Míriam Leitão: Temores dos contribuintes

Reforma fatiada impede a visão do todo e se for aprovada em etapas provocará aumento de carga tributária para alguns setores

Ao dar os próximos passos da reforma tributária, que apresenta em partes, o governo quer encontrar o bolso da classe média. O Imposto de Renda Pessoa Física perderia suas deduções, e provavelmente terá mais uma alíquota. Está também em estudo a taxação de dividendos, no projeto de que a empresa pague menos, mas seu sócio pague mais. E o sonho da equipe é fazer um imposto tipo CPMF e com isso reduzir os tributos sobre folha salarial. O fatiamento impede a visão do todo e, portanto, cria mais resistência. Os cálculos das consultorias mostram aumento de carga.

Uma empresa de software pediu à consultoria Mazars para fazer a conta dos efeitos sobre o seu negócio. Segundo Luiz Carlos dos Santos, diretor responsável pela área tributária, a empresa pagará mais imposto.

— Para essa empresa de software que simulamos, na conta final, ela teria em torno de 3% a 5% de aumento de carga. Isso ela teria que tirar da margem, podendo até inviabilizar investimentos em novos produtos — disse Santos.

Há outro ponto que é difícil saber como vai funcionar, que é a exigência às plataformas digitais para que paguem caso o fornecedor não recolha a CBS, numa espécie de contribuinte substituto.

— Mercado Livre, iFood, Rappi, qualquer plataforma vai ser responsável pela nota, em caso de o vendedor não emitir. Você acessa o iFood e compra no bar da esquina alguma coisa, e ele não emite a nota fiscal. A responsabilidade passa a ser da plataforma. Hoje, a plataforma só paga o tributo pela comissão que ela ganha desse pequeno comércio. Ela poderia ter que pagar pela receita do pequeno comércio. A constitucionalidade disso é até discutível, por obrigar uma plataforma a emitir nota por um produto que outro vendeu. Uber, 99, esses aplicativos de transporte têm regimes especiais e ficam de fora. Se comprar pela Amazon, e o produto vem do exterior, a Amazon lá fora vai ter que ter um cadastro na Receita e recolher a CBS. Algumas plataformas podem deixar de achar interessante ficar no Brasil — disse Luiz Carlos dos Santos.

O que o governo diz é que, apesar de as pessoas físicas não pagarem CBS, em qualquer transação feita pela internet, o vendedor deverá emitir nota, transformando-se em empreendedor individual.

De todas as etapas que o governo ainda ficou de apresentar, só o IPI tem a ver com o que está sendo discutido no Congresso, que são os tributos sobre bens e serviços. O governo quer fazer do IPI um imposto seletivo, com alíquota alta para alguns produtos. Nas outras etapas viriam a reorganização dos impostos sobre renda, sobre patrimônio, a desejada desoneração da folha salarial, mas com o preço amargo do imposto que mais distorce que é uma espécie de CPMF.

Ao mesmo tempo em que o Brasil tenta entender o alcance da unificação do PIS e da Cofins apresentada pelo governo, o Congresso formou a Comissão Mista para discutir propostas muito mais amplas, que unificam pelo menos cinco impostos. O IBS previsto na PEC 45 é um verdadeiro IVA porque une cinco impostos, inclusive o ICMS que é a grande dor de cabeça das empresas, e o maior deles com recolhimento de 7% do PIB. A do Senado, também. Uma das ideias com que se trabalha na PEC 45 — e que agora deve ser levado para a comissão mista já que o deputado Aguinaldo Ribeiro é o relator também — é de um imposto seletivo sobre alguns produtos, entre eles, combustíveis fósseis. Nessa ideia, a Cide seria extinta.

A situação em que o país está é que o governo demorou a entrar na conversa e chegou com uma proposta pequena, confusa e polêmica. Promete outras etapas, mas elas ficam no ar, gerando ainda mais incerteza. O que se sabe até agora é que depois do IPI o governo vai enviar uma proposta para reformar o Imposto de Renda Pessoa Física. Quer acabar, por exemplo, com a faixa de isenção maior para quem tem mais de 65 anos, e quer eliminar as deduções para saúde e educação. Todas provocarão controvérsia como a CBS.

