Cristiano Romero: Encruzilhada fiscal e social

Retomada desigual do PIB e fim do auxílio fomentam crise social.
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Retomada desigual do PIB e fim do auxílio fomentam crise social

Não é desprezível o risco de o país enfrentar nos próximos meses uma grave crise social. Todos sabemos que 2020 só não foi mais trágico, do ponto de vista econômico, porque o Congresso Nacional e o governo federal agiram rapidamente para instituir novo mecanismo de transferência de renda e, assim, compensar o fato de que, devido à pandemia, milhões de trabalhadores formais e informais perderam subitamente seu ganha-pão

O auxílio emergencial funcionou razoavelmente bem e impediu que a contração da economia fosse muito superior à esperada. Muitos analistas chegaram a projetar queda acima de 9% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. Segundo cálculos do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV-Rio, o PIB pode ter caído 4,7% no ano passado e crescerá 3,6% em 2021.

O que evitou um mergulho maior do PIB foram os bilhões de reais transferidos a pouco menos de 70 milhões de brasileiros entre abril e dezembro. Uma parte significativa desse contingente – cerca de 45 milhões de pessoas – é beneficiária do programa Bolsa Família e, por essa razão, continua recebendo o benefício, embora num valor bem inferior ao do auxílio emergencial – aproximadamente, R$ 150 por pessoa, em vez de R$ 600 (quantia paga entre abril a setembro) e R$ 300 (de outubro a dezembro).

O auxílio expirou em 31 de dezembro. Neste mês, ainda há um resíduo a ser transferido, mas, depois disso, acaba. Enquanto isso, assistimos, apreensivos, ao recrudescimento da pandemia no país. Seus efeitos negativos sobre a economia logo aparecerão, comprometendo a recuperação esperada. Grosso modo, 30 milhões de cidadãos viverão doravante sem renda alguma.

A equipe econômica do governo alega que a situação fiscal do país já era claudicante antes da pandemia e tornou-se desesperadora ao longo de 2020. O setor público consolidado, isto é, as contas de União, dos Estados e municípios, registrou déficit primário, nos 12 meses acumulados até novembro, de R$ 664,6 bilhões (8,93% do PIB).

Chama-se esse conceito de “primário” porque não inclui a despesa com juros da dívida. É a diferença entre o que o Estado arrecada por meio de tributos e o que gasta. Desde 2014, essa diferença é negativa. No ano passado, por causa da pandemia, é compreensível que, por causa do enfrentamento da pandemia, o rombo tenha aumentado.

Bem, se o setor público da Ilha de Vera Cruz não consegue arrecadar o suficiente para cobrir as despesas do Estado, como faz para honrar despesas como aposentadoria e pensões de mais de 30 milhões de brasileiros, salários do funcionalismo e gastos obrigatórios com saúde e educação? Ora, endividando-se.

Nos 12 meses até novembro de 2021, o déficit nominal, conceito que inclui o serviço da dívida, isto é, a despesa com juros, alcançou R$ 978,0 bilhões (13,14% do PIB). A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que compreende governo federal, INSS e governos estaduais e municipais, alcançou R$ 6,559 trilhões em novembro (88,1% do PIB). Em apenas um ano, cresceu mais de dez pontos percentuais de PIB.

Ninguém em sã consciência dirá que a situação fiscal deste país não é grave. O problema é justificar o fim da ajuda humanitária a quem precisa com o argumento de que, se houver deterioração adicional das finanças públicas, o país quebrará, investidores (nacionais e estrangeiros) fugirão daqui, a cotação do dólar visitará a estratosfera, haverá calote da dívida…

Não se tente convencer um pai de família desempregado a entender esse argumento ou de que sua situação é esta por não ter estudado) ele pode mostrar que, felizardo (porque a maioria não chega tão longe), estudou, sim, em escola pública durante toda a sua vida, ganhou bolsa do Fies para cursar ensino “superior” em faculdades com ação na bolsa e sócio estrangeiro, mas de péssima qualidade, e ainda assim está na miséria, como outros milhões de compatriotas neste momento terrível do país e da humanidade.

Por que não se usa o mesmo argumento fiscal para “convencer” grupos de interesse específico a entregar parte do butim, que faz deste imenso território um lugar rico habitado por uma minoria rica e uma maioria esmagadora, pobre?

“O Brasil chega a 2021 mais enredado do que nunca nas complexidades e contradições de múltiplas expectativas e demandas. É preciso voltar a crescer, mas também há que se responder a uma teia cada vez mais ampla de direitos democráticos em temas como saúde, segurança, transporte de qualidade, meio ambiente, combate ao racismo, empoderamento feminino, reconhecimento de identidades de gênero etc.”, observa Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV.

Há uma visão, diz Schymura, segundo a qual, a retomada do crescimento seria suficiente para que os rendimentos do mercado de trabalho preenchessem a lacuna deixada pelo fim do auxílio emergencial. O impacto social, portanto, não seria dramático. O problema é que, talvez, muitos dos que acreditam nessa possibilidade não tenham considerado dois fatores: o aumento exponencial dos casos de covid-19, algo que pode obrigar prefeitos e governadores a reinstituir regras de isolamento social, e o fato, inacreditável, de que o governo Bolsonaro simplesmente não planejou a vacinação dos 210 milhões de viventes que moram neste canto do planeta. Sem vacina e imunização planejada, não teremos recuperação econômica. Teremos, sim, o agravamento da crise sanitária que já ceifou a vida de 210 mil brasileiros.

Há um terceiro problema. A economista-chede do Ibre, Sílvia Matos, conta que a retomada pós choque econômico da pandemia é muito desigual. “Chegou-se a criar a expressão ‘recuperação em k’ para se referir ao fato de que, enquanto a indústria e o comércio saíram na frente, os serviços, mais afetados pelo distanciamento social, ainda dão sinais de fraqueza”, diz Schymura.

Exemplo da heterogeneidade no próprio setor de serviços. Os que são prestados às famílias e que empregam bastante, medidos pela Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), estavam em outubro 32% abaixo do nível pré-pandemia, em fevereiro do ano passado. Já os serviços de tecnologia da informação registraram avanço de 12% na mesma comparação, beneficiados pelo trabalho em casa, a comunicação a distância.

“É nessa encruzilhada extremamente difícil que se encontra o país neste início de 2021, e não se deve nutrir a esperança de que a retomada econômica pós covid resolverá os muitos dilemas e impasses. Mais do que nunca, será preciso um grande entendimento nacional para que se encontre um caminho viável que evite simultaneamente crises agudas no campo fiscal e social”, comenta Schymura.

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