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Nas entrelinhas: PEC mantém Bolsa Família fora do teto por quatro anos

Luiz Carlos Azedo | Nas Entrelinhas

Depois de muitas negociações, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu mesmo propor que o Bolsa Família fique fora do teto de gastos por quatro anos. Ontem, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) protocolou a PEC da Transição, que mantém o pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil, rebatizado como Bolsa Família, seu nome de origem.

Pela proposta, o valor referente ao programa fica fora do cálculo do teto de gastos entre 2023 e 2026. A proposta de emenda à Constituição retira do Orçamento da União até R$ 175 bilhões do programa de transferência de renda para não estourar o teto de gastos. Castro levou em conta o projeto inicial elaborado pela equipe de transição de Lula.

Segundo o ex-ministro Nelson Barbosa, um dos economistas de equipe de transição, a estratégia adotada foi definida pelos senadores e deputados petistas. “Vamos ver a evolução da PEC”, disse. O texto precisa ser aprovado a tempo de ser incluído no Orçamento da União de 2003. “É a estratégia que foi considerada mais viável do ponto de vista político”, explicou Barbosa.

A PEC da Transição precisa ser aprovada no Congresso até 10 de dezembro para que haja tempo hábil para os parlamentares analisarem o Orçamento de 2023, que precisa ser aprovado ainda este ano.

“O texto apresentado excepcionaliza do teto de gastos o valor necessário para dar continuidade ao pagamento dos R$ 600 do Bolsa Família, mais R$ 150 por criança de até seis anos de idade. E, ainda, recompõe o Orçamento de 2023, que está deficitário em diversas áreas imprescindíveis para o funcionamento do Brasil. Esperamos aprovar a PEC, nas duas Casas, o mais rápido possível”, avalia Castro.

Apesar do otimismo de Castro, aprovar a PEC com prazo de vigência de quatro anos é uma missão quase impossível. Foi apresentada com esse prazo para uma negociação que envolve também a manutenção do orçamento secreto, que o Centrão pretende incluir na Constituição, o que é um absurdo. Por dois motivos:
1) o orçamento secreto pulveriza recursos de investimento do Orçamento, que deveriam ser destinados a projetos prioritários, como os de infraestrutura, por exemplo, em vez de servir de instrumento para o clientelismo mais rastaquera; 2) a falta de transparência na distribuição dos recursos, sem que se saiba quem são seus verdadeiros autores, facilita a formação de caixa dois eleitoral e o abuso de poder econômico pelos detentores de mandato, desequilibrando a paridade de armas na disputa.

O problema é que são poucos os parlamentares, inclusive os de oposição, que não se beneficiaram das chamadas emendas do relator, eufemismo usado para mascarar o orçamento secreto. Embora o PT e o PSB devem anunciar, hoje, o apoio à reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), essa não seria uma moeda de troca para manter o Bolsa Família fora do teto por quatro anos. O Centrão e seus aliados preferem barganhar cargos e verbas todo ano para manter o programa criado por Lula fora do teto. Um bom acordo seria aprová-lo por dois anos, mas a moeda de troca é a manutenção do orçamento secreto.

Ministério
O que não falta são especulações sobre os nomes dos futuros ministros de Lula. Se o time já está escalado, o que não parece ser o caso ainda, somente o presidente eleito sabe qual será a composição. Dois problemas estão na ordem do dia e pressionam para que ele anuncie logo os ministros. Primeiro, a situação da economia e a ambiguidade da equipe econômica.

O mercado quer que Lula indique logo o futuro ministro da Fazenda por uma questão de previsibilidade em relação à política econômica. Um nome sinalizaria o rumo do próximo governo, o que é fundamental para os investidores apostarem seus recursos no Brasil.

Essa é a cobrança. A dificuldade de Lula é ter alguém de sua absoluta confiança política na pasta, o que faz a banca de apostas tender para o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad. Será ele?

Outra área estratégia que não pode esperar muito é a Defesa. Diante de uma evidente conspiração golpista, que faz ruidosa agitação à porta dos quartéis, Lula precisa escolher o novo ministro da pasta. Sua intenção é ter um civil no cargo, que seja capaz de manter um bom relacionamento com os comandantes militares.

Não é uma operação simples, porque os militares não querem perder as posições no ministério — são milhares em cargos comissionados na Esplanada. A escolha do nome é estratégica. A tendência de Lula é pôr no cargo alguém que tenha bom trânsito com os generais e seja de sua absoluta confiança. Fala-se, por exemplo, em Aloízio Mercadante. É filho de general, mas isso não significa amplo trânsito nas Forças Armadas.

São decisões urgentes, que estão na esfera da cota pessoal de Lula. Mais complexa é a montagem da equipe ministerial em forma de governo de ampla coalizão, ou seja, com uma maioria no Congresso. A forma como será feita a composição é ainda uma incógnita, porque existe uma equipe de transição que funciona como um embrião do futuro governo, com muitas disputas por espaços, e uma tendência dos partidos a querer o controle das pastas com “porteira fechada” — como se diz no jargão do Congresso.

Os partidos de esquerda não têm muita dificuldade para compartilhar os ministérios, mas o mesmo não acontece com grandes legendas de centro, como o MDB, o PSD e PSDB.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pec-mantem-bolsa-familia-fora-do-teto-por-quatro-anos/

Foto: reprodução | Revista Piauí

CIDADE SÃ, MENTE SÃ?

Carlos Leite, Hermano Tavares e Paulo Saldiva

As cidades surgiram da necessidade de sobrevivência da espécie humana. Em regiões onde o modo de vida de nossos antepassados caçadores/coletores não era possível, tornou-se imperioso obter alimentos por meio de técnicas agropecuárias. O aumento da produção de nutrientes permitiu o crescimento e a fixação da população humana em cidades. 

A convivência próxima de um número maior de pessoas – ou seja, a vida coletiva – permitiu gradativamente todos os tipos de trocas e o desenvolvimento de tudo o que conhecemos: instituições, democracia, artes, ciência, ensino, inovação etc. As cidades talvez sejam a maior invenção humana – e vieram para ficar. Em 1800, menos de 10% da população do planeta morava nelas; já no início deste século um pouco mais da metade (55%) as habitam. Somos agora um planeta urbano. No Brasil, mais de 85% da população vive nas cidades.

Porém, junto com as aglomerações vieram o saneamento precário e a proliferação de patógenos que trouxeram consigo o adoecimento. Talvez seja válido dizer que Logos e Páthos caminham de braços dados pelas ruas das cidades mundo afora. 

Ao longo da história, as cidades superaram crises monumentais, como pestes, guerras e mudanças climáticas. No entanto, a urbanização acelerada das últimas décadas acarretou novos desafios. Nas metrópoles do chamado Sul Global – onde ocorreu uma “explosão de urbanização” em pouco tempo, ao contrário dos países do Norte, onde as cidades levaram séculos a evoluir gradativamente – a distribuição desigual das infraestruturas urbanas, dos equipamentos e serviços públicos, das áreas verdes e de lazer, o excesso de trânsito, poluição e ilhas de calor, a falta de moradia digna para milhões de pessoas e, em especial, a existência de favelas com condições precárias de vida, áreas propensas a inundações e deslizamentos, representam evidentes ameaças à saúde humana. 

Nesse contexto, a cidade é o resultado de uma complexa interação entre governança, ambientes urbanos físicos, sociais e econômicos, tendo como protagonista a biologia dos seus habitantes. De fato, segmentos populacionais menos privilegiados, que ocupam, em sua maioria, as periferias urbanas combinam um ambiente mais hostil (moradia precária, mau saneamento, maior exposição à poluição do ar e risco de doenças infecciosas) com mais comorbidades, deficiência nutricional, menor acesso à informação, à educação e, sem dúvida, à saúde em si – não apenas física como também mental.Trata-se de demanda social urgente, pois estima-se que cerca de 17 milhões de pessoas, 8% da população brasileira, residam em favelas, e o déficit habitacional no país seja de aproximadamente 5,8 milhões de moradias (o equivalente a 18,5 milhões de pessoas, segundo dados da Fundação João Pinheiro.

No Brasil, as doenças mentais são o terceiro maior conjunto de morbidades a pesar na sociedade, atrás apenas das doenças cardiovasculares e oncológicas, e o primeiro a subtrair tempo de vida produtiva entre os indivíduos situados na faixa dos 5 aos 15 anos de idade. Um estudo epidemiológico conduzido na região metropolitana de São Paulo mostra que aproximadamente 40% da população urbana preencheu critérios para ao menos um diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida, 30% para um transtorno mental nos últimos 12 meses, e 10% necessitavam de atenção psiquiátrica imediata. As condições mais comumente encontradas foram transtornos ansiosos (20%), depressão e outros transtornos do humor (11%), transtorno do controle do impulso e abuso de substâncias como álcool, tabaco e drogas (4% cada). Exposição ao ambiente urbano e privação social foram associados como fatores de risco para todas as condições mentais, particularmente para os transtornos do impulso, manifestação psiquiátrica na infância e adolescência e para os transtornos associados ao abuso de substâncias. Entre os mais afetados, sobressaíram as mulheres e homens migrantes que viviam nas regiões metropolitanas mais pobres e vulneráveis, conforme pesquisa sobre transtornos mentais nas megacidades.

A pandemia de Covid, com a disrupção das rotinas de trabalho e de relacionamentos e o confinamento prolongado que trouxe visibilidade à questão da saúde mental, apenas agravou uma condição que já se encontrava em curso, antes do seu advento. Dentre os diversos problemas que as comunidades que vivem nas favelas enfrentam, há a descontinuidade de ações e serviços de atenção psicossocial. Sabe-se também que as relações entre classes sociais e gêneros têm associação com a saúde mental, demonstradas pelas arbitrariedade e obediência de um grupo por outro. 