— Se eu saio da alíquota de 3,65% e 9,25% por uma de 12% ,e eu não tenho crédito para contrabalançar, vou ter aumento de carga sim — disse Santos.

Essa reforma a conta-gotas provocará uma onda de reação a cada etapa e vai embaralhar a tramitação das PECs que estão no Congresso. Enquanto isso, todos os contribuintes ficam na expectativa do que ainda está por vir.


Míriam Leitão: A educação no meio do conflito

Depois de um dia de intensa negociação, o governo teve que ceder da proposta do Ministério da Economia. O novo Fundeb de ser votado hoje

O dia de ontem foi de fortes emoções para quem acompanha o debate da educação brasileira. Na reunião de líderes, pela manhã, o deputado Arthur Lira (PP-AL) levou recado do governo, queria adiar a votação da PEC do novo Fundeb. O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) recusou e manteve o início da discussão com votação marcada para hoje. De tarde, no meio do debate em plenário, veio o pedido do Planalto para uma conversa. Suspensa a discussão. O ministro Luiz Eduardo Ramos, às 17h, estava na sala de Rodrigo Maia e a relatora, deputada Professora Dorinha (DEM-TO), foi chamada. Pouco depois das 18h, o governo cedeu e finalmente houve acordo. Mas por que toda essa aflição? Porque o executivo chegou na última hora na conversa e com uma proposta inaceitável.

A primeira ideia apresentada pelo Ministério da Economia, no fim da semana passada, era estranha pelo conteúdo, pela forma e pela hora. Era a reta final da negociação que começou em 2015. O Congresso quis discutir com tempo para evitar exatamente o atropelo, porque no final de 2020 o fundo expira. E ele é importante demais para a educação em milhares de municípios.

O Congresso passou o dia de ontem negociando. No acordo, os parlamentares aceitaram fazer pequenos ajustes e, no texto final, dar destaque à importância da educação infantil, o que já seria mesmo feito. De noite, a torcida era para que não houvesse novos sustos.

A proposta que o Congresso construiu — e que o Ministério da Economia tentou atropelar — foi resultado de uma lenta costura entre todas as correntes políticas. A imprensa acompanhou, os especialistas explicaram. Em 2018, a intervenção no Rio paralisou a tramitação de todas as emendas constitucionais. Em 2019, com o governo novo esperava-se algum interesse. Mas o Ministério da Educação se recusou a participar. O Ministério da Economia avisou que era inaceitável a ideia do Congresso que, naquela época, era de aumentar de 10% para 40% a participação da União. A elevação ficou então de 10% para 20%. E escalonada. Mas o governo seguiu ausente das discussões. Ontem negociava-se um pequeno aumento nesse percentual.

Em janeiro deste ano, o então ministro Abraham Weintraub, em entrevista, anunciou que o governo preparava um projeto inteiramente novo. A PEC estava para ser votada. Causou a maior confusão, e ele nunca mandou a tal proposta. Agora, de novo, em cima da hora de votar, o Ministério da Economia apresentou a ideia de tirar 5 pontos percentuais da elevação da participação do governo. Esse dinheiro iria para um programa de ajuda a famílias pobres com crianças em idade pré-escolar, através de um auxílio-creche.

É um erro técnico de gestão de contas públicas tirar dinheiro de um fundo de educação para um programa de transferência de renda. O Ministério da Economia faz isso porque o dinheiro do Fundeb não entra na conta do teto de gastos. A proposta era ruim, desrespeitava o processo legislativo e embutia um absurdo: não haveria Fundeb em 2021.

O fundo nasceu no governo Fernando Henrique como Fundef. A engenharia fiscal era de que todos os entes federados contribuíssem para uma distribuição melhor dos recursos de financiamento da educação. No governo Lula, foi ampliado para incluir o ensino médio e virou Fundeb.

