Como as cabeçadas se tornaram uma das maiores preocupações do futebol

Entre tantos feitos ao longo da carreira, o zagueiro Hideraldo Luís Bellini entrou para a história em pelo menos duas ocasiões
Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha, Brasília, DF, Brasil, 10/8/2016 Foto: Andre Borges/Agência Brasília Coreia do Sul e México jogam nesta quarta-feira (10), no Estádio Mané Garrincha, pelo grupo C do futebol masculino nas Olimpíadas 2016.
Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha, Brasília, DF, Brasil, 10/8/2016 Foto: Andre Borges/Agência BrasíliaCoreia do Sul e México jogam nesta quarta-feira (10), no Estádio Mané Garrincha, pelo grupo C do futebol masculino nas Olimpíadas 2016.

André Biernath*, BBC News Brasil

A primeira delas foi em 1958, quando era o capitão da Seleção Brasileira e ergueu pela primeira vez a taça da Copa do Mundo para o país.

A segunda ocorreu em 2014, quando a família decidiu doar o cérebro do ex-atleta para estudos científicos, logo após a morte dele.

No final da vida, Bellini desenvolveu sintomas típicos de demência, como esquecimentos frequentes e dificuldades de raciocínio.

A análise do órgão mostrou que, na verdade, ele foi acometido pela encefalopatia traumática crônica.

Essa condição afeta pessoas que sofreram pancadas repetidas na cabeça ao longo da vida — como é o caso de jogadores de futebol e boxeadores.

Ao lado de outros ex-esportistas, a história do capitão do primeiro título mundial brasileiro jogou luz e revelou o impacto que os esportes de contato podem ter na saúde do cérebro pelo resto da vida.

Mas, afinal, o que é a encefalopatia traumática crônica? E quais são os meios de evitar esse problema?

A questão está na frequência

A médica Roberta Diehl Rodriguez, do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que essa doença passou a ser estudada mais a fundo recentemente, nos últimos 15 anos.

“E nós só conseguimos fazer o diagnóstico definitivo da encefalopatia traumática crônica depois que o indivíduo morre, por meio da análise do cérebro”, diz.

Pelo que se sabe até o momento, o quadro pode se manifestar de diferentes maneiras.

Alguns apresentam sintomas parecidos ao do Alzheimer, como perda de memória e dificuldades para completar o raciocínio.

Em outros, porém, os incômodos se aproximam mais de quadros psiquiátricos, como o transtorno bipolar, em que ocorrem alterações de humor.

Há também casos descritos em que o paciente desenvolveu vícios fortes em apostas, álcool ou outras drogas.

“Os estudos mais recentes também nos mostram que, mais importante do que a quantidade ou a força das pancadas, um aspecto fundamental da doença é o intervalo entre os traumas”, informa Rodriguez.

Ou seja: se o indivíduo tem um choque de cabeça e, poucos dias depois, passa por um acidente parecido, isso representaria um sinal de alerta maior.

O zagueiro Bellini (à esquerda) disputa a bola de cabeça com o galês Ivor Allchurch e o também brasileiro De Sordi na Copa do Mundo de 1958
O zagueiro Bellini (à esquerda) disputa a bola de cabeça com o galês Ivor Allchurch e o também brasileiro De Sordi na Copa do Mundo de 1958

Possivelmente, pancadas tão próximas não dão tempo de o cérebro se recuperar bem daquele primeiro impacto, o que piora ainda mais os efeitos que isso tem ao longo da vida.

É por isso, aliás, que atletas de algumas modalidades são mais propensos a sofrer com a tal da encefalopatia traumática crônica: a própria natureza da profissão os predispõe a levar pancadas no crânio.

Os primeiros dessa lista são os lutadores, já que a meta desse esporte está justamente em acertar a cabeça do adversário com socos e chutes — no passado, inclusive, a doença era conhecida como “demência pugilística”, nome que caiu em desuso recentemente.

Grandes nomes do boxe, como Muhammad Ali e Éder Jofre, por exemplo, apresentaram problemas neurológicos no final da vida.

Jogadores de rúgbi e futebol americano também são mais propensos a desenvolver o problema, já que esses esportes são marcados por muitos choques e encontrões.

Por fim, os profissionais do futebol completam o grupo. Como cruzamentos e bolas aéreas são um recurso importante do esporte, as batidas de crânio são frequentes — e, como você vai entender mais adiante, têm se tornado mais comuns nas últimas décadas.

Cérebro em desalinho

Mas o que acontece na cabeça logo após a pancada?

Para entender esse mecanismo, é preciso conhecer antes uma proteína chamada TAU.

“Ela ajuda a manter a estrutura dos neurônios e auxilia no transporte de nutrientes entre uma célula e outra”, resume Rodriguez.

Só que as pancadas repetidas parecem alterar um pouco desse balanço neuronal.

Quando ocorre o choque de cabeça, essa proteína se rompe e ocorre uma inflamação.