Nas favelas, outra questão que se impõe é a da violência urbana. Um estudo epidemiológico sobre o tema mostrou elevada exposição da população a eventos traumáticos (86%), dos quais 11% apresentariam risco para desenvolvimento de um transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), sendo que as mulheres teriam um risco três vezes maior do que homens nesse aspecto. Chama atenção no estudo, o fato que 35% dos casos identificados de TEPT foram desencadeados pela perda inesperada de um ente querido e 40% devido à violência interpessoal.

Um outro estudo de natureza qualitativa soma a esse panorama, já desolador, o elemento da coerção social. Em muitas dessas comunidades, o poder do arbítrio e o uso da violência como instrumento de controle social, funções atribuídas ao Estado, são complementados – quando não completamente substituídos – pelas sociedades dedicadas ao tráfico de drogas e o crime organizado. Tais sociedades, normalmente designadas como “o tráfico”, podem ser acionadas para resolver até mesmo pendências entre vizinhos ou providenciar repressão à violência doméstica. Essa atuação, entretanto, vem a um alto custo, através da lei do silêncio imposta pelos traficantes e dos embates com as forças policiais que colhem recorrentemente toda a comunidade em um literal fogo cruzado. Cria-se uma dinâmica perversa, na qual todos os membros do território sofrem os efeitos da violência, mas são impedidos de compartilhá-los com profissionais de saúde e outras pessoas genuinamente interessadas em ajudar porque não pertencem à comunidade. Em uma complementaridade pungente ao relato mais técnico do levantamento epidemiológico, o estudo qualitativo dá voz ao sofrimento principalmente de mães, esposas e cuidadoras em geral que se sentem impotentes diante da perda de um ente querido.

Contudo, o ambiente urbano desafia a saúde mental para além dos seus aspectos sociais, envolvendo questões físicas e materiais como a poluição ambiental e sonora; o espraiamento das cidades e a necessidade de longos períodos de deslocamento de casa para o trabalho e vice-versa; e, ainda, a progressiva substituição da paisagem natural pela chamada “selva de concreto”. No caso dos longos deslocamentos diários casa-trabalho-casa, eles podem ser agravados quando, por força da baixa remuneração, a população mais vulnerável tem que assumir dois ou mais empregos para garantir uma renda condizente. Isso se traduzirá em mais horas de afastamento do domicílio, da família e dos filhos, com maior sofrimento para mulheres e crianças. Os pequenos, necessitados de uma presença parental mais efetiva, crescerão no ambiente adverso, com pouca supervisão, disso resultando, entre outros problemas, um reduzido aproveitamento escolar, evasão e baixa qualificação – perpetuando assim tal ciclo negativo. A evolução dos transtornos mentais reforça a percepção da relevância do amparo à infância como o meio mais efetivo de prevenção desses males. Metade desses transtornos identificados em adultos tiveram seu início antes dos 15 anos de idade – e a maioria começa antes dos 20 anos. Não por acaso, os principais fatores de risco para os transtornos ansiosos, depressão e queixa somáticas associadas são um conjunto de variáveis que basicamente expressam vulnerabilidade social e baixo status socioeconômico.

O esforço, porém, para o resgate da sanidade mental no contexto urbano transcende os limites da saúde e da epidemiologia. Ele reclama um envolvimento interdisciplinar que envolva campanhas de sensibilização para o tema, redução do estigma associado à saúde mental, treinamento para reconhecimento e encaminhamento precoce ao tratamento, políticas sociais de amparo aos vulneráveis, reconfiguração dos espaços urbanos para viabilização de um transporte público efetivo e redução do deslocamento. É verdade que a colheita dos benefícios coletivos dessas iniciativas exige tempo, porém menos do que se imagina – cerca de quinze anos. Não fosse por outro motivo, a certeza de que as futuras gerações sofreriam menos já seria mais do que suficiente para a implementação de políticas capazes de transformar o cenário atual dessa questão de saúde pública. O diálogo entre planejamento das cidades e os setores da saúde é, portanto, uma necessidade incontornável. 

Nesse sentido, os programas do urbanismo social podem ser instrumento poderoso. Isso porque se trata de uma metodologia de atuação nos territórios de maior vulnerabilidade social que orienta transformações físicas e sociais integradas, constituídas com base na participação comunitária organizada e na governança compartilhada. Consagrado em Medellín, Colômbia, desde 2003, e referenciado no Programa Favela-Bairro, realizado, de forma pioneira, no Rio de Janeiro na década de 1990, o urbanismo social é um modelo que pode e deve ganhar maior robustez nas cidades. Ou seja, urge otimizar as valiosas metodologias do urbanismo social para além de seus focos essenciais – urbanização do território, promoção de infraestruturas urbanas, habitação social, equipamentos e serviços públicos, mobilidade etc. Os Planos Integrados de Ação Local, instrumento essencial do urbanismo social, devem se ampliar para outras dimensões, a fim de que, integradas, tornem a vida urbana mais saudável nas periferias de nossas cidades. Sabe-se que não são apenas as intervenções físicas que transformam o território, mas o tecido social de confiança, com articulação comunitária construída na vida coletiva e no exercício cidadão. Não à toa, o sucesso de Medellín em grande parte se deve à promoção, desde o início do processo, dos espaços públicos e dos grandes equipamentos públicos onde a vida comunitária é valorizada. O resgate da vida coletiva nos espaços públicos lúdicos e interativos para as crianças e seus cuidadores no programa Mais Vida Nos Morros de Recife é outro exemplo referencial, já com resultados monitorados e avaliados em programa público de – infelizmente – rara continuidade já por três gestões municipais. 

A mente saudável demanda a vida social e a interação coletiva nos espaços públicos das cidades, formais e informais. As cidades nasceram assim; a ágora grega era seu exemplo pioneiro.

Melhorar as condições de vida dos habitantes das favelas de modo integral, considerando sempre os aspectos sociais coletivos que impõem diversos tipos de sofrimentos mentais individuais, e ampliar o direito à cidade é também promover o direito à saúde mental. Assim, reciclando a célebre citação do poeta italiano Juvenal, que no século I já pedia uma mente sã em um corpo são, cabe-nos trabalhar para promover um ambiente são de modo que mentes-corpos periféricos tenham mais condições de saúde.

Carlos Leite: Urbanista, PhD, Coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor na FAU-Mackenzie

Hermano Tavares: Médico psiquiatra, é professor na Faculdade de Medicina da USP

Paulo Saldiva: Médico patologista, é coordenador do Núcleo de Saúde Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e professor na Faculdade de Medicina da USP

Artigo publicado originalmente na Revista Piauí


Governo 'raspou' orçamento de universidades federais enquanto país via jogo do Brasil, diz Andifes

G1

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) afirmou, na noite desta segunda-feira (28), que o Ministério da Educação (MEC) bloqueou R$ 244 milhões do orçamento das universidades federais "enquanto o país inteiro assistia ao jogo da Seleção Brasileira".

g1 entrou em contato com a pasta, mas não recebeu resposta até a última atualização desta reportagem.

Esse montante seria usado para o pagamento de despesas como contas de luz e de água, bolsas de estudo e pagamento de empregados terceirizados.

"Com surpresa e consternação, e praticamente no apagar das luzes do exercício orçamentário de 2022, as universidades federais brasileiras foram, mais uma vez, vitimadas com uma retirada de seus recursos", diz o texto da Andifes.

A União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) divulgaram em suas redes sociais a imagem de um comunicado sobre a aprovação do bloqueio das verbas pela Junta de Execução Orçamentária (JEO).

O texto, enviado pelo Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), do Tesouro Nacional, cita unidades vinculadas ao MEC, mas não aponta valores do contingenciamento.

Outubro: bloqueio retirado após pressão

Em outubro, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) denunciou um bloqueio de R$ 328 milhões nas verbas já previstas para o ano e alertou que o funcionamento das universidades seria inviabilizado se o contingenciamento fosse mantido.

Após pressão dos reitores, o MEC anunciou a suspensão desse bloqueio.

Nota da Andifes

Abaixo, veja a íntegra da nota da Andifes:

"Com surpresa e consternação, e praticamente no apagar das luzes do exercício orçamentário de 2022, as Universidades Federais brasileiras foram, mais uma vez, vitimadas com uma retirada de seus recursos, na tarde dessa segunda-feira (28). Enquanto o país inteiro assistia ao jogo da seleção brasileira, o orçamento para as nossas mais diversas despesas (luz, pagamentos de empregados terceirizados, contratos e serviços, bolsas, entre outros) era raspado das contas das universidades federais, com todos os compromissos em pleno andamento.

Após o bloqueio orçamentário de R$ 438 milhões ocorrido na metade do ano, essa nova retirada de recursos, estimada em R$ 244 milhões, praticamente inviabiliza as finanças de todas as instituições. Isso tudo se torna ainda mais grave em vista do fato de que um Decreto do próprio governo federal (Dec. 10.961, de 11/02/2022, art. 14) prevê que o último dia para empenhar as despesas seja 9 de dezembro. O governo parece “puxar o tapete” das suas próprias unidades com essa retirada de recursos, ofendendo suas próprias normas e inviabilizando planejamentos de despesas em andamento, seja com os integrantes de sua comunidade interna, seus terceirizados, fornecedores ou contratantes.

Como é de conhecimento público, em vista dos sucessivos cortes ocorridos nos últimos tempos, todo o sistema de universidades federais já vinha passando por imensas dificuldades para honrar os compromissos com as suas despesas mais básicas. Esperamos que essa inusitada medida de retirada de recursos, neste momento do ano, seja o mais brevemente revista, sob pena de se instalar o caos nas contas das universidades. É um enorme prejuízo à nação que as Universidades, Institutos Federais e a Educação, essenciais para o futuro do nosso país, mais uma vez, sejam tratados como a última prioridade.

