Carlos Andreazza: O movimento pendular

Bolsonaro não muda. Não foi mudado pelo fator Lula; não em seu comportamento frente à peste. (Será matéria para outro artigo; mas, à sombra do ex-presidente, responderá sobretudo na economia, com uma derrama populista de dinheiros, com Guedes, com tudo, para financiar a reeleição e pagar o preço do Centrão, que subiu.)
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Bolsonaro não muda. Não foi mudado pelo fator Lula; não em seu comportamento frente à peste. (Será matéria para outro artigo; mas, à sombra do ex-presidente, responderá sobretudo na economia, com uma derrama populista de dinheiros, com Guedes, com tudo, para financiar a reeleição e pagar o preço do Centrão, que subiu.)

Frente à pandemia, rara escada para a agitação reacionária, Bolsonaro será ainda mais radicalmente Bolsonaro; um mentiroso, investidor no sectarismo, que prospera no choque, mas que sabe se moldar — poucos alcançam distorcer a própria palavra como ele — ante a imposição do mundo real.

Irá assim até o final, aquele que disse nunca ter se referido à peste como “gripezinha”. Não nos iludamos com um baile de máscaras à tarde. A noite vem. E, ao ato que pareceu indicar moderação, logo corresponderá a forja de novos inimigos. E, do gesto que pareceu considerar uma médica séria para o Ministério da Saúde, logo emergirá a intenção de pazuellizá-la.

Bolsonaro é Bolsonaro. Não importa, pois, o futuro de Pazuello no governo, se fica ou cai; ministro da Saúde que nunca foi, cavalo — no sentido espiritual — para que Bolsonaro o fosse. Bolsonaro é. Outros pazuellos virão. Hajjar não topou. Haverá quem tope. E Bolsonaro continuará sendo.

O padrão está dado. Aqui e ali, quando já sem alternativa, cederá ao mundo real. Ou não terá sido ele a se sentar com a Pfizer depois de desqualificar por meses o laboratório? Ou não terá sido ele a comprar uma vacina, a CoronaVac, que tratara como inimiga e jurara jamais adquirir?

O mundo real se impõe, e ele se ajusta; a isso respondendo, sempre, com horror — normalmente com ataques à democracia liberal.

Bolsonaro opera em movimento pendular. De um lado, tocado pela imposição do mundo real, o vírus que o empareda, que depreda a economia, que fere a popularidade, de súbito se torna defensor da vacinação em massa — aquela contra a qual difundiu bárbara desconfiança. De outro, pressionado pela necessidade de dar satisfação — alimento — aos sectários que lhe compõem a base de apoio fundamental, incomodados ante seus contatos com a civilização, fabrica guerras. É como se equilibra. Bolsonaro se equilibra na instabilidade, na imprevisibilidade. O chão em que será competitivo.

Enquanto ousa se apregoar como alguém que sempre defendeu que a economia só teria condições de se reabilitar organicamente por meio de vacinação em massa (encaixou essa versão na semana passada, com Guedes, aquele que resolveria a pandemia com R$ 5 bilhões); enquanto frita Pazuello, cavalo que verteu em boi de piranha, o culpado por o Brasil não ter iniciado seu programa de imunização em 2020, noutra mão Bolsonaro balança o berço de seus fanáticos cultivando ameaças artificiais.

Já foi, repito, a vacinação em massa; com os bolsonaristas mobilizados contra uma imunização obrigatória que consistiria em invadirem nossas casas para nos cravarem agulhas ao braço. Hoje, o mais influente inimigo fantasioso é o lockdown; algo que nunca houve no Brasil, não até agora, mas contra o que o bolsonarismo luta a batalha definidora do futuro. Um lockdown imaginário; que, no entanto, transforma governantes em tiranos e justifica a constituição de milícias da resistência. Governadores e prefeitos legitimamente eleitos, que tomam medidas restritivas legais, vendidos, por Bolsonaro, como ditadores.

O presidente que vestiu máscara e que foi lido como alguém que se amansava ante à restituição dos direitos políticos de Lula sendo o que, no mesmo dia, pouco depois de falar das Forças Armadas e em como era fácil baixar uma ditadura no Brasil, afirmou ser aquele que teria como garantir nossa liberdade. Mais: o que se apresentou — em construção típica de um autocrata, o nosso Viktor Orbán — como “o garantidor da democracia”.

Começa assim. Com “o meu Exército”; e não tarda chega-se à “minha democracia”. Já chegamos a esta generosidade: “Eu sou a pessoa mais importante desse momento. Faço o que o povo quiser”. Que povo? É relevante considerar o sentido de povo para alguém como Bolsonaro; povo sendo aqueles que o apoiam — uma compreensão essencialmente totalitária. O povo sendo aquele que vai à porta da mãe de um governador para intimidá-la.

Veja-se a maneira altiva como suprime filtros republicanos: “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Porque, se eu levantar a minha caneta e falar shazam, eu vou ser ditador”. Depreende-se que, amparado (pelo povo, segundo Bolsonaro), poderia agir como ditador sem ser ditador. É isso?

Claro que ele sabe o que é estado de sítio; mas precisa deturpar o toque de recolher — medida restritiva definida em lei — em ato discricionário, de modo a substanciar seu lockdown tirânico. É desinformação golpista.

Que também necessita — projetando um futuro caótico — gerar pânico nuns, soprar o apito para outros. “Invasão de supermercados. Fogo em ônibus. Greves. Piquetes.” Manifesta-se aquele que foi o maior entusiasta — um agente estimulador — da revolta dos caminhoneiros que parou o país em 2018. Alguém cuja pregação armamentista deixou de se deter à velha defesa da propriedade privada para se fundamentar numa ideia de resistência civil à opressão de governantes. Gravíssimo.

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