Cristovam Buarque: Assassinos de Marielle

Latifundiários e governantes deram passos na direção do assassinato.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Latifundiários e governantes deram passos na direção do assassinato

Certa lenda árabe diz que uma espécie de coruja invisível sai de dentro das pessoas assassinadas para perseguir seus assassinos até que eles sejam condenados. O Brasil inteiro deseja que essas aves ajudem os investigadores a identificarem os bandidos que mataram Marielle e Anderson. Mas precisamos de outra ave que nos dê força para lutarmos contra os assassinos invisíveis, históricos, que não apertaram o gatilho, mas criaram as nefastas condições que levaram ao assassinato deles.
Há mais de cem anos, latifundiários e governantes brasileiros deram passos na direção do assassinato de Marielle. Ao negarem a reforma agrária para os ex-escravos e escolas para seus filhos, induziram milhões de pobres excluídos à migração em direção ao desemprego, ao desespero, à violência, às drogas, às más condições sociais. Fizeram um país ineficiente e injusto, dividido pelo sistema social de apartação — o apartheid social — que nos caracteriza.

Marielle foi morta por alguns bandidos, mas seus assassinos não cabem em um carro: são os governantes que ao longo de décadas se negaram a fazer as reformas de que o Brasil precisa: agrária, educacional, urbana, tributária, de gestão do Estado. No lugar das reformas, fizeram a sistemática corrupção nas prioridades, negando escola de qualidade para as nossas crianças, água e esgoto, assistência à saúde, apropriando-se do Estado para servir aos privilegiados e, sobretudo, manifestando absoluta insensibilidade diante do sofrimento dos pobres e da fragilidade do país.

A pessoa Marielle foi assassinada com tiros saídos de um carro ao seu lado, mas a personagem histórica estava ali, naquele instante, por sua luta contra os erros seculares das elites dirigentes do Brasil. Seus assassinos diretos construíram suas maldades no mesmo caldeirão das injustiças criadas pelos assassinos históricos que a vítima deles tentava impedir.
Marielle e Anderson foram mortos por sete tiros de fuzil e por cinco séculos de injustiças e ineficiências da sociedade brasileira. Esperamos que as investigações descubram quem deu os tiros, que a Justiça os julgue e os condenados sejam punidos, mas isso não basta. Será preciso que cada brasileiro assuma a luta de Marielle e lute contra os assassinos históricos.
Que transformemos o Brasil em uma nação com economia eficiente, uma democracia estável; em uma sociedade que ofereça a mesma oportunidade a cada brasileiro para desenvolver seu talento, graças à garantia de acesso aos pobres às mesmas escolas dos filhos dos ricos.
Que nossas favelas sejam cidades urbanizadas e que sejamos um país sem preconceitos com os novos costumes sociais e culturais, com respeito à diversidade de religiões, raças, orientações sexuais; e radicalmente intolerante com a corrupção política em todos partidos e ideologias.
Que a polícia e os juízes cuidem dos assassinos e que os cidadãos e eleitores cuidem dos culpados históricos que, há séculos, matam, empobrecem, violentam o povo brasileiro. Que os assassinos sejam presos e que o Brasil seja reformado.

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