A Andifes continuará sua incansável luta pela recomposição do orçamento das Universidades Federais, articulando com todos os atores necessários, Congresso Nacional, governo, sociedade civil e com a equipe de transição do governo eleito para a construção de orçamento e políticas necessárias para a manutenção e o justo financiamento do ensino superior público."

Matéria publicada originalmente no portal G1


Foto reprodução: DW Brasil | picture-alliance/dpa/ Fredick Von Erishen

Após desmonte sob Bolsonaro, setor cultural espera retomada

Soraia Vilela | DW Brasl

Nos quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o setor cultural enfrentou cortes e reduções em uma dimensão até então desconhecida. Os membros do Grupo Técnico (GT) da Cultura, que integra a equipe de transição do futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva, encontram-se reunidos em Brasília, a fim de deliberar sobre medidas de reestruturação e sobre a revogação de decretos que dificultaram ou inviabilizaram as atividades culturais no país.

Entre as primeiras medidas asseguradas como prioridade por membros do GT está a recriação do Ministério da Cultura (MinC) – extinto via medida provisória editada em 1° de janeiro de 2019, o primeiro dia do governo Bolsonaro, e rebaixado a uma Secretaria Especial vinculada primeiro ao Ministério da Cidadania e depois ao do Turismo.

No entanto, é consenso entre profissionais do setor que recriar o MinC apenas não basta: é necessário readequar seu orçamento, suspender mudanças feitas na aplicação de determinadas leis e reconstruir a estrutura de fomento que foi desmantelada nos últimos quatro anos.

Além disso, é preciso recuperar cargos que foram transferidos da Cultura para as pastas da Cidadania e do Turismo, por exemplo. "Estamos falando de uma estrutura institucional drasticamente reduzida e precarizada nas suas condições mais básicas de trabalho", afirma a deputada federal Áurea Carolina (Psol-MG), uma das coordenadoras do GT da Cultura.

"Cenário de terra arrasada"

"A situação é de calamidade, não só por causa da extinção do MinC, mas também pela depauperação do conjunto das instituições: a Cinemateca pegou fogo, a Fundação Casa de Rui Barbosa perdeu grande parte dos seus pesquisadores, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) teve suas atribuições subvertidas, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) não tem condições de cuidar das próprias instituições ligadas ao governo federal nem de produzir uma política articulada", aponta Márcio Tavares, Secretário Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores (PT) e também coordenador do GT.

Áurea Carolina, que foi vice-presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados entre 2019 e 2021, salienta que será preciso restabelecer "uma estrutura robusta de políticas culturais que havia sido construída anteriormente a duras penas, durante anos".

Segundo ela, as informações analisadas pelo GT no momento deixam claro "como o desmonte está diretamente relacionado ao sequestro total da máquina pública", com "episódios de autoritarismo, censura e dirigismo nos editais públicos". Para a deputada, "é um cenário de terra arrasada".

Revisão após esvaziamento da Lei Rouanet

Uma das certezas de alteração das políticas culturais a partir de 2023, de acordo com Tavares, é a revogação imediata do decreto do governo federal que esvaziou a Lei Rouanet. "É preciso instituir um novo decreto que faça com que o mecanismo funcione com transparência e diligência", assegura.

Essa revisão dos mecanismos de fomento via Lei Rouanet é também um dos pontos defendidos pela "Carta do Rio Grande do Sul", documento divulgado ao fim do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, que reuniu em meados de novembro delegações das cinco regiões do país. 

"Houve uma política deliberada de desmonte da cultura brasileira. Identificamos, nos últimos quatro anos, um compromisso de bases ideológicas autoritárias e persecutórias associadas à Lei Rouanet", diz Beatriz Araújo, titular da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul que coordenou o Fórum.

"Houve cooptação política de raiz conservadora e descaso oficial com o patrimônio brasileiro, os museus, as bibliotecas, as fundações e as manifestações artísticas. Vivenciamos o cancelamento do pluralismo das nossas expressões identitárias e ações deploráveis contra povos originários, comunidades quilombolas, expressões religiosas de matriz africana e a cultura negra em geral", completa a secretária.

Fundamental para os signatários da Carta, segundo Araújo, é também a aplicação imediata das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2. "Essas leis são estruturantes para a cultura brasileira, seu impacto positivo é imenso. Com elas, serão mais de R$ 18 bilhões aplicados sistematicamente, ao longo de cinco anos, para 5.570 municípios do país. E, nesse conjunto, as leis propõem que o poder público preveja ações afirmativas para os grupos mais vulneráveis."

Descentralização da política cultural

Garantir uma política cultural descentralizada, que inclua a diversidade e dê atenção a manifestações fora dos grandes centros, é outra preocupação dos profissionais do setor.

Para isso, "é fundamental um levantamento minucioso para identificar as ilegalidades, localizar os recursos, saber o que será necessário para desobstruir os processos", defende Araújo.

A gestora cultural Dane de Jade, coordenadora do Escritório Regional Cariri, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, concorda ser essencial que o próximo governo retome políticas descentralizadas. "No momento, temos uma lista enorme de urgências diante do que herdamos do governo Bolsonaro", diz.

São demandas que, uma vez resolvidas, trarão benefícios imediatos, dada "a interseção do setor com diferentes esferas econômicas – do turismo à arquitetura, da economia criativa à gestão de eventos". "Um setor que gera empregos diretos e indiretos e estabelece um diálogo com todos os pilares da vida em sociedade: educação, espaço urbano, política, arte", analisa a gestora.

O exemplo do audiovisual

A retomada de políticas de descentralização é também uma reivindicação dos profissionais ligados ao audiovisual no país. Durante o atual governo, a Secretaria do Audiovisual (SAV) foi descaracterizada de suas funções, aponta Cíntia Domit Bittar, sócia da Novelo Filmes, sediada em Florianópolis, e diretora da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API).

"Reestruturar a SAV e fomentar sua capacidade de formação técnica especializada é sem dúvidas uma das ações que esperamos. É importante prever formações de profissionais, levando em consideração diagnósticos das áreas de maior necessidade. E é necessário não só formar, como também proporcionar oportunidades de qualificação de agentes já atuantes no mercado", diz Bittar. 

Durante os últimos quatro anos, o cinema brasileiro sofreu uma paralisação inédita nas estruturas de fomento. O governo Bolsonaro, segundo Bittar, "será lembrado na história como aquele que fez realmente tudo o que podia para destruir o audiovisual brasileiro independente".

Etapas do desmonte

Além do "apagão de dados e pesquisas sobre o desenvolvimento do setor" nos últimos quatro anos, Bittar cita "a indicação de nomes notoriamente incapazes de gerir pastas importantes da cultura", bem como o desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e a paralisação de programas importantes da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

Retomar as atividades do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mantendo a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), é considerado essencial para o financiamento do audiovisual. As arrecadações via Condecine fluem para o FSA, operado pela Ancine, e, portanto, abdicar desses recursos coloca em risco toda a atividade cinematográfica no país.

"Já tratamos da volta da Condecine, porque esse será um instrumento fundamental nos próximos anos", garante Tavares.

Entre outras demandas do setor, estão ainda, de acordo com Bittar, a nomeação de pessoas que compreendam e trabalhem a favor do audiovisual independente, políticas voltadas para a diversidade e pluralidade, investimentos para aumentar o número de salas de exibição, criação de salas independentes e a manutenção da "cota de tela" (mecanismo que obriga as salas brasileiras a exibir filmes nacionais por um número mínimo de dias por semana).

Políticas culturais como políticas de Estado

A chave para prevenir tais cenários de destruição no futuro está, portanto, "na transformação de políticas culturais em políticas de Estado", acredita Tavares.

Uma das medidas preventivas nesse sentido é, segundo Áurea Carolina, o Marco Regulatório do Fomento, sugerido em projeto de lei que visa reduzir as desigualdades de acesso aos mecanismos de fomento das políticas culturais. "Isso é importante justamente para que a cultura não fique à mercê de possíveis gestões autoritárias no futuro", defende a deputada.

Além disso, sugere Bittar, "também se faz necessária uma campanha informativa e pedagógica, para que o povo brasileiro compreenda a importância das  políticas culturais, de forma que esses temas sejam defendidos por toda a sociedade com propriedade e com a garra de quem sabe o impacto do setor na economia, na geração de emprego e renda, no turismo, na memória, na identidade, enfim, em nossa soberania nacional".

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Foto: divulgação | Afropunk Bahia

Afropunk Bahia faz primeira grande edição louvando a cultura negra do Brasil

Pedro Henrique Ribeiro | Omelete

Após a chegada das vacinas da covid-19, os principais festivais de música do Brasil voltaram com força total e Rock in RioLollapalooza e João Rock voltaram a receber o público. Aproveitando o embalo, o Afropunk Bahia decidiu realizar a sua primeira grande edição, com dois palcos e capacidade para cerca de 20 mil pessoas — cerca de seis vezes o número da edição 2021.

O movimento Afropunk nasceu há mais de 15 anos como um documentário sobre o lugar dos artistas negros na cena punk norte-americana. Após a pesquisa para a produção do filme, os criadores perceberam que a solução do problema ia além de denunciar a falta de pessoas negras nos espaços tradicionalmente brancos. Eles então decidiram fazer o seu próprio festival. Originalmente realizado no bairro do Brooklyn, na cidade americana de Nova York, o Afropunk se expandiu e chegou ao Brasil com a cara da cultura brasileira.

Para entendermos melhor as origens do Afropunk Bahia, o Omelete conversou com a diretora de comunicação do festival, Ana Amélia. Na conversa, abordamos o significado do evento para Salvador e para a cultura negra brasileira e o que podemos esperar da primeira grande edição brasileira.

Omelete: Como foi trazer o Afropunk para o Brasil? 