O governo Bolsonaro quis fazer um gol de mão e depois do tempo regulamentar. Tirar parte do dinheiro que ele terá que colocar a mais no Fundeb e levar para um projeto com o qual pretende substituir o Bolsa Família. Projeto que ele ainda nem formulou. Alguns economistas acham que o Brasil precisa gerir melhor os gastos com educação e não aumentar os recursos. A educação precisa de mais recursos e melhor gestão. E também é preciso que haja um Ministério da Educação, o que neste governo nunca houve até agora. Tomara que o ministro Milton Ribeiro se recupere logo da Covid-19 e tenha uma atitude diferente dos seus antecessores.

O ano que vem será difícil. É o pós-pandemia. Mais do que nunca o Fundeb será necessário para compensar a queda de arrecadação, para as obras nas escolas, para recuperar a educação dos mais pobres e dos municípios mais pobres do país. Será fundamental o entendimento entre os entes federados para o investimento na educação das crianças e jovens do Brasil. O novo Fundeb será um passo importante na direção certa.


Míriam Leitão: Difícil caminho fiscal do Brasil

Reforma tributária seria simples se o governo colocasse a sua proposta na mesa e parasse de dizer que debate está sendo interditado

O Brasil tem que aproveitar a janela de oportunidade dada pelos juros baixos, o único item de despesa que diminuiu. Todas aumentaram, inclusive a previdência, que terá uma alta do déficit de mais de 1% do PIB neste primeiro ano da reforma. A janela pode ficar aberta por alguns anos, mas esse tempo pode se encurtar e ser apenas de alguns meses se o país cometer erros. Aproveitá-la é usar o tempo para conduzir um diálogo político e construir consensos. Isso é muito difícil com um governo espinhoso como este.

O Brasil entrou num período de déficit primário em 2014 e não tem chance de sair dele durante todo este mandato. A dívida terminará este ano em 98%, e o déficit primário, em 12% do PIB, um rombo gigante de R$ 800 bilhões. A ideia dentro do próprio governo é que, se não recuperar parte da arrecadação que vai perder, o país só verá a volta do superávit primário no fim do próximo governo, do presidente que ainda não foi eleito, e isso mesmo cumprindo o teto de gastos.

Na imagem que o ministro Paulo Guedes criou, ele é um conquistador de torres. Costuma repetir a história de que ele “derrubou a primeira torre, dos juros altos, e depois derrubou a segunda torre, da previdência”. A vida real é diferente das metáforas de Paulo Guedes.

Os juros foram derrubados no governo Temer. De 14,25% para 6,5%. Isso tornou a dívida bem mais barata. Essa queda continuou com Bolsonaro e agora despencou por causa da crise. Mas se o governo não mostrar capacidade de enfrentar os problemas fiscais brasileiros os juros subirão.

Quanto à segunda torre. Apesar da reforma, o gasto previdenciário subirá este ano como proporção do PIB. No RGPS, a despesa deve pular de 8,6% para 9,6% do PIB. No RPPS, deve ir de quase 5%, quando se junta o federal com estados e municípios, para 5,5%. Isso porque a despesa não caiu e o PIB encolheu. E é essa relação entre gasto e PIB que entra na conta. Tem mais um problema: a base de tributação caiu, porque empresas fecharam, empregos estão sendo perdidos.

O governo diz que a reforma administrativa não foi feita porque veio a pandemia. Não foi assim também. A reforma foi preparada, mas o presidente não quis enviá-la, apesar de muita insistência do ministro da Economia. A reforma tributária está sendo formulada desde o começo do governo mas ainda não foi para o Congresso, onde tramitam apenas duas formas de reorganizar o pagamento dos impostos sobre o consumo. O impasse tem a ver com a insistência do ministro, que gostaria de recriar um imposto sobre transações, sobre pagamentos, alguma coisa qualquer que funcione como a CPMF.

O que os especialistas em contas públicas dizem é que qualquer que seja o caminho do ajuste ele exige necessariamente muito diálogo entre executivo e legislativo, entre governo e sociedade. Tem que ir para o debate político disposto a ouvir, a trabalhar para construir o diagnóstico. Tem que ter calma e dialogar muito nos próximos meses. E este governo não sabe dialogar. O ministro da Economia não dá uma entrevista sem espalhar espetadas. E vai deixando mágoas.

