Cristiano Romero: E assim caminha a humanidade

Civilização vive pendor para o totalitarismo que parecia adormecido.
Foto: New York Times
Foto: New York Times

Civilização vive pendor para o totalitarismo que parecia adormecido

Cientistas nunca chegaram a um acordo para definir se um vírus é ou não um ser vivo. Eles carregam material genético, mas não têm célula como as bactérias, por isso, dependem das células de um ser vivo para se reproduzir e, dessa forma, viver. Viver? Mas, como, se não são seres vivos? Parasitas obrigatórios, sua missão é odiosa. Eles infiltram seu código genético em células dos hospedeiros, mudam a programação original, fazendo com que as células produzam vírus até explodir. O plano é diabólico: a explosão não é um ato suicida; ela libera milhões, bilhões de partículas, prontas para infectar outros corpos.

Volta e meia brotam da natureza vírus com grande capacidade de assombrar a humanidade. Nossos avós fizeram relatos terríveis sobre a gripe “espanhola” teria infectado, entre 1918 e 1920, um quarto da população mundial na época (2 bilhões) e matado pelo menos 17 milhões de pessoas – os números da tragédia são muito díspares; há dados sustentando a morte de 50 milhões e até de 100 milhões de pessoas.

Os vírus são específicos para cada hospedeiro. O novo coronavírus covid-19 apareceu para infectar seres humanos. Chama-se covid-19 porque foi descoberto pelos chineses em 2019, aliás, no derradeiro dia do ano. Isso é assustador porque, em menos de três meses, o novo coronavírus chegou aos quatro cantos do planeta, a todos os Estados de três (China, Estados Unidos e Brasil) dos cinco maiores países.

Cientistas sustentam que os vírus, principalmente os mais letais, aparecem porque estamos destruindo a natureza e libertando partículas infecciosas que costumam hospedar-se em animais, fungos e bactérias. Por esse raciocínio, o homem tem sido vítima do progresso sem medida, que se traduz na destruição do meio ambiente em que vivemos.

Debates sobre temas que dependem de conhecimento científico devem evitar o “achismo” tolo de alguns e a irresponsabilidade de outros, que, diante de tragédia sem paralelo na história recente da raça humana (ou desde sempre), estão fazendo cálculo político pensando nas eleições agendada para daqui a três anos. Seria o equivalente ao capitão do Titanic, crente na hipótese de seu navio não afundar, apenas adernar, pedir aos passageiros, contra a opinião de toda a tripulação, para ficarem na embarcação porque o casco atingido pelo iceberg seria consertado por bravos marinheiros antes do amanhecer.

Esse mesmo debate, ainda que instruído, deve tomar cuidado redobrado para não ser manipulado por moralismos de qualquer espécie. Muitos surtos e epidemias de vírus não se tornam pandemias, como a do coronavírus covid-19. Atingem grupos expostos ao vírus em alguns locais do planeta. O HIV, o vírus da AIDS, suscitou debate temerário e descabido sobre a opção sexual. E a doença foi apontada pateticamente como um recado de Deus contra o sexo livre da década anterior (1970).

A humanidade vive, talvez, seu Grande Teste. O covid-19 emergiu num momento particularmente difícil. Ao mesmo tempo em que, nos últimos 30 anos, o mundo ficou pequeno graças ao desenvolvimento acelerado da tecnologia da informação, conectando bilhões de viventes em tempo real e relativizando fronteiras histórico-culturais, a civilização vive pendor para o totalitarismo que se julgava adormecido (inexistente, nunca).

Justamente quando materializamos o acesso amplo dos cidadãos à informação, a liberdade, característica que nos define como humanos, corre risco. E o epicentro desse tenebroso movimento está nas nações ricas, onde figuram as democracias mais antigas e consolidadas. Diz-se que a História é pendular e que, no seu caminhar, uma nova onda se opõe obrigatoriamente à anterior e assim caminha a humanidade. Ora, o covid-19 não tem nada com isso. Vivemos uma fragmentação política sem precedentes desde o pós-Guerra.

Na França, o partido que conteve o avanço da extrema-direita fora criado há apenas um ano da eleição. Nos EUA, um bilionário outsider, novato na política, xenófobo, só chegou à presidência porque venceu a eleição em estados que votam tradicionalmente em candidatos democratas. Na Alemanha, nunca desde a ruína do nazismo os extremistas da direita tiveram tantos votos quanto na última eleição.

Na Inglaterra, um referendo tirou o país da União Europeia, enfraquecendo-o econômica e politicamente, confirmou a decisão e reelegeu o Partido Conservador, levando seu líder, Boris Johnson, ao posto de Primeiro-Ministro. Johnson é abertamente racista e islamofóbico.

Aparentemente, a revolução tecnológica foi crucial para fragmentar a política. Por quê? Porque desestabilizou o financiamento da mídia tradicional, afetando a produção e a distribuição de notícias, provocando o fechamento em massa de jornais em todo o planeta. Do lado da liberdade de expressão, a democracia perdeu curadoria.

Nota do redator: o capitão, registre-se, não tem o apoio da tripulação, mas ainda goza de grande prestígio junto aos passageiros mais afortunados. Estes estão preocupados apenas com o prejuízo que aquele acidente já estava causando a seus bolos, afinal, investiram pesadamente no projeto ambicioso do capitão. Além disso, já tinham reservados, em local estratégico do barco, botes para transportá-los, às suas famílias e às joias que levavam, com segurança à terra firme.

Negócios são negócios – não se sabe ainda com que grau de intensidade o Leviatã, o monstro que vem na cola do novo coronavírus, na hora oportuna, atingirá a nossa já enfraquecida economia; mas no caso do Titanic, lembrem-se, o navio afundou junto com as joias dos ricaços; o capitão, pelo menos, foi o último a abandonar o grande navio naufragado.

*Cristiano Romero é editor-executivo

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