Ana Amélia: Vamos lá! Primeiro, acho que o mais importante é dizer que sempre foi um desejo do Afropunk chegar ao Brasil, na verdade. Não foi o Brasil puxando, embora, obviamente, a gente pudesse fazer isso. Mas os organizadores do Afropunk Global sempre tiveram esse olhar de conectar as diásporas mundialmente. Então, o projeto foi se expandindo. Mas ele [o Afropunk] nasceu como um documentário, há mais de 15 anos para cena punk, quando eles entenderam que a cena punk era muito branca. A partir do documentário, eles viram espaço e nasceu o festival. E esse festival foi crescendo, foi trazendo grandes nome da música e se expandindo. Sempre foi muito importante ter esse olhar no Brasil. 

Por questões internas, eles [os organizadores] acabaram não chegando antes, mas por volta ali de 2018/2019, começaram as conversas com Brasil e o primeiro passo foi escuta. Porque quando a gente está falando da população negra, mesmo que seja mundialmente, são diferentes culturas. O Afropunk gringo chegou no Brasil, montou um grande jantar que a gente fala que foi o “Santo Graal da galera preta”, com nomes diversos do movimento negro, pessoas importantes para diversas áreas culturais, e sentaram para escutar: “e aí, galera. O que é o Brasil? O que é a população preta do Brasil? O que a gente pode fazer para o Brasil? O que a gente pode transformar?” Porque é mais do que um show, né? É um projeto que traz mudanças sociais, que traz várias visões.

E por que ter a Bahia como sede do festival?

Ah! Essa eu gosto [de responder] porque não poderia ser outro lugar. Não poderia não ser na cidade mais negra do mundo fora da África. Chegar no Brasil e não tornar a Bahia a grande sede desse projeto não faria sentido. É a cidade mais negra, é a cidade que tem uma economia criativa gigantesca, mas que nem sempre é aproveitada. A gente tem um foco muito grande dos festivais no país sempre no sudeste no eixo Rio-São Paulo, e é uma das missões do Afropunk fazer economia girar em um local como Salvador. Trazer esses profissionais que trabalham no projeto, nomes tão importantes para cultura, para os grandes festivais. Não precisa se deslocar de Salvador para o Rio ou para São Paulo para conseguir ter seu ápice da carreira. O Afropunk serve também como plataforma para esses profissionais, para construir novas histórias e construir novas narrativas no lugar que é o berço da cultura negra do país. 

Como o Afropunk está impactando a cultura negra no Brasil? 

A gente tem, na verdade, um longo caminho. Quando a gente fala de um festival preto chegando ao Brasil, são várias lutas e etapas a serem vencidas, principalmente quando falamos de algo que envolve renda. Virar os olhares de marcas, os olhares acostumados aos eventos brancos, ao Rock in Rio, ao Lollapalooza… A gente tem que mudar uma estrutura mercadológica de evento para fazer um do porte do Afropunk, em Salvador. Não é em São Paulo, porque se fosse em São Paulo a gente ainda teria dificuldade, mas também teria outras facilidades que em Salvador a gente não encontra. Então acho que o primeiro ponto é esse, a gente fazendo uma Afropunk em Salvador muda uma estrutura de mercado. 

Estamos falando de focar em profissionais pretos. Os profissionais que normalmente não ocupam cargos de liderança [em outros lugares], ocupam no festival. O Afropunk não é a exceção, ele quer transformar em regra. Toda galera que é envolvida, diretora de produção, o diretor criativo, os produtores são sempre profissionais pretos. Esse é o segundo ponto. A gente está mudando também a estrutura [de mercado] desses profissionais. No ano passado, por exemplo, a gente teve trancista, gente envolvida com moda. Pequenos spoilers: a gente vai trazer um pouco de moda, um pouco de gastronomia [preta]. O festival também sempre tem um lado social, no ano passado o lucro foi revertido para três mil pessoas. 

Vocês tiveram apoio público como da Fundação Palmares ou outros órgãos ligados ao governo?

A gente fala que aqui é luta em cima de batalha para fazer acontecer. Obviamente, o setor comercial do festival tem toda uma conversa tanto com marcas quanto com políticas públicas. No ano passado, aconteceu principalmente porque foi abraçado pelas marcas patrocinadoras, né? Então a gente teve três patrocinadores envolvidos. Esse ano também a gente já divulgou a Budweiser, a gente tem mais algumas negociações. Ainda está tendo algumas conversas com outras marcas. Não é o cenário que a gente gostaria de ter, mas a gente acredita que ainda dá tempo [entrevista realizada em 13 de outubro]. É aquela coisa, todo mundo quer quando é hype, né? Quando chega em novembro todo mundo quer projeto preto, mas na hora de coçar o bolso, na hora de fazer o investimento e na hora de entender que o Afropunk que não é só um festival…

Você tá falando bastante da equipe, eu queria saber como funciona essa curadoria para escolher esses nomes?

Então, a gente costuma dizer que é uma grande família que vai se formando. O que a gente mais faz é justamente conectar talentos a projetos. Quando a gente começou a trabalhar com o Afropunk, foi plugando um, conectando o outro… é muito nesse processo porque as pessoas já se conhecem de outros trampos, já estão acostumados a se cruzarem, sair de Salvador, se encontrar em São Paulo. Eles formam aquela família ali, então um vai puxando o outro. A gente obviamente tem alguns processos seletivos e recebe currículo do Brasil inteiro.

Como funciona a curadoria do festival?

E um processo muito coletivo. No ano passado, a gente teve a cantora Larissa Luz assinando a curadoria artística e esse ano justamente como o projeto vai sempre para o coletivo, a gente não tem um curador único, mas um coletivo de pessoas que vão contribuindo. É justamente esse processo coletivo que visa trazer uma line-up que tem a energia do festival. A gente tem gente de fora, tem artistas internacionais, mas o foco também é muito nisso de valorizar nossa arte. Assim que a gente consegue as misturas, ter pagode, funk, gente do Pará, do norte, do nordeste. É uma curadoria feita a quatro, cinco ou seis mãos para ter esse olhar diverso.

O que o público pode esperar do Afropunk Bahia 2022?

O público é a grande estrela Afropunk. O festival é muito mais sobre as pessoas do que sobre um show, é sobre o encontro que acontece no chão. No ano passado, o que era para cem pessoas e acabou se tornando aquele projeto para 3 mil. As pessoas que chegavam ao festival se olhavam e se reconheciam pelas lutas, pelas histórias e pelas redes sociais. Por isso que a gente sempre fala dessa grande roda, desse grande Quilombo, porque acho que o que as pessoas experienciaram é sensação de pertencimento. 

Essa experiência de assistir a um show de Emicida em qualquer lugar do Brasil e assistir a um show de Emicida no palco do maior festival preto do mundo é diferente. Os artistas sobem ali com energia diferente e as pessoas são acolhidas de forma diferente. Então a gente está falando de algo que não é o que costuma existir nos grandes festivais, que têm um grande público branco e constantemente a gente ouve relatos de pessoas pretas que sofreram discriminação ou que não se sentiram pertencentes ao lugar. Acho que é o que a galera pode esperar: isso vezes 20 mil. Porque no ano passado a gente teve 3 mil e já foi incrível, então é imaginar tudo isso numa potência muito maior.

Qual é a expectativa de público para esse ano?

A gente está esperando entre 15 e 20 mil pessoas por dia. O Parque de Exposições é o maior espaço que a gente tem para eventos na cidade, onde Beyoncé já pisou. Então um lugar que já é abençoado pela rainha. É um lugar grande mesmo e a gente está fazendo uma estrutura enorme.

O Afropunk Bahia acontece nos dias 26 e 27 de novembro, no Parque de Exposições de Salvador. O evento será transmitido ao vivo pelo canal Multishow e terá uma edição com melhores momentos exibida na Rede Globo. Entre os talentos confirmados estão os rappers Emicida e Baco Exu do Blues, as cantoras LudmillaMargareth MenezesLiniker e Karol Conká, as bandas Psirico e Black Pantera e muito mais.

Matéria publicada originalmente no Omelete


Cantor Gilberto Gil iniciou a carreira na década de 1960 e é um dos nomes mais festejados da música brasileira - Créditos da foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

"Coisa estúpida", reage Gilberto Gil após ataque por bolsonarista na Copa do Catar

Cristiane Sampaio | Brasil de Fato 

O cantor Gilberto Gil agradeceu aos fãs, neste domingo (27), pelas manifestações de solidariedade recebidas após a hostilidade que sofreu junto com a esposa, Flora Gil, de um bolsonarista durante a Copa do Mundo do Catar. Na última quinta-feira (24), enquanto o Brasil jogava contra a Sérvia, o artista e a companheira foram xingados pelo militante extremista e o caso repercutiu nas redes sociais. O casal recebeu uma série de mensagens de apoio.  

“Nossos agradecimentos, meus e da Flora, por essa solidariedade, essa corrente solidária diante dessa agressão, essa coisa estúpida. Enfim, é o terceiro turno, na verdade. [São] os inconformados querendo manter essa coisa do ódio, da agressividade”, atribuiu Gil, pelas redes sociais.  

Na quinta-feira, o casal estava no Estádio Lusail, onde ocorria a partida, quando foi abordado em um corredor. O bolsonarista insultou Gil e Flora citando palavrões e também a Lei Rouanet, legislação criada na década de 1990 para incentivar políticas culturais e que é alvo frequente de ataques por parte do presidente Jair Bolsonaro (PL) e apoiadores.

https://www.youtube.com/watch?v=Ap6v2WqzbuI

Quando comentou o assunto, Gil destacou a cultura do ódio, marcante no atual cenário político nacional: “E, amanhã, Brasil de novo. E de novo nossos agradecimentos, meus e da Flora, a todos vocês que se fizeram solidários conosco, nesse episódio que, na verdade, é mais um dessa sequência do ódio, dessa coisa que é o que eles gostam de fazer”.

Além de artistas e internautas em geral, o casal também recebeu manifestações de apoio do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva (PT) e sua esposa, Janja, que se pronunciaram sobre o episódio via Twitter.   

