Cristovam Buarque: A lição do Enem

Em 1996, a Universidade de Brasília iniciou a experiência pioneira do Programa de Avaliação Seriada (PAS), que substituía a prova única do vestibular por avaliações ao longo do ensino médio: exames ao final de cada série, selecionando os que tinham melhor média dos três anos.
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Em 1996, a Universidade de Brasília iniciou a experiência pioneira do Programa de Avaliação Seriada (PAS), que substituía a prova única do vestibular por avaliações ao longo do ensino médio: exames ao final de cada série, selecionando os que tinham melhor média dos três anos. A ideia do PAS foi do professor Lauro Mohry, quando era diretor do sistema de vestibular e eu reitor da UnB. Mas, para ser adotada precisava do apoio do Governo do Distrito Federal.

O PAS tinha vantagens: criava um vínculo da universidade com o ensino médio; acabava com o tudo ou nada do vestibular, dando ao candidato a chance de recuperação de um ano para o outro; permitia avaliar o desempenho de cada série de escola; sobretudo servia como incentivo para que os jovens estudassem ao longo dos anos do ensino médio, não apenas em um cursinho no último ano.

Em 1995, logo que assumi o governo do DF, levei a ideia ao então reitor da UnB, Claudio Todorov, que imediatamente a aceitou. Deve-se a ele e ao então secretário de Educação do DF, Antônio Ibañez, e suas equipes, a implantação do PAS em 1996.

Três anos depois, o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, criou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para avaliar o desempenho dos cursos nas escolas. Embora não fizesse a avaliação de cada ano, o Enem foi instrumento decisivo para medir a qualidade da educação no ensino médio.

Em 2003, quando fui ministro, o MEC começou estudos e negociações com as universidades para adotar o PAS em todo o Brasil. Em 2009, apesar de não seguir o sistema de avaliação seriada da UnB, o então ministro da Educação, Fernando Haddad, deu um salto positivo na relação do ensino médio com a universidade ao utilizar o Enem como instrumento de seleção à universidade graças ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu).

A nova destinação do Enem despertou a atenção da sociedade e da mídia, que não se interessavam pelo exame enquanto ele cuidava apenas de avaliar o ensino médio. O desprezo da opinião pública pelo Enem avaliador do ensino médio e sua valorização como instrumento de seleção para ingresso na universidade são uma lição que mostra que o Brasil superestima o ensino superior em detrimento da educação de base.

Outra lição do Enem é a demonstração da importância de gestão eficiente em qualquer setor do governo. As dificuldades do Enem 2019 mostram a falência de um governo que, preocupado com o sectarismo ideológico, despreza a necessidade de gestão competente na execução de programas.

O Enem deste ano mostrou que não temos ministro da Educação com interesse e competência para gerir a educação. Seu interesse de manter o discurso estridente contra os fantasmas culturais nos quais ele acredita. Parece preocupado apenas em desfazer o abstrato “marxismo cultural”, espectro criado por seus gurus.

Mas olhando para o Enem, para o Pisa (Programa de Avaliação Internacional de Alunos) e para o Ideb (Índice de Educação de Base) dos últimos anos, percebe-se que a tragédia da educação brasileira é muito mais dramática do que o fato circunstancial do atual ministro. Ela é o resultado de todos os governos que o Brasil teve. Ao mesmo tempo que denunciamos o despreparo e descompromisso do atual ministro, precisamos ter a honestidade de reconhecer que os governos anteriores não fizeram o que era necessário para o Brasil ter uma educação de qualidade e igual para todos.

Independentemente de ter ficado oito anos ou 12 meses no cargo, nenhum dos ministros anteriores foi capaz de convencer nossos presidentes a fazerem o que imaginávamos ser necessário para o Brasil ter a boa educação de que precisa. Nem fomos capazes de convencer a sociedade brasileira a desviar os olhos e os sonhos do ensino superior para a educação de base.

Os últimos governos deixaram quase o mesmo número de adultos analfabetos que herdaram, não melhoraram nossa posição no Pisa, deixamos as escolas mais violentas e os professores igualmente desprestigiados. E ainda criamos uma falsa narrativa de que fizemos uma revolução. É provável que Bolsonaro piore o quadro, mas isso não diminui nossa responsabilidade com a catástrofe educacional.

O desastre do Enem 2019 decorre da incompetência, do descuido, desinteresse e até mesmo de certa alienação mental que o ministro demonstra a cada aparição, mas a falência da educação de base tem muitos outros responsáveis. (Correio Braziliense – 11/02/2020)

Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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