Não é verdade a versão de que a reforma da Previdência foi aprovada porque este governo foi melhor do que os anteriores. O fato é que o debate foi amadurecendo, principalmente no período Temer. E o Congresso se esforçou apesar de o presidente Bolsonaro só ter se mobilizado para defender os grupos de interesse que sempre representou como deputado: policiais e militares.

O país vai reequilibrar as contas por onde? Vai criar imposto? Se for isso, terá que ficar claro. Vai reduzir os subsídios? Durante a campanha, Paulo Guedes falava que acabaria com os gastos tributários que são mais de R$ 300 bilhões. Essa agenda não andou. Na conta de redução de subsídios, de novo, o governo Temer, quando criou a TLP, deu um passo relevante.

Durante a campanha eleitoral, cada vez que um economista de qualquer campanha falava em reduzir as isenções e vantagens tributárias, eu pedia exemplos. Ninguém respondia assertivamente. Isso porque o maior gasto tributário é o Simples, outro enorme é o da Zona Franca de Manaus.

Existem também as isenções no Imposto de Renda Pessoa Física. Mexer em qualquer ponto desse exige um governo que saiba construir consensos. Este governo não sabe, muito menos depois de ter se comportado tão mal durante a pandemia.


Míriam Leitão: O impagável custo do ‘não’

Na análise das contas públicas, o que se olha sempre é quanto custa fazer. Quanto dos recursos dos contribuintes será destinado a um programa específico ou foi desperdiçado em alguma obra inacabada. O estudo apresentado ontem sobre educação faz uma inversão completa do olhar e mostra um ângulo novo: qual é o preço de não educar os jovens, de permitir que eles desistam da escola antes de completar o ensino básico? O Brasil perde por ano R$ 214 bilhões. É muito mais caro não educar do que educar.

Os caminhos para encontrar os números foram trilhados por ninguém menos que Ricardo Paes de Barros, mestre da precisão técnica exatamente na área das políticas sociais. Ele e a economista Laura Machado, ambos do Insper, colocaram sobre a mesa uma sequência impressionante de informações. O Brasil tinha, em 2018, 3,3 milhões de jovens de 16 anos. Hoje, um em cada quatro jovens não conclui o ensino básico, mas esse número tem caído. Por isso, a conta é feita projetando-se que, desses jovens do ano estudado, 17,5% não devem concluir o ensino básico. Isso representa uma multidão. Ao todo, 575 mil vão sair da escola antes de completar os 11 anos da educação básica.

Isso criará uma sequência de eventos: quem não conclui os estudos acaba tendo mais dificuldades de se inserir no mercado de trabalho, quando tiver emprego será com menor remuneração, muitas vezes na informalidade. Terá uma qualidade de vida pior, terá uma vida mais curta e pode, muitas vezes, ser vítima da violência. Isso será trágico para cada jovem. Mas custará caro para o país, explica o estudo. São as externalidades. Ou seja, nem todo o fruto do esforço de educação é apropriado pela pessoa em si. Uma parte fica com toda a sociedade em forma de riqueza que circula. Pode-se entender isso de forma abstrata, mas a pesquisa feita em parceria pela Fundação Roberto Marinho e pelo Insper tem a vantagem de colocar números no que antes eram impressões.

A ideia surgiu de uma pergunta feita pelo secretário-geral da Fundação, Wilson Risolia, economista e educador. Ele mesmo fez um caminho pedregoso até se formar, diante das dificuldades financeiras da família. Sabe o esforço que foi preciso para concluir os estudos. Existe o valor intangível da educação e sobre ele podemos pensar e sentir. A importância de levar para dados tangíveis é que eles passam a ser argumentos fortes nas escolhas das políticas públicas e dão concretude aos debates.

O país perde anualmente R$ 372 mil por jovem que deixa de estudar. É a soma da perda pessoal e do que ficaria para a sociedade do esforço individual. O custo de oferecer toda a educação, da pré-escola ao fim do ensino médio, é de R$ 90 mil por estudante. “Assim, o custo de evasão por jovem é quatro vezes maior do que o de garantir a sua educação”. Ao todo, a evasão escolar tem um peso de 3% do PIB anual, diz o estudo.