“Ligamos para Gilberto Gil e Flora Gil manifestando nossa solidariedade e indignação pela agressão sofrida no Qatar. Gil é patrimônio da música brasileira e merece todo nosso respeito e reverência. Que o agressor seja identificado e responda pelo seu ato”, disse Janja.

Ao compartilhar a postagem da esposa, Lula acrescentou que “Gilberto Gil é um dos maiores brasileiros da história”. “Nosso solidário abraço aos amigos Gilberto Gil e Flora Gil”, emendou.  

Edição: Thales Schmidt

Matéria publicada originalmente no Brasil de Fato. Título editado


Ônibus na estrada do M'boi Mirim, na zona sul de São Paulo - Rubens Cavallari - 24.jun.22/Folhapress

Tarifa zero nos ônibus avança no país e é debatida por equipe de Lula

Rafael Balago | FolhaUOL

Em 2022, a ideia de tirar a cobrança do transporte público ganha impulso no Brasil. Além de o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), anunciar que analisa a ideia, ao menos 11 cidades passaram a adotá-la e o tema é debatido pela equipe de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"O presidente Lula pode dar apoio a essa ideia. Joguei o tema para ser debatido no grupo de trabalho das cidades. Meu papel é ajudar a convencê-lo da necessidade do direito de ir e vir. Assim como a população tem acesso à saúde gratuita e universal, acesso à educação, precisa ter acesso ao transporte", diz Jilmar Tatto (PT), deputado federal eleito por São Paulo e que integra a equipe de transição de governo.

Ex-secretário municipal de Transportes de São Paulo, Tatto defende a criação de um sistema integrado de mobilidade, a exemplo do SUS com a saúde, em que o governo federal possa enviar recursos para ajudar as cidades a melhorar a estrutura de transportes. Esse sistema incluiria a adoção de tarifa zero.

Uma das questões que poderiam ajudar no avanço da proposta, e que precisa ser resolvida na alçada federal, é a do vale-transporte. Hoje, as empresas pagam o benefício só aos funcionários que usam ônibus e trens. Uma das ideias para custear o passe livre é mudar o modelo: as companhias passariam a pagar ao governo uma taxa de transporte para todos os funcionários, sendo que o valor por empregado seria menor do que o gasto atual com o VT. Assim, haveria um aumento de arrecadação, pois, espera-se, mais empresas passariam a contribuir.

"Isso deve reduzir os custos das empresas que pagam muito VT e aumentar os das que pagam pouco, como os escritórios de advocacia, onde muita gente vai de carro", avalia Sérgio Avelleda, coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Insper e ex-secretário estadual de Transportes de São Paulo.

Os especialistas consideram que poderia se criar uma cesta de várias fontes de recursos para custear a ideia, como verbas de cobrança por estacionamento na rua, pedágio urbano, transferências federais e venda de certificados de potencial construtivo.

Até hoje, nenhuma grande metrópole adotou tarifa zero de forma completa, sobretudo porque os custos de manter um sistema para transportar milhões de pessoas por dia são muito elevados. A cidade de São Paulo gastou, em 2021, R$ 3,3 bilhões em subsídios para a rede de ônibus, fora o valor pago pelos passageiros.

A capital paulista, no entanto, já foi pioneira em outras mudanças no transporte. Em 2004, lançou o Bilhete Único, que permite mais de uma viagem com uma só cobrança, em determinado período. A mudança abriu mais possibilidades de deslocamento aos usuários, especialmente das periferias.

Quando o Bilhete Único foi integrado ao metrô, alguns anos depois, o total de passageiros nos vagões teve forte alta, mostrando que havia uma grande demanda reprimida pelo transporte.

Cidades que estão adotando agora a tarifa zero no Brasil também registram forte procura. Em Caucaia (CE), a cobrança foi abolida em agosto de 2021. Desde então, o total de viagens de ônibus passou de cerca de 500 mil para mais de 2 milhões mensais

"É uma transferência direta de renda para a população, que pode usar o dinheiro que gastaria no transporte em outras coisas, movimentando a economia da cidade", diz Vitor Valim (sem partido), prefeito de Caucaia, que tem 360 mil habitantes.

Valim diz que o transporte consome 3,6% do Orçamento e que fez arranjos nas contas municipais para acomodar o gasto, sem criar novas taxas. "Com vontade política, é exequível", considera.

Segundo a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), há 51 cidades no país com projetos ativos de passe livre no Brasil, a maioria no Sudeste (35). Destas, 12 adotaram a medida em 2021 e 11 em 2022.

No estado de São Paulo, são 17, entre as quais Holambra, Ilha Solteira, Pirapora do Bom Jesus e Presidente Bernardes. Em Ribeirão Pires, a gratuidade vale só aos domingos e feriados. O segundo estado com mais iniciativas é Minas Gerais, com 12.

No Paraná, a cidade de Paranaguá, com 157 mil habitantes, adotou a medida em março. Os moradores e trabalhadores da cidade tiveram de fazer um cadastro para ter direito ao benefício.

Paranaguá tentou criar uma nova taxa sobre as empresas para custear a mudança, de R$ 50 por funcionário, mas a medida foi barrada pela Justiça. A cidade então passou a bancar as passagens com recursos já existentes, como os obtidos com publicidade nos ônibus. As empresas continuaram a ter de pagar VT para os colaboradores. O dinheiro vai para o caixa da prefeitura.

Em Maricá (RJ), a transição rumo à tarifa zero foi mais longa. O processo começou em 2013. A prefeitura optou por criar uma autarquia, a EPT, para implantar a gratuidade. A empresa começou com frota e motoristas próprios, mas hoje também contrata empresas para operar as linhas gratuitas.

No entanto, o serviço grátis foi lançado ao mesmo tempo em que outras, cobradas, continuavam operando. Isso levou os operadores dos ônibus pagos a entrar na Justiça para questionar a mudança, gerando um embate que se resolveu só em 2020, quando os contratos de concessão terminaram. A isenção de tarifa é bancada com recursos de royalties do petróleo.

Entre 2021 e 2022, Maricá ampliou a frota de 50 para 115 ônibus. No mesmo período, o total de passageiros se multiplicou, de 40 mil para 120 mil por dia.

"Antigamente, quem morava num certo distrito não conhecia os outros distritos da cidade, porque não tinha dinheiro para o deslocamento. A economia não girava. Agora, pode-se ir a qualquer área do município, o que melhora muito o desenvolvimento das regiões", afirma Claudio Haddad, presidente da EPT de Maricá.

Já entre as capitais, apenas São Luís (MA) tem um piloto de tarifa zero, oferecida em uma região da cidade e para funcionários do comércio, a partir das 21h, desde outubro do ano passado.

Para as empresas de ônibus, a isenção não traria problemas, porque as prefeituras podem remunerar os empresários pelos km rodados por cada ônibus, em vez de pagar por pessoa transportada, como é comum hoje.

Como o número de passageiros teve forte queda com a pandemia, as empresas que tinham o valor da passagem como principal fonte de renda passaram a ter dificuldades. Elas geralmente não podem aumentar a tarifa sem aval da prefeitura, e o custo político de subir os preços, como 2013 mostrou, pode ser alto. Assim, houve casos no interior do país em que empresas desistiram de operar as linhas, deixando as cidades sem transporte.

"Uma coisa é a tarifa cobrada do usuário, e outra é a tarifa de remuneração das empresas. A nossa preocupação é ter garantias de que a remuneração dos custos operacionais terá continuidade", diz Marcos Bicalho, diretor da NTU. "É importante primeiro trabalhar nas fontes de recurso para depois implementar a política."

"Muitas cidades estão dando subsídio [para as empresas], mas a população não sente diferença. Com a tarifa zero, há transparência para o público e previsibilidade [de receitas] para as empresas", diz Valim, de Caucaia.

51 cidades têm projetos de tarifa zero no Brasil.

Matéria publicada originalmente na FolhaUOL


Foto: reprodução | Julien de Rosa / AFP

ONU: 5 mulheres são mortas por hora por familiar ou parceiro

Farah Bahgat | DW Brasil

Pelo menos 45 mil mulheres e meninas em todo o mundo foram mortas por seus familiares ou parceiros em 2021, afirmou um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) publicado às vésperas do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, comemorado nesta sexta-feira (25/11).

Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e a ONU Mulheres, isso significa que mais de cinco mulheres ou meninas foram mortas a cada hora por alguém de seu convívio próximo.

O relatório enfatiza ainda que, embora os números do feminicídio sejam "assustadoramente altos", a verdadeira cifra é provavelmente ainda maior.

Quando o próprio lar não é um lugar seguro

Segundo a ONU, cerca de 81,1 mil mulheres e meninas foram mortas intencionalmente no ano passado.

"De todas as mulheres e meninas mortas intencionalmente no ano passado, cerca de 56% foram mortas por parceiros íntimos ou outros membros da família, (…) mostrando que o lar não é um lugar seguro para muitas mulheres e meninas", concluíram os escritórios da ONU.

O relatório reconheceu que homens e meninos são, no geral, muito mais propensos a serem mortos, representando 81% de todas as vítimas de homicídios. Mas mulheres e meninas são particularmente afetadas pela violência de gênero em suas próprias casas.

O texto acrescentou que o maior número de feminicídios em 2021 foi registrado na Ásia, com uma estimativa de 17,8 mil vítimas. Em segundo lugar ficou a África, com 17,2 mil vítimas registradas, diz a ONU.

'Pouquíssimo progresso'

"As evidências disponíveis mostram que houve pouquíssimo progresso na prevenção de assassinatos de mulheres e meninas relacionados ao gênero", disse o comunicado da ONU.

De acordo com o relatório, os dados da Europa mostraram uma redução de 19% nos assassinatos de mulheres e meninas no ambiente familiar na última década, enquanto as Américas registraram um declínio médio de 6% no mesmo período.