E aí entra o aspecto crônico das batidas. “Se outra pancada acontece logo depois, o cérebro não consegue se recuperar da primeira e aquela proteína começa a se depositar ali”, diz a neurologista.

“Com o passar do tempo, esses agregados anormais de proteína TAU começam a prejudicar a passagem de informações e nutrientes nos neurônios”, complementa.

E isso, ao longo de várias décadas, pode culminar em grandes dificuldades para o funcionamento adequado do cérebro.

Vale mencionar que esses mesmos emaranhados de proteína TAU são observados em outras enfermidades neurológicas, como o próprio Alzheimer.

Na encefalopatia traumática crônica, porém, é possível identificar um fator que está por trás do acúmulo dessa substância: as pancadas repetidas na cabeça.

Éder Jofre durante uma luta contra o mexicano Eloy Sanchez
O pugilista brasileiro Éder Jofre (à direita) morreu em outubro de 2022 e teve o cérebro doado para estudos na USP

Rodriguez conta que a USP possui um grande banco de cérebros, que são conservados para pesquisas científicas.

“Num estudo, eu avaliei 1.157 desses órgãos que pertenceram a pessoas que não tinham um histórico de atleta profissional.”

“Desses, só encontramos a encefalopatia traumática crônica em sete homens”, continua.

“Depois, consegui conversar com a família de um deles e descobri que o indivíduo era goleiro de um time amador, pelo qual disputava jogos no final de semana”, revela.

O futebol mudou

O médico Jorge Pagura, da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), avalia que o atual estilo de jogo de equipes e seleções faz com que os choques de cabeça se tornem cada vez mais comuns e perigosos.

“Antigamente, o futebol era mais disputado com os pés. Se você pegar qualquer vídeo de uma partida dos anos 1970, poderá conferir que os jogadores tinham espaço para trabalhar a jogada, com o adversário marcando a uma distância de um a três metrôs”, descreve.

“Atualmente, você vê três ou quatro atletas disputando o mesmo pedaço do gramado”, compara.

Segundo Pagura, o futebol “saiu da era dos grandes craques para entrar na época dos grandes atletas”.

“Falamos de profissionais que são mais altos, mais fortes e que correm distâncias maiores”, diz.

“Além disso, a bola aérea virou um artifício valioso. Hoje, muitos gols saem de cabeceios após cruzamentos na lateral ou na linha de escanteio”, complementa.

Estamos diante, portanto, de um cenário que facilita ainda mais os encontrões de cabeça entre atletas adversários (ou até mesmo entre companheiros do mesmo time).

Prova disso são estudos realizados pela própria CBF, que monitoram as lesões mais comuns que ocorrem nas edições recentes do Campeonato Brasileiro.

Em 2019, a cabeça foi o segundo local do corpo com o maior número de machucados diagnosticados (em primeiro lugar, ficaram os músculos das coxas).

Para ter ideia, 14% de todas as lesões que ocorreram na competição afetaram o crânio dos atletas.

O que fazer?

Pagura entende que a conscientização sobre a encefalopatia traumática crônica no futebol tem aumentado.

“Hoje temos um protocolo bem definido e o atleta tem que ser substituído se o médico achar necessário após um trauma”, aponta.

“Essas pancadas podem ser um verdadeiro inimigo oculto, porque em 80% das vezes não há alteração de consciência e o atleta acha que pode continuar no jogo”, calcula.

Menino cabeceando a bola
Jogadas de cabeça serão proibidas nos jogos de futebol entre os menores de 12 anos

Com o avanço do conhecimento sobre o quadro degenerativo, a tendência é que as próprias regras do jogo passem por mudanças.

Uma das primeiras alterações foi recentemente promovida pelo Conselho da Associação Internacional do Futebol (Ifab, na sigla em inglês).

Os representantes da entidade recomendaram que as cabeçadas intencionais na bola devem ser proibidas nas partidas que envolvam crianças com menos de 12 anos.

Nessa faixa etária, as jogadas aéreas serão paralisadas pelo juiz, que marcará uma falta para o time adversário.

Para Rodriguez, a medida faz sentido, até porque o cérebro ainda está numa fase de desenvolvimento nessa idade.

“Não se trata, claro, de demonizar o esporte ou proibir a prática do futebol, mas encontrar um meio termo para uma competição mais saudável e com menos riscos”, pondera.

E, embora as cabeçadas sejam menos comuns entre atletas de final de semana e nos jogos amadores, Pagura recomenda que todos tomem os cuidados necessários para evitar traumas no crânio.

“Ao contrário das lesões que acometem os joelhos ou os tornozelos, em que muitas vezes é fácil notar o inchaço pela pele, o cérebro pode não dar muitos sinais imediatos de algum problema”, compara.

“Se porventura você sofrer alguma pancada e ficar com dor de cabeça ou no pescoço, é importante procurar o pronto-socorro para ver se está tudo bem”, conclui.

*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil

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