Cercado pelo agronegócio, território Xavante tem alta letalidade pela covid-19

Foto: ANDRESSA ZUMPANO/INFOAMAZONIA /
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Pressão sobre territórios, poluição de rios por agrotóxicos e avanço de doenças crônicas deixam população vulnerável à pandemia

Fábio Zuker / Tatiana Merlino / InfoAmazônia / El País

Sob o sol do Planalto Central, com corpos pintados de tintas preta e vermelha —feitas de urucum e carvão— e adornados com brincos e pulseiras, indígenas Xavante carregam faixas. “Povo xavante não é agronegócio. Terra livre”, “Povo Xavante é contra o PL 490 e marco temporal”, são algumas das frases escritas nos cartazes.

Nem a pandemia da covid-19, que impactou os Xavante de maneira devastadora, nem os cerca de 800 quilômetros que separam a Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, um dos dez territórios reconhecidos pela União onde vive o povo Xavante, no Mato Grosso, intimidaram os indígenas de irem protestar, em agosto, na capital do país. A cacica Carolina Rewaptu, que vive na Marãiwatsédé, e a liderança xavante Hiparidi Top’tiro, morador da TI Sangradouro, estavam entre os indígenas que participaram do acampamento “Luta Pela Vida”, em Brasília, organizado em oposição à tese do marco temporal —que tenta condicionar a demarcação das terras indígenas do país ao momento de promulgação da Constituição de 1988.

Eles também foram manifestar oposição ao projeto Agro Xavante, de iniciativa de fazendeiros do Sindicato Rural de Primavera do Leste em parceria com o governo do Mato Grosso e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Intitulado de “independência indígena”, o projeto prevê a exploração agrícola nas terras indígenas e afirma que irá “levar desenvolvimento, segurança alimentar e qualidade de vida” aos Xavante. A escolha pelo uso de urucum e carvão para pintar a pele tem um motivo, relata Hiparidi. “Urucum e carvão eram usados para a guerra. Estamos em guerra com o Governo. Essa é a explicação”, afirma, referindo-se ao Governo de Jair Bolsonaro.

Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Nas últimas décadas, com o agronegócio cercando as terras Xavante, houve uma diminuição das áreas para cultivo, pesca e caça. Hoje, o território corresponde a pequenas ilhas verdes, rodeadas de soja e gado e, em especial, soja. O projeto Agro Xavante representaria uma ameaça a mais à existência destes pequenos pontos verdes. “Com essa entrada do agro no nosso território, piorou de vez. Muita gente fala que é exagero, mas onde tinha refúgio dos animais, está sendo derrubado. E vamos perder os conhecimentos tradicionais milenares das ervas medicinais. Eles vão desaparecer”, preocupa-se Hiparidi.

De acordo com a cacica Carolina Rewaptu, com a intensificação dos plantios de soja no entorno das terras indígenas, hoje não há mais recursos naturais para se fazer artesanato, tampouco raízes medicinais para tratamentos de saúde. “Antes, a paisagem era mais fechada. Agora mudou muita coisa. Vimos essas mudanças”, explica Carolina, que nasceu em 1960 – década em que a tomada de terras por fazendeiros se intensifica, no âmbito do projeto de colonização incentivado pelo Estado brasileiro e que recebeu amplo apoio da ditadura militar.

O estrangulamento do território afetou também a alimentação tradicional dos Xavante, que foi sendo substituída por produtos industrializados. A vulnerabilidade alimentar e de saúde causadas pela degradação ambiental que acompanha o agronegócio ficou particularmente visível durante a pandemia de covid-19. A população Xavante foi uma das etnias que mais sofreu e perdeu vidas para o vírus.

Destruição territorial e alta taxa de letalidade

Um dado acerca da elevada taxa de mortalidade entre os Xavante chamou a atenção de pesquisadores da área da saúde. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xavante apresentou uma taxa de 341 mortes por cem mil habitantes, entre a nona e a quadragésima semana epidemiológica —ou seja, no intervalo entre os dias 23 de fevereiro e 3 de outubro de 2020.

A título de comparação, neste mesmo período, a taxa de letalidade para a população geral brasileira foi de 69.5 mortes por cem mil habitantes. Isso significa que a mortalidade do novo coronavírus na população Xavante foi quase cinco vezes maior do que na população em geral. Essas informações constam em um estudo publicado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outras instituições de pesquisa, que utilizou dados compilados pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O estudo aponta também para uma enorme discrepância entre as mortes registradas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, e os dados compilados pela Coiab, o que indica uma elevada subnotificação nos dados oficiais sobre casos e mortes pela covid-19 entre indígenas. Enquanto a Sesai aponta que 330 indígenas morreram no período analisado, para a Coiab foram 670 mortes. Entre os fatores que explicam essa diferença, o estudo ressalta a negação da identidade dos indígenas mortos pela covid-19, que, principalmente quando se contaminam e vêm a óbito na cidade, são registrados como pardos.

Mas o estudo vai além de indicar as subnotificações dos dados do Ministério da Saúde. Para Paulo Basta, médico sanitarista especializado em epidemiologia e em saúde indígena e um dos responsáveis pelo trabalho, “conseguimos mostrar uma associação direta entre a devastação (de determinados territórios indígenas) e as taxas de incidência nos territórios avaliados”.