Os lockdowns decorrentes da pandemia de covid-19 foram apontados como um dos possíveis fatores que teriam contribuído para um ano "particularmente mortal" para mulheres e meninas na América do Norte em 2020, disse a ONU.

O relatório observou ainda que os feminicídios registrados no início da pandemia de coronavírus "foram maiores do que quaisquer variações anuais observadas desde 2015".

A ONU disse que, devido à falta de dados, não foi possível traçar uma série histórica na África, na Ásia e na Oceania.

"Ao garantir que todas as vítimas sejam contabilizadas, podemos garantir que os agressores sejam responsabilizados e a justiça seja feita", defenderam os escritórios da ONU.

O órgão apelou também por um compromisso político para a prevenção da violência de gênero. Isso incluiria a introdução de políticas em favor da igualdade entre os sexos, investimentos em organizações de direitos das mulheres e "alocação de recursos suficientes para a prevenção".

Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Nas entrelinhas: Menos ambição e mais modéstia

Luiz Carlos Azedo | Nas Entrelinhas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito sem um programa de governo. Sua estratégia de campanha foi resgatar as realizações de seus dois mandatos, o que não foi suficiente para garantir sua eleição no primeiro turno, mas o deixou na cara do gol, no segundo. Para vencer, porém, teve que ampliar ainda mais as alianças e contar com a rejeição ao presidente Jair Bolsonaro, que era maior do que a sua, para se eleger por estreita margem de votos. Sendo mais específico, Lula teve 3,5 milhões de votos a mais no segundo turno; Bolsonaro, 7 milhões. Com toda certeza, a candidata do MDB, senadora Simone Tebet, os partidos que o apoiaram no segundo turno tiveram um papel decisivo nessa transferência de votos. A chamada “terceira via” foi esmagada pela polarização no primeiro turno, mas não a ponto de não fazer alguma diferença no segundo.

O drama de Lula ao assumir seu mandato é cumprir as promessas de campanha, principalmente o Auxílio Brasil/Bolsa Família de R$ 600 mil, que também serviu de plataforma para Bolsonaro junto às parcelas mais pobres da população, embora esse valor não tenha sido previsto no Orçamento da União de 2023. Lula gerou grande expectativa para os eleitores de baixa renda, principalmente as donas de casa, de que garantiria a comida na mesa, com direito a cerveja e picanha no fim de semana. Essa é a lembrança afetiva do seu governo no imaginário popular, como fora o frango a R$ 1 do Plano Real, na eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994.Mas nada será como antes no 3o. mandato de Lula, como disse na coluna assim intitulada, no domingo passado.

No fim do governo Lula, o país crescia a 7,5% em 2010, segundo dados do IBGE. O consumo das famílias, que se elevara continuamente ao longo dos anos, havia aumentado 7% somente em 2010. O crédito no setor público e privado era farto: chegara a R$ 1,7 trilhão, com crescimento de 20,5% naquele ano. As exportações cresceram 42,2% para o Mercosul, 39,3% para o bloco asiático, 26,2% para União Europeia e 23,2% para o mercado norte-americano. O saldo das reservas internacionais era de US$ 288,6 bilhões, com variação positiva de 20,7% sobre o exercício anterior. A dívida líquida total do setor público fora reduzida de 43,4% para 40,4% do PIB, equivalendo a R$ 1,47 trilhão. A taxa de risco-país ao final de 2010 era atraente para os investidores internacionais: 186 pontos.

A taxa de desemprego e o aumento do salário real garantiram a eleição de Dilma Rousseff, Lula foi sucedido por “poste de saias”, como diziam seus adversários e até alguns aliados. A proporção de desocupados entre os economicamente ativos era de 5,3% em 2010. Ao longo dos exercícios de 2006 a 2010, os rendimentos médios mensais efetivamente recebidos pelos trabalhadores também apresentam contínua elevação. O saldo do registro dos trabalhadores contratados com carteira assinada em 2010 foi favorável. A diferença entre os trabalhadores admitidos e desligados em 12 meses foi de 2,5 milhões, uma evolução de 7,7% a mais do que empregados em 2009.

O porcentual de pisos salariais reajustados acima do índice oficial de inflação em 2010 fora de 93,8%, patamar acima do atingido em 2009, que ficou em 92,9%, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). O segmento mais beneficiado fora o rural, com ganho real em 100% dos casos. Na sequência, apareceram indústria (94,9%) e comércio (94,7%). No setor de serviços, 90,6% dos pisos salariais tiveram ganhos reais, ou seja, percentuais acima da 5,2%, a inflação oficial.

Energia positiva

Esse flashback demonstra que a retomada do fio da história a partir de 2010 é uma missão impossível. As condições são completamente diferentes, como disse na citada coluna. O ambiente econômico não permite que o governo Lula avance na área social como gostariam os seus eleitores; talvez por isso, sendo generoso na interpretação, Lula não tenha apresentado um programa na campanha: nas condições atuais, uma proposta espelhada em 2010 seria delirante; considerando a terra arrasada que herdará de Bolsonaro, decepcionante. Esse é o xis da questão da transição. Os dois primeiros anos de governo, fortemente contingenciados pela economia, serão de baixo crescimento e limitada mobilidade social, com um Congresso à espreita para chantagear o governo e uma oposição de extrema-direita estridente nas ruas

Por isso, o trilho do novo governo Lula não pode ser o progressismo social, por falta de sustentabilidade, nem a agenda identitária da esquerda, devido ao conservadorismo da sociedade. Algum progressismo e avanço nos costumes deve haver, porém, devemos considerar o simples fato de que barrar a ofensiva reacionária do governo Bolsonaro já será uma mudança da água para o vinho. Os trilhos nos quais o novo governo deve e pode avançar são o fortalecimento da democracia, com respeito a suas instituições do Estado democrático, e a ampliação da participação da sociedade nas decisões governamentais, de um lado; e uma agenda ambiental de vanguarda, que aponte fortemente para o desenvolvimento da economia verde, que é onde o Brasil pode captar muitos recursos para investimento numa nova indústria, de outro.

Entretanto, a pressão das desigualdades do país é enorme. Essa agenda precisa ser tratada com foco em tarefas exequíveis, como garantir a segurança alimentar; melhorar a qualidade do ensino fundamental e médio; e combater a violência e o racismo estrutural. O verdadeiro divisor de águas da eleição foi a defesa da democracia. Para isso, é preciso um governo de ampla coalizão política, capaz de dar sustentação ao presidente eleito e uma agenda que devolva a normalidade e a esperança ao país. Essa é a energia positiva que o Brasil precisa para reencontrar seu caminho.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-menos-ambicao-e-mais-modestia/

Militantes de direita pedem golpe militar na Avenida Paulista durante Manifestações do 7 de setembro | Imagem: reprodução/BBC News Brasil

Nas entrelinhas: Pedido de anulação da eleição estimula o golpismo

Luiz Carlos Azedo | Correio Braziliense

Não foi à toa que o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou ao Palácio do Planalto, ontem, depois de um chá de sumiço, no qual estaria em depressão e com erisipela – um processo infeccioso da pele, que pode atingir a gordura do tecido celular, causado por uma bactéria que se propaga pelos vasos linfáticos. A doença é comum em diabéticos, obesos e portadores de deficiência da circulação das veias dos membros inferiores, mas também pode ser causada pela baixa imunidade de quem está em depressão.

Na terça-feira, o pedido de anulação das eleições apresentado pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, animou Bolsonaro a liderar uma espécie de terceiro turno das eleições, embora essa seja uma causa impossível no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro acredita piamente na manipulação das urnas eletrônicas desde sua eleição em 2018, pois afirma que a teria ganho já no primeiro turno.

Pelo andar da carruagem, o presidente da Corte eleitoral, Alexandre de Moraes, nem tomaria conhecimento do pleito. Se o fizesse, alimentaria as especulações criadas por um relatório sem consistência técnica, que se alimenta de um falso argumento: a numeração de série não individualizada em 60% das urnas utilizadas no segundo turno, que são as mesmas do primeiro e das eleições anteriores. Na noite de ontem, como Costa Neto se recusou a pedir a anulação do segundo turno, não deu outra: além de negar o pedido, Moraes condenou a legenda a pagar uma multa de R$ 22,9 milhões. Hoje, veremos se o PL recorrerá da decisão ao Supremo.

A última agenda oficial do presidente no Palácio do Planalto fora no dia 31 de outubro, uma reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, um dia após o segundo turno da eleição presidencial. Bolsonaro, até hoje, não reconheceu formalmente a derrota para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No dia 1º de novembro, no seu brevíssimo pronunciamento sobre as eleições, afirmou somente que continuará cumprindo a Constituição Federal e, desde então, mantinha uma postura ambígua em relação ao resultado das urnas. Agora, não, questiona a segurança das urnas e quer anular a eleição.

O fato é que o pedido do PL foi mais um degrau da escala golpista que está em curso no país, com protestos à porta dos quartéis e bloqueios sistemáticos de estradas por caminhoneiros, sem falar em ações mais violentas, como as que ocorreram em Santa Catarina, com a queima de veículos. Bolsonaro conta com apoio de militantes inconformados com a derrota, que acreditam em qualquer coisa para mantê-lo no poder e permaneceram nas ruas após 30 de outubro.

Bolsonaro também tem o apoio dos militares que o cercam no Palácio do Planalto e, em especial do general Braga Neto, vice de sua chapa, cuja atuação nos bastidores da campanha de Bolsonaro foi muito intensa, porém, discreta, na organização e mobilização de seus apoiadores. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão, eleito senador pelo Rio Grande do Sul, pôs mais lenha na fogueira, ao questionar a legitimidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para garantir que as eleições transcorreram normalmente e não ocorreram fraudes, o que é muito grave.

