrizes africanas, como dito no filme, a diversão no festival — pródigo em “laquê e frango”, como ambienta o modelo, ator e produtor Musa Jackson, que, em criança, integrou a seleta plateia — ecoa na vibração e no festejar genuíno da execução de Oh Happy day, no resgate do tambor de Ray Barretto e na real oração proposta por Mahalia Jackson e Mavis Staples, ao entoar Precious Lord take my hand, em saudação a Martin Luther King, morto no ano anterior ao festival, numa corrente de ódio que levou os irmãos Kennedy e ainda Malcolm X.

Resgate de raízes — curiosamente foi a marca Maxwell House, atenta à valorização da origem africana do café, que trouxe o apoio financeiro para a estrutura vanguardista impressa no festival de música —, aproximação de almas e um sentimento de integração ecoam no verdadeiro portal histórico aberto por Summer of soul. Discussões sobre pessoas “não serem suficientemente negras”; a visão, no show, de uma celebrada trompetista negra, e redefinições de nomenclaturas de raças (a pioneira no uso do termo ‘negro’ na grande mídia Charlayne Hunter-Gault conta do enterro do termo “preto”, para a ascensão do “negro”) conferem atualidade aos debates do filme.

Num ambiente de violência (e da proliferação da heroína na comunidade negra) e de saques desmedidos, o aquietar de ânimos foi instituído pelas glorificadas presenças de artistas como Stevie Wonder, B.B. King, David Ruffin (sempre lembrado por My girl) e a potente The 5th Dimension (que, em cena, funde Acquarius a Let the sunshine in). Dama da resistência, Nina Simone resplandece, no filme, ao clamar (com Blacklash blues e To be young, gifted, and black) pela afirmação de identidade, por 50 anos renegada, aliás, diante do ineditismo das imagens de Summer of soul. O show dos pretos não tinha apelo rentável, aos olhos dos engravatados da tevê. Estendendo a revalorização para latinos, artistas do Mongo Santamaria e Lin-Manuel Miranda dão as caras. Mobilização, regozijo e energia louvável tomam a tela, diante de Summer of soul.


Entrevista / Joel Zito Araújo

Atualmente, você está no evento Oju — Roda Sesc de Cinemas Negros. É necessária uma virtual cisão, no diálogo com as plateias, com a expressão cinema negro?

Nós brasileiros estamos acostumados a ver as coisas ignorando a desigualdade racial Assistimos um filme brasileiro que só tem brancos, mas não classificamos como filme de branco, nem consideramos que filmes assim fazem historicamente uma cisão no diálogo, com 56% da nossa população que não se auto classifica como branca. Embora esta seja uma atitude reiterada por muitos realizadores e aconteça por mais de um século. Sim, existe cinema negro, muitos realizadores jovens gostam desta denominação. Eu penso um pouquinho diferente, eu acho que nós, realizadores afrodescendentes, preocupados em incorporar os segmentos negros e indígenas, que são maioria da população brasileira, é que acabamos por fazer um autêntico cinema brasileiro.

Houve avanços na solidificação do cinema feito por negros no país? Quais cinematografias te atraem?

Sim, na última década, junto à conquista das cotas nas universidades, e um aumento exponencial de universitários e profissionais negros, talvez até mesmo em decorrência desta nova realidade, surgiu um cinema feito por negros, e com muito protagonismo, especialmente das mulheres negras. E eu acho que desta quantidade grande de jovens cineastas negros e negras que estão surgindo, aparecerá muita qualidade. Cinema é assim, é do exercício e da quantidade, que surge a qualidade. No meu caso específico eu tenho um cinema que se alimenta de múltiplas influências, desde grandes nomes europeus do passado e do presente, como Fellini, Bergman e Almodóvar, do cinema asiático, como do cinema negro norte-americano e do cinema africano. Relativamente ao cinema africano, aprecio muito os trabalhos dos clássicos Ousmane Sembène e Djibril Diop Mambéty, como dos contemporâneos Abderrahmane Sissako, Mahamat Saleh Haroun e Andrew Dosunmu.

A discriminação racial ainda persiste no país? Qual a ferida mais doída em relação ao tema?

Eu tive muitas feridas que já me cansei de falar delas, não quero mais alimentá-las voltando a elas. Mas me preocupa que muitos ainda não percebam o quanto a discriminação racial é um fenômeno cotidiano no Brasil que não só destrói a autoestima das crianças e das pessoas negras, como extermina fisicamente muito delas.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2022/02/4980675-diretores-negros-ganham-visibilidade-com-producoes-identitarias.html

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