Há um risco maior agora com a pandemia. As pesquisas mostram que muitos jovens estão ficando desanimados nestes longos meses do nosso padecimento. É urgente que quem está em alguma posição de poder se emocione, se mobilize e ajude a levar os jovens de volta ao caminho da escola. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, no lançamento do estudo, admite que todas as urgências do país ficaram maiores.

— Vamos ter muito desafio e na educação não vai ser diferente. Quatro ou cinco meses de crianças sem escola, a falta de tecnologia de muitas crianças, o parlamento tem que estar dialogando e construindo soluções — afirmou.

A educação é um direito. Por isso, o título do estudo é “Consequências da Violação do Direito à Educação”. Paes de Barros ressaltou como a evasão escolar é uma das causas para a desigualdade social no país.

— Numa família rica, com pais educados, a probabilidade de o filho não concluir o ensino médio hoje é praticamente zero. Numa família muito pobre, no interior do Nordeste ou da região Norte, onde a criança vive com a mãe e sem o pai, e ela é analfabeta, esse número facilmente chega a 80% a 90% — explicou.

Risolia contou que numa pesquisa recente ouviu que muitos jovens viam a educação como um sonho, quando na verdade é um direito. No começo dos anos 1990, 60% das crianças não concluíam o ensino médio, agora o número é bem menor. Falta fazer o resto da estrada. O preço de desistir dos jovens é alto demais.


Míriam Leitão: Conflito Gilmar e Forças Armadas

Forças Armadas se sentem injustiçadas no combate à pandemia, mas assumiram o risco à imagem com a forte presença de oficiais na Saúde

O Ministério da Defesa não encontrará vontade de brigar no gabinete do ministro Gilmar Mendes. Por isso, se o procurador-geral da República, Augusto Aras, fizer a representação contra o ministro, ele simplesmente prestará as explicações pedidas. Dirá que não quis imputar crime ao Exército, mas apontar um problema que, na visão dele, está acontecendo. Para os militares, a declaração do ministro Gilmar Mendes pesou demais porque ele disse que o Exército estaria se associando “a esse genocídio”.

As Forças Armadas estão convencidas de que eles estão fazendo o máximo que podem para combater a pandemia, com 34 mil efetivos dedicados às diferentes frentes de trabalho. Elas se sentem injustiçados, e por isso a nota contra o ministro Gilmar Mendes foi assinada não apenas pelo ministro da Defesa, mas pelos comandantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica.

Na live da revista “Isto É”, da qual participou o ministro Gilmar Mendes, todos os painelistas criticaram bastante a omissão do Ministério da Saúde nesta pandemia que já deixou um rastro de 72 mil mortos. A crítica foi exatamente à anulação de quadros técnicos do Ministério. O general Eduardo Pazuello é da ativa e existem outros 28 militares na Saúde. Um deles, o secretário-executivo, é coronel da reserva, Antônio Élcio Franco, e protagonizou a cena lamentável da humilhação de um garçom.

Quando os militares ocupam postos-chaves no governo, e vão até a manifestações, que além de faixas antidemocráticas tiveram também a mensagem anti-isolamento social, eles estão colocando em risco sua imagem. O próprio ministro Pazuello compareceu a um desses atos. No Ministério da Saúde, no meio de uma crise, ele tem avalizado as decisões do presidente da República. Isso tudo afeta a imagem dos militares. Mas a visão dos militares é a do vice-presidente Hamilton Mourão, de que o ministro teria ultrapassado o limite.

O evento já estava quase no final quando o jornalista Germano Oliveira passou a palavra ao ministro Gilmar Mendes. Ele disse que o “apagão do Ministério da Saúde” era grave. Disse que o Supremo fez o que lhe competia. Lembrou que o ministro Alexandre de Moraes permitiu a atuação do governo, “ao admitir a suspensão dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, dando segurança para ações governamentais”. Lembrou mais uma vez a natureza do voto do STF sobre a responsabilidade pelo combate à pandemia: ela é compartilhada pela União, estados e municípios. Bolsonaro tem insistido que toda a responsabilidade foi dada pelo STF aos estados e municípios:

— Queria encerrar dizendo que somos uma das maiores nações do mundo. Vejo aqui em Portugal toda hora notas ruins em relação ao Brasil, ao nosso processo civilizatório. É altamente constrangedor. As pessoas perguntam: o que aconteceu com o Brasil? O país que sempre nos trouxe lições de soft power e de civilização. Há um direito muito discutido, que é o direito à boa governança, não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Pode ter estratégia e tática em relação a isso, mas não é aceitável que se tenha esse vazio no Ministério da Saúde.

Pode-se dizer que a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal e atribuir a responsabilidade aos estados e municípios. Se for essa a intenção, é preciso fazer alguma coisa, é ruim, é péssimo. Para a imagem das Forças Armadas, é preciso deixar de maneira muito clara, o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável para o Brasil.

A um interlocutor com quem o ministro conversou ontem, ele disse ser “insuspeito de ser anti-militarista”, mas está convencido que as “Forças Armadas estão assumindo uma responsabilidade que não deveriam”. Ao ir além da nota, e pedir a ação da Procuradoria-Geral da República, os militares mostram que querem uma retratação.

O general Pazuello aceitou um papel ingrato. Ele assumiu, mas é interino. A interinidade dá a impressão de vazio no comando. Sua presença e a de todos os outros oficiais militarizaram o órgão. O Ministério passou a seguir as recomendações do presidente em relação à pandemia. O que Bolsonaro buscava era um ministro que o seguisse cegamente. Nenhuma instituição deveria pôr a sua reputação a serviço dessa política de Bolsonaro para a saúde, pelo simples motivo de que ela está errada.


Míriam Leitão: Quando o dinheiro fala é melhor ouvir

A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, disse ao “Financial Times” que está comprometida com a busca de uma economia mais verde. “Eu quero explorar todas as avenidas disponíveis para combater as mudanças climáticas, porque, no fim das contas, o dinheiro fala.” O dinheiro falou alto e claro ao Brasil nos últimos dias sobre a necessidade do fim do desmatamento da Amazônia. Na resposta, o vice-presidente Hamilton Mourão teve uma boa atitude, mas repetiu alguns velhos equívocos.

A boa atitude é receber os investidores e os empresários e se comprometer com resultados e até, como disse ontem, adotar metas de redução de desmatamento. Isso, se virar realidade, será uma mudança radical na atitude do governo. Será preciso abandonar teses antiquadas.

Não leva a lugar algum repetir o argumento de que a pressão vem de competidores comerciais do Brasil. Sim, o Brasil é um fenômeno agrícola. Deu saltos de produtividade, desenvolveu novas tecnologias, tem água, terra, conhecimento. Sempre haverá competidores rondando. O problema é por que um país com imensas possibilidades facilita tanto a vida dos competidores como faz o governo Bolsonaro? Segunda dúvida: por que destruir exatamente esse patrimônio que nos dá vantagens competitivas?

A aliança tem que ser com o moderno agronegócio, e não com a cadeia de crimes que grila e devasta. É irracional não reprimir essa forma truculenta de ocupação de território e de roubo de bens públicos. É do nosso interesse levar o país ao desmatamento líquido zero, como nos comprometemos no Acordo de Paris. O país será o maior ganhador. Dentro do agronegócio há uma luta entre o novo campo e a lavoura arcaica. Por atos e palavras o governo Bolsonaro até agora fortaleceu o passado. Não farei a exaustiva lista dos erros desta administração na área ambiental. Ela não cabe neste espaço. O aumento do desmatamento e as queimadas falam por si.

É um tiro no pé levar o ministro Ricardo Salles para a conversa e ainda fortalecê-lo no cargo. Só se engana com ele quem jamais se aprofundou no tema. Mourão tem tudo para entender profundamente. Morou na Amazônia, viajou na floresta por terra, ar e rios. Em algum ponto do Rio Negro deve ter sentido a força da floresta em pé. Salles é um equívoco. Os financiadores sabem disso. Os empresários atualizados, também.

