O nome do jogo agora é restaurar a confiança dos mercados no País e em suas instituições
Não me arrisco a fazer um prognóstico para o segundo turno, mas o resultado do primeiro, as linhas gerais da discussão pública e alguns elementos factuais me levam a crer que Bolsonaro só perderá para Haddad se uma chuva de meteoros extinguir metade de seus eleitores. Essa, no entanto, é a questão apenas numérica, não a questão política que temos pela frente, cuja feição será a mesma se der Haddad.
A questão política tem que ver com o grau de discórdia a que chegamos. A indagação relevante é como chegamos a ela e como vamos sair dela. É se vamos continuar alimentando esse maniqueísmo infantil ou se vamos voltar a ser o que somos, um país dotado de instituições razoáveis e possuidor de uma forte identidade nacional.
A indagação inicial, repetindo, é como chegamos a esta insanidade. Derrotado no primeiro turno, o PT e seus adeptos nos meios cultos da sociedade retomaram (sans le savoir…) a velha mutreta ideológica do stalinismo: quem não é comunista é fascista. Como se não existissem liberais e como se a maioria de qualquer sociedade se orientasse por conceitos ideológicos notoriamente limitados a estratos minoritários de nível intelectual elevado.
No Brasil essas lorotas não se formaram ontem, elas vêm de longe, remontam pelo menos aos anos 50 do século 20. No primeiro turno eleitoral elas se configuraram em torno de dois eixos facilmente perceptíveis: o antipetismo e a antipolítica. Ou, se preferirem, um duplo rechaço, ao PT e ao que se tem chamado de política tradicional, expressão que designa principalmente o Parlamento e os partidos. Esse duplo rechaço se formou e ganhou seu tom desvairadamente raivoso em função de fatores subjacentes bem reais: a recessão econômica promovida pelo governo Dilma, que duplicou o número de desempregados, e a corrupção desvelada pela Lava Jato, cujo epicentro foi a trama instalada na Petrobrás pelos dois governos petistas, Lula e Dilma.
A essa combustão vinda de baixo é preciso acrescentar dois outros elementos: a insegurança generalizada, dramatizada pela intervenção militar no Rio de Janeiro, e alguns fatos na área dos valores e costumes, que normalmente não teriam tanta importância, mas que ganharam corpo e se somaram ao “pacote” conservador em razão da arrogância de certos grupos de alto status típicos dos principais grandes centros urbanos, que tendem a ver como irrelevante e até como ilegítimo o sistema de crenças das camadas menos instruídas e dos habitantes das cidades menores do interior do País. A família e a religião, por exemplo, significam uma coisa para a classe alta de São Paulo ou do Rio de Janeiro e outra para os estratos médios e baixos do interior. Autoritarismo, conservadorismo, pulso, firmeza, coragem – cada um escolha o termo que for do seu agrado. Alguém acaso acredita que nova-iorquinos e texanos apoiem o aborto no mesmo grau?
A combinação dos elementos acima referidos levou, como hoje está claro, uma parcela da sociedade a pender para um candidato pouco conhecido, mas que pareceu oferecer-lhe o “autoritarismo” que ela estava procurando.
Um roteiro para a concórdia tem como primeiro componente, isso é óbvio, a Constituição. O Brasil não é uma republiqueta desordeira, é um Estado democrático dotado de uma ordem normativa elaborada e aprovada de maneira legítima. Os candidatos podem escorregar no vernáculo ou blefar o quanto queiram, mas não podem desconhecer que a obediência à Constituição é a condição sine qua non de sua investidura.
O segundo ponto a frisar é que o Brasil tem à frente uma agenda econômica de extrema relevância, que terá de ser enfrentada com urgência e realismo. À primeira vista, ambos os candidatos parecem despreparados para essa missão, mas isso é matéria vencida. Aquele que o destino conduzir ao Planalto não poderá hesitar nem 15 minutos, porque, agora, o nome do jogo é restaurar a confiança dos mercados no País e em suas instituições. Não terá tempo para confidenciar suas dúvidas hamletianas à caveira de sua preferência. Até porque, no famigerado “presidencialismo de coalizão” que nos rege, ou ele transmite rapidamente ao Congresso a força institucional que terá colhido nas urnas ou logo verá uma fenda abrir-se sob seus pés.
O terceiro ponto é desfazer o maniqueísmo e restaurar aquele mínimo de serenidade sem o qual o convívio civilizado é impossível. O aprendizado político dos candidatos e de seus correligionários de partido é importante, mas aqui a responsabilidade dos eleitores é também muito grande. A parte de Bolsonaro afigura-se mais simples que a do PT. Dele o que se exige é, por um lado, moderação verbal e, de outro, uma consciência mais exata das prioridades do País. Por mais importante que seja, a existência de desacordos no plano dos valores e do comportamento social não tem no presente momento, nem remotamente, a urgência das prioridades referentes à reorganização da economia. Além do que o Executivo meter-se em questões moralmente carregadas é o caminho mais curto para desnortear ainda mais o País e exacerbar conflitos.
De sua parte, os petistas precisam deixar para o lixo da História sua velha imagem do partido que teria “fundado” a democracia brasileira, ou que a tenha praticado segundo os melhores padrões. Isso é uma mentira sem tamanho. Desde seus primórdios, o PT nunca adotou plenamente a democracia representativa como um valor inegociável. Sempre manteve um pezinho dentro e outro fora da ordem democrática, valendo-se daquele que taticamente lhe pareceu conveniente em cada momento. Quem melhor o disse, e isso foi poucos dias atrás, foi José Dirceu, reeditando seu velho mote do projeto petista de poder. “Nosso objetivo”, declarou, “não é apenas ganhar a eleição, mas tomar o poder, coisa muito diferente.”
*Bolivar Lamounier é cientista político, é sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências