César Felício: O risco Telegram

Rede social tornou-se uma arma bolsonarista
Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

César Felício / Valor Econômico

Para cada seguidor do canal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Telegram, o presidente Jair Bolsonaro tem 20. No caso do ex-governador Ciro Gomes, a proporção é de um para cinquenta. Em relação a Sergio Moro, é de 1 para 200.

Segundo a ferramenta Telegram Analytics, da própria plataforma digital, o canal oficial do atual presidente tem uma audiência diária de 1,2 milhões de acessos em seus cerca de 8 posts por dia. Cada post alcança uma média de 151,6 mil usuários.

O número de usuários do Telegram inscritos no canal de Bolsonaro cresceu de maneira ininterrupta entre maio e outubro do ano passado, e desde então está em um platô. Anteontem, ele tinha precisamente 1.049.509 inscritos. E isso se refere apenas ao seu canal oficial. Ainda existem os da sua legião de adeptos. Um deles, o do blogueiro Allan dos Santos, investigado no inquérito das “fake news” e proscrito em todas as redes sociais que seguem as orientações do Judiciário brasileiro, tem 124 mil seguidores. Lula, Ciro e Moro, somados, alcançam 70 mil.

A engenheira Giulia Tucci, da UFRJ, está elaborando uma tese de doutorado sobre o uso político do Telegram. E uma das suas primeiras constatações é que trata-se da rede mais ocupada pelo bolsonarismo. A título de comparação, no Twitter, por exemplo, a soma do total de seguidores de Lula, Ciro e Moro ultrapassa, ainda que por pouco, o toral dos seguidores do presidente: 7,4 milhões a 7,3 milhões.

Embora tenha um alcance relativamente pequeno, não é possível menosprezar o Telegram. Ele está instalado em 45% dos aparelhos de smartphones do Brasil, segundo a pesquisadora. Equivale a meio WhatsApp.

O presidente e seus seguidores transformaram o Telegram em uma estufa onde cultivam as suas lavouras mais promissoras, primeiro passo para que teorias controversas ganhem asas no imaginário do eleitor comum. Quando o Judiciário e o Congresso Nacional discutem meios de conter ou até mesmo de retirar o Telegram do ar, coloca-se em risco uma ferramenta poderosa na estratégia digital de Bolsonaro, que com certeza vai reagir.

De instrumento de campanha, o Telegram pode se transformar em um dos temas dela. O que não invalida e nem deve ser motivo para intimidar as autoridades preocupadas com a sanidade democrática a fazer o que precisa ser feito. Há conflitos que não podem ser evitados. Como disse ontem o jurista Joaquim Falcão na “live” do Valor, há um risco quando a liberdade de expressão colide com a expressão do direito.

Discute-se a interdição do Telegram pelo fato da rede fundada pelo russo Pavel Durov simplesmente ignorar a Justiça brasileira e sequer ter representantes no Brasil. Mas com o arcabouço jurídico existente atualmente a interdição não será uma operação simples.

O marco civil da internet, em vigor desde 2014, em seu artigo 12, incisos 3 e 4, estipula que plataformas digitais que não cumpram normas estão sujeitas a suspensão e banimento. Entenda-se aqui normas judiciais, o que não é o caso no momento do Telegram, uma vez que a plataforma por ora desprezou iniciativas da Justiça ainda no plano administrativo.

Mas mesmo quando a obrigação judicial vier, há controvérsias. Em um caso que terá repercussão geral quando julgado, o Supremo suspendeu a aplicação deste artigo, enquanto analisa uma decisão judicial de primeira instância de um magistrado de Lagarto (SE), que tentou tirar do ar o WhatsApp no país. O caso está em exame desde 2016. O juiz sergipano queria que o WhatsApp revelasse conversas entre narcotraficantes, e a plataforma digital argumentou que a decisão era impossível de ser cumprida, porque as conversas eram criptografadas.

A questão é enfrentada pelo Supremo no exame de uma ação de descumprimento de preceito fundamental, a 403, relatada por Luiz Edson Fachin, e por uma ação direta de inconstitucionalidade, a 5.527, nas mãos de Rosa Weber. O ministro Alexandre de Moraes, o mesmo que presidirá o Tribunal Superior Eleitoral nas eleições deste ano e que comanda o inquérito das “fake news”, pediu vista das duas ações.

Para o professor de direito eleitoral Diogo Rais, da Universidade Mackenzie, o voto de Moraes, quando for feito, pode ser o primeiro passo para disciplinar como estes incisos do marco civil da internet poderão ser aplicados.

Em relação à falta de sede no Brasil, o que não é o caso do WhatsApp mas é o do Telegram, a situação é ainda mais complexa no âmbito judicial. Hoje isso não é proibido. “Não existe dispositivo que obrigue empresas de plataforma digital a terem representação no Brasil, a não sere que vendam anúncios”, comenta Rais.

O projeto relatado pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) pode resolver este problema específico. O deputado pretende criar esta exigência. Mas o PL 2.630 tende a demorar a entrar em vigor. Rais lembra que a proposta é bastante complexa, vai muito além de tratar do caso que envolve o Telegram e ainda tem várias etapas do processo legislativo a serem cumpridas. A eleição é daqui a oito meses e a entrada em vigor de uma legislação anti-“fake news” ainda em discussão no Congresso está no plano da incógnita.

Um sinal das dificuldades que a proposta legislativa de coibir “fake news” pode enfrentar para ganhar ritmo célere foi o fato de a Câmara dos Deputados não ter aprovado o requerimento de urgência para a matéria, na sessão de anteontem, como inicialmente se esperava.

A discussão sobre o que fazer com o Telegram esquenta no momento em que o presidente Jair Bolsonaro retoma um enfrentamento – por enquanto restrito ao plano verbal, sem sombra de crise institucional – com os ministros Barroso, Fachin e Moraes.

As críticas de Bolsonaro aos três ministros em sua entrevista anteontem na Jovem Pan ganharam tons freudianos. O presidente enxergou comportamento adolescente nos três e se queixou que Moraes não o atendeu quando Bolsonaro dirigiu a palavra a ele, em um encontro protocolar no Palácio do Planalto, no início do mês, que durou menos de dez minutos. Mas o confronto perde o tom de anedota quando o presidente busca jogar as Forças Armadas contra a Justiça Eleitoral, como fez na semana passada ao mencionar um questionário apresentado pelo Exército ao Supremo, sob promessa de sigilo. Foi um presságio sinistro das tempestades que podem vir pela frente.

*César Felício é editor de Política.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/o-risco-telegram.ghtml

Privacy Preference Center