“Não basta, pura e simplesmente, respostas lacônicas do nosso Tribunal Superior Eleitoral no sentido de contestar eventuais, vamos dizer assim, denúncias ou argumentações sobre o processo (de votação). Nós teremos que evoluir nisso aí”, afirmou o vice ao nosso correspondente em Lisboa, o jornalista Vicente Nunes. “Acredito que o Tribunal Eleitoral foi parcial nesse jogo”, disse Mourão. “Há, no Brasil, uma parcela da nossa sociedade que considera que o processo (eleitoral) tem problemas. E eu, de minha parte, vejo que precisamos ter que dar mais transparência nesse processo”, completou.

Orçamento

Mourão não questiona a legalidade da sua própria eleição ao Senado, realizada com as mesmas urnas. Sua declaração, em evento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, porém, teve muita repercussão, inclusive internacional. Os olhos dos principais governantes do e da opinião pública do Ocidente estão voltados para o Brasil. Para o vice-presidente, as manifestações organizadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que vêm causando transtornos à maioria da população brasileira, não podem ser consideradas como golpistas.

Entretanto, basta ver as palavras de ordem das manifestações para constatar que elas são de natureza golpista, pois pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal, a prisão do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, e uma intervenção militar para manter Bolsonaro no poder, embora realizá-las de forma ordeira e pacífica seja um direito dos manifestantes.

Do outro lado do balcão, a equipe de transição começa a cair na real das dificuldades que enfrentará no Congresso. Não há o menor risco de aprovar a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos por quatro anos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não precisa do governo para se reeleger e não tem interesse em resolver um problema no atacado que exigirá um esforço ainda maior de negociação de Lula com o novo Congresso, no varejo.

A PEC da Transição ou do Bolsa Família, que seria apresentada ontem, por causa do impasse, talvez só possa ser formalizada na próxima semana. Diante das pressões do Centrão, ganha força a tese de que Lula não precisa da PEC para resolver o problema do Bolsa Família, pois pode administrar com um duodécimo do que foi gasto em 2022, até que o novo Orçamento seja efetivamente aprovado.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-pedido-de-anulacao-da-eleicao-estimula-o-golpismo/

Foto: reprodução / Flickr

A militância pró-mercado da imprensa já não comove um Brasil arrasado pelo sofrimento

The Intercept Brasil

Diário do Brazil, 21 de setembro de 1884: o país caminhava para finalmente decretar a abolição quando o periódico estampou o terror do mercado com a futura libertação de milhares de pessoas: “A desconfiança é geral. O capital se retrai”. Fomos o último país do mundo a dar fim ao sistema escravocrata.

O Globo, 26 de abril de 1962: o mercado chorava e rangia os dentes com a criação do 13º salário mínimo, que virou lei em julho de 1962 no governo do presidente João Goulart: “desastroso”, dizia a manchete. O 13º era uma demanda antiga de trabalhadores como ferroviários e metalúrgicos cansados de receber somente um panetone e um vinho barato como gratificação no final do ano.

Folha de S.Paulo, 11 de novembro de 2022: após um breve discurso no qual Lula criticou as regras fiscais do Brasil e sugeriu um Bolsa Família fora do teto de gastos, o periódico estampou: “Citi diz que mercado pode ter se enganado em relação a Lula”. No mesmo dia, o jornal publicou um editorial cravando, apenas duas semanas após a eleição, que o presidente eleito “conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo vá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”. “Mau começo” é o título do texto.

COMO PODEMOS VER, a instituição mercado parece ser ainda mais frágil do que o candidato derrotado à presidência da República, cujos olhos estão marejados desde a noite de 30 de outubro (embora o Citibank tenha tido o maior lucro em 10 anos em 2021, quando enfrentávamos o auge da pandemia). Bastou o primeiro “se retrair” e parte dos jornais retomou o papel de arautos do fim do mundo.

Mas, depois de um impeachment vergonhoso; da prisão e impedimento de candidatura de Lula; de quase 700 mil mortos pela covid-19; de o ministro Paulo Guedes querer combater o vírus “com reformas”; depois do aumento do assassinato de pessoas negras mesmo durante o lockdown; depois das filas dos caminhões de lixo para obter comida; depois do desespero das pessoas sem acesso a oxigênio nos hospitais; depois da inauguração do touro dourado da B3 no centro enquanto milhões padeciam… não dá simplesmente para sentir dó de um mercado quase sempre refratário ao sofrimento da masileira.

E aqui é preciso perguntar: o que entendemos por mercado? Essa instituição é, muitas vezes, tratada pela imprensa como um ente abstrato e quase fantasmal. Ou, no extremo oposto, como uma rede supostamente homogênea que conecta desde os maiores clientes e altos funcionários de um grande banco a uma cidadã de classe média que guarda o pouco dinheiro que resta em uma aplicação financeira qualquer.

Há nos dois tratamentos uma mistura de enganação e de hipocrisia. Porque o mercado é coisa concreta – e é extremamente hierarquizado em seus interesses e poderes. É, a grosso modo, o conjunto dos cinco maiores bancos do Brasil e mais um punhado de grandes fundos de investimento. E é esse mercado que esperneia diante da possibilidade de repartir uma parte do orçamento público que captura (de dinheiro de impostos, sobretudo) com aqueles que não possuem esse poder de chantagem – e não conseguem expressar suas vontades nos espaços dos editoriais.

Se esse mercado está sempre tão à vontade para apitar sobre questões que interferem na vida – e na morte – da população, vale perguntar:

Onde estava o mercado quando milhares de famílias foram despejadas durante a pandemia?

Onde está o mercado enquanto pessoas negras são continuamente dizimadas?

Onde está o mercado enquanto diversos povos indígenas são mortos e/ou sofrem ameaças de garimpeiros?

Onde estava o mercado quando, nos últimos meses, o candidato derrotado saiu explodindo teto, parede e piso de gastos?

Por qual razão o mercado realiza a todo momento uma espécie de chantagem quando projeta qualquer mínima  chance de uma economia não voltada somente para atender aos seus próprios gemidos?

Se imprensa e mercado se incomodam com o valor de R$ 175 bilhões que seriam empregados anualmente para o pagamento de R$ 600 do Bolsa Família, como pensar nos cerca de R$ 100 bilhões gastos, também anualmente, somente para cobrir os custos do Judiciário? E o que dizer da tolerância com os cerca de R$ 42 bilhões líquidos pagos a militares da reserva e a seus familiares somente em 2020, como mostra esse texto de Felipe Betim?

Sobre que setores na prometida reforma administrativa e previdenciária precisamos mesmo falar? Que superprivilégios (e eles são bastante desiguais na administração pública) deveriam ser urgentemente revistos? Por que os rendimentos dos superricos continuam sendo menos taxados do que os da população mais pobre? E por que lucros e dividendos não são taxados de maneira justa no Brasil?

É claro que não dá para fazer uma leitura binária de um assunto tão tentacular. Ainda que timidamente, a heterogeneidade desse mercado se manifesta, com um ou outro CNPJ interessado nas questões sociais. Mas é justamente binarizando o tema – sendo tchutchuca com o mercado e tigrona com as políticas públicas de combate à pobreza – que a imprensa trata o assunto na maioria das vezes.

Lembro bem quando, em 7 de abril de 2021, nomes importantes do empresariado brasileiro se reuniram para jantar com Jair Bolsonaro em um rega-bofe à base de champanhe Veuve Clicquot no Jardim América, em São Paulo. Estavam lá pessoas como Rubens Ometto, da Cosan, Flávio Rocha, do Grupo Guararapes Riachuelo, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o “Tutinha” da Jovem Pan, e Paulo Skaf, ex-Fiesp. Bolsonaro, acompanhado pelos ministros da Economia Paulo Guedes e da Saúde Marcelo Queiroga, esculhambou medidas de isolamento e chamou governadores a favor do lockdown de “vagabundos”. Foi ovacionado.

Naquele dia apenas, o país registrou 3.733 mortes por covid-19. No podcast Café da Manhã, da Folha, uma jornalista disse que os empresários não eram ideológicos, mas “pragmáticos”.

Ao lado de Marcelo Queiroga, ministro da Saúde, Paulo Guedes, ministro da da Economia dá entrevista após jantar com empresários e o presidente Jair Bolsonaro, na casa do empresário Washington Cinel em São Paulo (SP).

O ministro da Economia Paulo Guedes – o mesmo que sugeriu combater o coronavírus com reformas – fala à imprensa após jantar em que Jair Bolsonaro recriminou medidas de contenção da pandemia de covid-19. 

Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress

‘Aprendam a repartir o pão’

Não tenho dúvida de que o sofrimento coletivo pelo qual passamos – e que infelizmente não era uma novidade para milhões de pessoas – deixou alguns aprendizados necessários. Entre eles, a clareza de que desigualdade social não é uma abstração, mas uma realidade que define nossa vida, nossa morte, nosso gozo e nossa dor.

Talvez, justamente por isso, nos deparamos com um fato que me parece inédito nessa nova “retração” do mercado após declarações sobre gastos sociais: as reações ao drama repercutido pelos editoriais foram majoritariamente desfavoráveis à imprensa e ao mercado. Em redes sociais e nas caixas de comentários das matérias, a maioria das manifestações observava, em que se pese a necessidade do controle da inflação e responsabilidade fiscal, que um país arrasado pela incompetência e pilhagem não pode continuar a responder prioritariamente a um clube seleto – que não se incomoda com o fato de os 10% mais ricos ganharem quase 60% de toda a renda do Brasil, segundo o World Inequality Lab.

No Instagram da Folha, os comentários no post que critica a declaração de Lula expressam o espanto e a raiva de leitoras e leitores. “Eu fico impressionada como a Folha não se constrange em naturalizar a fome num país que produz riqueza como o Brasil”, disse Gabi da Pele Preta.

