Cacá Diegues: A estratégia da mentira

Militantes brasileiros do autoritarismo armado se dedicam à fabricação inesgotável de fake news.
Foto: Roberto Parizotti/ Fotos Públicas
Foto: Roberto Parizotti/ Fotos Públicas

Militantes brasileiros do autoritarismo armado se dedicam à fabricação inesgotável de fake news

Todo mundo mente nesse mundo. Quando a gente é criança, mesmo que ninguém nos ensine a mentir, a gente mente. Às vezes, por motivos até louváveis, como livrar a cara de um amigo ameaçado por meninos da turma da namorada recém-conquistada. Outras, para contar vantagens inconsequentes, como na qualificação exagerada do pai ou de um tio. Pode-se mentir também por excesso de imaginação, impossível de ser contida.

Na minha infância, em Maceió, uma senhora negra tomava conta dos filhos de meus pais, narrando estórias maravilhosas para nos fazer dormir. A mim, por exemplo, Bazinha me contava as aventuras do Zumbi dos Palmares que, entre outras virtudes empolgantes, sabia voar, lá pela Serra da Barriga, perto de nossa cidade. Mais tarde, lendo de Monteiro Lobato a Ariano Suassuna, acabei verificando decepcionado que alguns heróis desses autores contavam estórias mais audaciosas que as da Bazinha. Isso para não falar dos livros de João Ubaldo Ribeiro, que li muito mais tarde, claro.

A mentira é uma característica da civilização humana e nasceu com a própria Gênesis, quando Adão e Eva tentaram iludir o Senhor, sobre terem experimentado do fruto proibido. Ou, que me desculpem a ousadia, quando o próprio Senhor ordenou a Abraão que sacrificasse, à sua glória, o filho Isaac. E era apenas uma prova de fé. Dentro ou fora de Livros Sagrados, em louvor ou não de deuses e senhores de nossas almas, a mentira se estabeleceu na cultura humana, como uma característica dela e só dela. Você já encontrou algum animal mentiroso? Nenhum deles é capaz de mentir. Só nós.

Como tudo que é humano, a mentira serve ao bem e ao mal, depende de quem e para o quê a utiliza. Foi impulsionado pela mentira organizada que Adolf Hitler se impôs ao povo alemão. Quando alguns de seus colaboradores se recusaram a apoiar o projeto de guerra para ocupação da Europa, militantes nazistas trataram de espalhar que a esposa do general Blomberg, ministro da Guerra e principal opositor ao plano guerreiro, tinha sido prostituta e que a mãe dela fora dona de um puteiro.

Até meados da Segunda Guerra Mundial, Hitler nunca teve o Exército que proclamava ter, enganando o mundo e o próprio povo alemão com exibições falsas e falsos desfiles em que soldados e equipamentos de guerra se repetiam. Na verdade, a anexação dos sudetos, as incorporações da Renânia e da Áustria, assim como o desmantelamento da Tchecoslováquia, preliminares da Guerra, não tinham sido propriamente vitórias militares, como Hitler afirmava para convencer os alemães de sua força e de seu poder. Foi com mentiras sucessivas, como essas, que Hitler desmantelou toda a estrutura democrática da Alemanha. E, com elas, quase faz a suástica cobrir o continente europeu inteiro.

Esse uso esperto da mentira, criada com certa astúcia, é a mesma estratégia usada pelos bolsonaristas no Brasil. Além de afastar de perto dos fatos políticos perigosos democratas, atropelando-os ou simplesmente desmoralizando suas decisões, os militantes brasileiros do autoritarismo armado e mentiroso se dedicam à fabricação inesgotável de fake news. Chegaram a anunciar, por redes sociais, que os caixões que vemos serem enterrados pelo Brasil afora, fazendo sofrer tanta gente, estão vazios ou carregados de pedras. O desfile de caixões serve apenas para agravar as consequências irrelevantes da “gripezinha”.

De tanto se dedicar às porradas inconsequentes e às picuinhas tão vazias sobre o governador de São Paulo, Bolsonaro acabou se tornando o cabeça de ponte no lançamento da candidatura de João Doria, para 2022. Ninguém melhor para promovê-lo. O que mais nos confunde é que a ideologia do PR não tem muita tradução lógica em seus atos. Agora mesmo, ele vetou, mais uma vez, a proteção ao audiovisual brasileiro na televisão paga, pois isso nos prejudicaria a sorte que temos de assistir às formidáveis obras estrangeiras (sobretudo americanas) que elas, as emissoras, nos oferecem diariamente. Um gesto de extremo “globalismo”, realizado por um político que não perde a oportunidade de se declarar antiglobalista. E aí, Olavo de Carvalho, você não vai se manifestar? Ou o guru talvez esteja se reservando para a estranha defesa da cloroquina, um milagroso remédio para a Covid-19, praticamente vetado por todos os médicos do mundo.

O organizado serviço de fake news, em todas as redes sociais, promovendo desprezo e desrespeito pela ciência, parece uma campanha sem direção. Não havendo um centro de discussão, nem um alvo iluminado para onde se destina, só existe a trajetória e, portanto, o desejo de crise, estado humano que se caracteriza pela possibilidade de várias alternativas propulsoras. Apenas o capricho do poder.

Privacy Preference Center