Para Basta, um dos pontos centrais do estudo é apontar “como ameaças externas podem contribuir para o espalhamento da pandemia nas terras indígenas”. Por ameaças externas o epidemiologista se refere a atividades madeireiras e garimpeiras ilegais, grilagem de territórios indígenas, mas também aos efeitos de queimadas e do próprio agronegócio.

Para ilustrar seu ponto, Paulo Basta explica como características específicas vivenciadas pelos territórios indígenas em quatro DSEIs influenciam a alta mortalidade identificada pelo estudo.

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Para o médico, no DSEI Alto Solimões, o fator que explica a alta letalidade é a precária infraestrutura hospitalar, que é dependente da cidade de Manaus. De Tabatinga (AM) para a capital do Amazonas, a distância é de 1.100 quilômetros, que levam 1h45 de voo para serem percorridos, ou, com valor muito mais acessível para a população, quatro dias de barco. Já nos DSEIs Xavante, Cuiabá e Kayapó do Pará, Paulo Basta ressalta que, além da também precária infraestrutura, “uma grande presença de comorbidades, como hipertensão e diabetes, estão associadas ao desfecho negativo da contaminação pela covid-19”.

O médico sanitarista explica que essas comorbidades teriam origem num fenômeno que ele considera chave: transição nutricional. “Essas populações, à medida que foi se estabelecendo o contato com a sociedade não indígena, marcado pela destruição do território e diminuição de disponibilidade de recursos naturais e disponibilidade de alimentos tradicionais (pesca, caça, roça ficam mais escassos), os indígenas passam a comer comida industrializada, de baixo valor nutricional, rica em açúcar, sal e gordura”, explica.

A transição nutricional a que Paulo Basta se refere está relacionada a transformações culturais, nas formas tradicionais de alimentação, um processo algo inevitável, que acompanha a intensificação do contato com a sociedade não indígena. Só que este contato, histórica e atualmente, está longe de ser pacífico. E, como ressalta, é um processo que vem acompanhado de uma série de destruições, que permitem a transformação da floresta e do Cerrado em locais aptos para gado e soja.

Pela ampla degradação ambiental causada, tanto indígenas que vivem essa situação na pele —e no prato— quanto epidemiologistas especializados em saúde indígena encontram no avanço do agronegócio uma chave de raciocínio para a alta letalidade de indígenas Xavante durante a pandemia de covid-19. O argumento é que a diminuição das áreas de caça e de roçado, e o impacto dos agrotóxicos nos rios que acompanha a intensificação do plantio de monocultivos nos últimos 36 anos criaram condições ambientais que aumentam a situação de vulnerabilidade dos Xavante.

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Com maior insegurança alimentar, alimentação de baixa qualidade e assistência médica precária, doenças circulam mais e têm maior letalidade entre os Xavante. E a covid-19 seguiu este padrão. Essa é a avaliação de Aline Alves Ferreira, epidemiologista especialista em nutrição, que realizou sua pesquisa de doutorado pela Fiocruz entre os Xavante. “A gente já tem indicadores de saúde e de alimentação que são muito piores quando comparados aos não indígenas no Brasil, e que se acentuaram no cenário do coronavírus.”

Ferreira coloca menos ênfase na pré-existência de comorbidades, e mais na baixa atenção médica, na falta de saneamento e nas condições ambientais criadas pelo agronegócio, que afetam, diretamente, as formas de alimentação. A descrição que ela faz do território Xavante é avassaladora: “Tem aqueles pastos, ali: soja, soja, soja, soja. Aí, de repente, quando começa a terra indígena, a vegetação muda completamente.”

A epidemiologista explica que, com um ambiente cada vez mais reduzido, com um ecossistema cada vez mais afetado, cresce a busca por alimentos ultraprocessados (o que significa uma piora na qualidade da alimentação). Mas há também uma piora na própria regularidade de acesso ao alimento.

Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Comida de ontem, comida de hoje

De sua casa na TI Marãiwatsédé, a cacica Carolina Rewaptu conta que, à época em que era criança, cabia às mulheres a responsabilidade por coletar frutas do Cerrado, como pequi e buritizal. E também raízes, como batata, inhame, batata nativa, abóbora, mandioca.

“Era bom para nós”, diz a indígena, em entrevista por telefone, sobre a alimentação dos Xavante. “Esses alimentos de antigamente eram mais saudáveis. Era comida da roça. Era importante para a saúde das crianças, dos jovens, e das mães jovens na gravidez.” Carolina conta que eram as mais velhas que ensinavam esses costumes de alimentação, de como cuidar das crianças e preparar os alimentos e os rituais.

Nas últimas décadas, no entanto, o cenário mudou. “Hoje, colocam açúcar, sal e óleo em tudo. A gente não comia esses alimentos com açúcar”, explica a cacica da aldeia Madzabdzé. “No meu tempo”, as crianças eram muito sadias, com corpo físico estruturado. “Hoje, a gente vê as crianças muito gordas. Com essas mudanças, muitas pessoas estão com diabetes e obesidade com esse alimento que vem da cidade. Há muita preocupação com o povo Xavante”.

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