No Twitter, outros tantos seguem a mesma linha: “Não adianta espernear, o combate à fome será prioridade no governo Lula. Esse é o recado do Leonel Brizola para o mercado (Faria Lima). Engulam o choro e aprendam a repartir o pão!”, escreveu Cássia Andrade em um tuíte acompanhado por um discurso de Brizola, falecido em 2004. “Teto dos gastos e Paulo Guedes. Guedes furou o teto dos gastos por quatro anos. Gerou um rombo nas contas públicas. Por que o ‘mercado’ e a grande imprensa nunca cobraram nada dele? Por que protegem tanto Guedes?”, questionou Uallace Moreira.

Desigualdade social não é uma abstração, mas uma realidade que define a nossa vida, nossa morte, nosso gozo e nossa dor.

No UOL, o jornalista Chico Alves escreveu que a “Devoção da imprensa ao ‘mercado’ não faz bem ao Brasil”. Monica de Bolle, economista e professora da Universidade Johns Hopkins, foi sintética: “e que esses últimos quatro anos sirvam para mostrar ao jornalismo econômico que sua relevância depende do entendimento de que a população que não trabalha no mercado não está interessada em análise econômica de elevador e sem compromisso com o país”.

Ela está coberta de razão: o jornalista que se comporta como ativista da bolsa de valores deixa de atuar como mediador entre instituições e população, função que, pelo menos em tese, deveria cumprir.

O mercado, por exemplo, tem relação direta com o fato de uma mãe precisar atuar como doméstica na pandemia e ainda ter que levar seu filho para o trabalho. O mercado tem relação direta com o fato de essa mulher perder o seu filho para o racismo. Não precisamos que os jornais nos digam isso – eles nunca disseram, na verdade. Aliás, essa é outra maneira de lembrar que responsabilidade fiscal e responsabilidade social andam juntas, ainda que não exatamente do jeito que costumamos ser alertados sobre esse fato.

Mas nós passamos por uma inflexão enquanto sociedade – e tenho a impressão de que setores relevantes de nossa imprensa ainda não compreenderam isso. Não tenho dúvidas de que mudanças na postura de diversos veículos (sobre racismo, xenofobia, misoginia, entre outros temas) nasceram da pressão do público.

Um exemplo eloquente aconteceu após a divulgação de uma capa do jornal Aqui PE, do Diário de Pernambuco. Falei a respeito dele no meu último livro e o trago também aqui: em 1° de setembro de 2017, o Aqui PE publicou uma foto com a imagem de uma mulher negra morta, caída no chão e com parte da calcinha e das nádegas à mostra. Dizia a manchete: “Flanelinha assassinada a pauladas no Recife Antigo”. A imagem das regiões íntimas de Diana gerou reações por parte de diversos setores da sociedade. Vinte e cinco entidades ligadas à defesa dos direitos das mulheres e coletivos que atuam como observatórios da mídia publicaram uma nota de repúdio. A seguir, um trecho:

Ao reforçar estereótipos de gênero, retroalimenta uma cadeia de argumentações misóginas, racistas e classistas, as quais podem desembocar num amplo feixe de práticas violentas. O Aqui PE precisa se retratar publicamente e manter uma linha editorial coerente com o jornalismo, enquanto campo mediador de sentidos. Do contrário, continuará apenas alimentando ódio e manchando essa profissão tão nobre e relevante para a vida em sociedade.

O caso chegou ao Ministério Público de Pernambuco, que instaurou uma ação civil pública. A partir dela, foram acertadas as etapas da retratação e reparação que o jornal deveria cumprir. Assim, o Aqui PE publicou um “Erramos” na capa. Depois, publicou uma série de matérias sobre direitos humanos, com a violência contra mulheres abrindo o especial. Finalmente, jornal e entidades que assinaram a nota se comprometeram a realizar um seminário sobre direitos humanos para profissionais e estagiários.

É um caso que ilustra bem: uma sociedade atenta e cansada da militância jornalística antimulheres, antinegros, antipobres consegue mudar a qualidade daquilo que é dito e visto sobre nós. Uma sociedade cansada da militância jornalística pró-mercado pode fazer o mesmo.

*Recentemente, o jornalista Rodrigo Alves, do podcast Vida de Jornalista, reuniu profissionais de todo país (tive a sorte de estar entre elas e eles) para perguntar o que esperar do jornalismo após essas eleições e o que aprendemos nesses terríveis anos com Bolsonaro. Recomendo a escuta e atenção especial ao que diz minha colega Nayara Felizardo, aqui do Intercept, sobre a necessidade da descentralização das coberturas jornalísticas.

*A pesquisa sobre as capas de jornais trazendo antigas notícias sobre o mercado foi realizada por Marcelo Moutinho.

Matéria publicada originalmente no Intercept brasil


Foto: reprodução: Hugo Barreto / Metrópoles

Transição tenta conquistar votos de governistas pela aprovação de PEC

Sandy Mendes | Metrópoles

Na tentativa de conseguir aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, um grupo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) busca aliados do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), para negociar apoio. A proposta garante o pagamento de R$ 600 para beneficiários do Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família) e o aumento real do salário mínimo.

A minuta do texto foi entregue ao Senado Federal na última quarta-feira pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB), coordenador transição. O relator do Orçamento de 2023, Marcelo Castro (MDB-PI), recebeu o documento.

O PT trabalha para montar uma “força-tarefa” pela PEC. Para isso, deu aos aliados a função de se dividirem para conversar com o Congresso e negociar a aprovação do texto, que começará a tramitar no Senado. O tempo hábil da proposta é curto, já que as atividades do Legislativo devem encerrar em 18 de dezembro.

A chegada de Alckmin nesta terça-feira (21/11) a Brasília será também no sentido de reforçar o contato com parlamentares. A ideia é que ele tenha uma série de conversas com congressistas, no sentido de ganhar apoio para a aprovação da proposta.

Além disso, a ideia é que o bloco de apoio dentro do Congresso trabalhe intensamente nos próximos dias. Entre os principais articuladores estão: relator Marcelo Castro, senadores Paulo Rocha (PT-PA), líder do partido na Casa Alta, Jaques Wagner (PT-BA) e Wellington Dias (PT-PI), escolhido por Lula para negociar a peça orçamentária do próximo ano.

Ao Metrópoles Dias afirmou que Castro estará junto da nova bancada eleita para dialogar acerca do texto:

“Junto com equipe Técnica e relator do orçamento, o [senador] Marcelo Castro está ajudando nas apresentações e diálogo com os mais mais próximos ao governo eleito e também com líderes da oposição, para o convencimento e entendimentos com o objetivo de viabilizar a aprovação da PEC”, disse.

Nesta segunda-feira (21/11), a bancada do PT se reuniu para discutir as medidas que podem ser incluídas ou retiradas da proposta. Há, no momento, uma incerteza sobre por quanto tempo o montante ficaria de fora do teto. Os parlamentares discutem, por exemplo, a alternativa de fixar o prazo em quatro anos para excepcionalizar o benefício do Bolsa Família. O teto de gastos é a regra fiscal que limita o crescimento das despesas da União à inflação do ano anterior.

Antes, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que “o mais provável” é que a retirada das despesas com o Bolsa Família do teto de gastos ocorra por quatro anos, o período completo do mandato conquistado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSB). Expoentes do Centrão, como o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), insistem em aplicar a medida apenas no ano que vem.

PEC alternativa

O senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) apresentou, na segunda-feira (21/11), uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) alternativa ao texto da PEC da Transição.

A medida apresentada pela equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prevê que quase R$ 200 bilhões fiquem fora do teto de gastos. A proposta de Vieira defende o limite de R$ 70 bilhões fora.

No texto, o parlamentar afirma que a redução de R$ 175 bilhões para R$ 70 bilhões seria suficiente para a ampliação do Bolsa Família, garantindo o valor de R$ 600 mensais, mais R$ 150 por criança de até 6 anos. O objetivo do documento é assegurar o pagamento de R$ 600 mensais aos beneficiários, além de garantir uma quantia adicional, no valor de R$ 150, a ser paga para famílias com crianças menores de 6 anos. Estima-se que só essa medida chegue a R$ 175 bilhões.

Articulações

O líder do PT na Casa Alta, senador Paulo Rocha, deverá conversar com o também líder do governo de Bolsonaro, Carlos Portinho (PL-RJ), que se mostra relutante em aprovar o projeto que ele tem considerado como “PEC da Gastança” e do “cheque em branco”. Nas redes sociais, Portinho tem feito duras críticas à PEC, mas defende a manuntenção do benefício social em R$ 600, uma vez que já fazia parte da pauta de releeição de Bolsonaro.

“Queremos o auxílio de 600, mas não há cheque em branco como cogita a PEC do Fim do Teto! Não vamos quebrar o Brasil ou condenar nosso futuro”, escreveu no Twitter.

O partido do futuro presidente planeja, ainda, uma conversa isolada com os membros da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A PEC precisará passar pelo colegiado antes de ser levada ao plenário dos senadores. Além disso, ela terá de ter o apoio de, no mínimo, um terço da Casa, 27 senadores.

De acordo com o senador eleito Wellington Dias, a expectativa para que a PEC seja aprovada é alta. Isso porque o trabalho, segundo ele, está sendo construído em “sintonia” com o Legislativo.

“O nosso trabalho é feito em sintonia com os presidentes das duas Casas legislativas”, afirma Dias.

O ex-governador do Piauí também afirma que o novo governo conta com a ajuda de parlamentares que já presidiram o Legislativo e foram líderes, além de presidentes de partidos e governadores.

O PT também tem como aliada a senadora Simone Tebet (MDB-MS). A parlamentar já presidiu a CCJ e hoje integra o grupo de transição de Lula, na área de desenvolvimento social.

Segundo Dias, espera-se que a PEC seja aprovada até o final de novembro pelos senadores e siga para a Câmara dos Deputados no começo de dezembro.

Matéria publicada orginalmente no Metrópoles