O vice-presidente convidou os investidores a financiarem a conservação na Amazônia. Mas foi este governo que acabou com o principal instrumento, o Fundo Amazônia, pelo qual dois países amigos, a Noruega e a Alemanha, deram dinheiro ao Brasil. O dinheiro foi usado para financiar políticas públicas. O que os doadores do Fundo pediam? Governança. Que o Conselho representasse a sociedade, os governos estaduais, a ciência e não apenas o governo federal. Salles desmontou o conselho. Fez outro que só tinha Brasília, não tinha Brasil.

Mourão acertou quando falou em resultados e metas. Só que não pode ser para inglês ver. E para ser real é preciso entender algumas coisas: o Ibama e ICMBio já estavam sem recursos, mas foi o atual governo que os atacou de forma implacável. Os incêndios na Amazônia são majoritariamente criminosos, feitos por grileiros para eliminar o resto de vegetação que fica após o desmatamento. Isso não é palpite. Existem imagens de satélite que podem recuar no tempo e apagar as dúvidas que ainda existam. Não se trata de enfrentar a “narrativa”. E sim de encarar os fatos.

O dinheiro está pressionando por uma economia mais verde porque de repente passou a ter princípios? Não. Porque os fundos reagem à pressão dos seus stakeholders, de todos os envolvidos no negócio. O consumidor pressiona a empresa, que cobra do investidor, que quer saber do fundo se há forma de rastrear o produto. E, na dúvida, o país é vítima de boicote. Os empresários brasileiros ontem disseram que já sentem a queda dos aportes estrangeiros.

O ministro das Comunicações não sabe que a floresta amazônica fica na Amazônia. O ministro do Meio Ambiente nunca tinha visitado a floresta quando assumiu o cargo. O governo pode continuar cometendo erros grosseiros ou entender a gravidade do assunto. Este governo tem horror a ambientalista. Tá ok, entendi. Mas agora é o capital que está falando. É melhor ouvir.


Míriam Leitão: História que os números contam

Indicadores contam que ainda é temporada de números desencontrados, de alto e baixos, mas os de ontem foram positivos

Os números da economia já divulgados sobre o mês de maio vieram melhores do que o esperado e devem ser comemorados. Mas ainda é cedo para indicar que o país terá uma recuperação sustentada, porque os indicadores estão sendo turbinados pelas políticas de estímulo do governo, que têm prazo de validade para acabar. O próximo dado será sobre o setor de serviços, e a impressão dos economistas é que com esses números eles vão rever a projeção da queda do PIB no segundo trimestre, reduzindo a dimensão do tombo em relação ao inicialmente previsto.

Ontem saiu uma coleção de indicadores. Além dos dados do varejo, as informações da safra e da produção industrial por região. A colheita de junho permitiu rever para cima a estimativa agrícola em 2,5%. A produção industrial, conforme dado divulgado na semana passada, subiu 7% em maio, e a informação de ontem do IBGE foi de que ela subiu em 12 das 15 regiões pesquisadas. No Paraná, a alta chegou a 24%. Houve três estados em que caíram, o pior deles foi o Espírito Santo, -7,8%.

Cada número tem o seu avesso, principalmente neste momento em que o país está atravessando uma estrada cheia de altos e baixos. Então o crescimento de quase 14% do varejo de maio sobre abril só pode ser entendido se for completado com o fato de que comparado a maio do ano passado a queda foi de 7,2%. No varejo ampliado, em que entram os carros e material de construção, a alta foi de 19,6%, mas ficou 14,9% menor do que no mesmo mês de 2019. Houve saltos enormes, como nas vendas de tecidos, vestuário e calçados, que aumentaram 100% em maio na comparação com abril, mas quando comparadas a maio do ano passado a redução é de 62%.

A história que todos esses números contam é que ainda é temporada de dados desencontrados. O país está longe de poder comemorar a retomada das atividades, porque a pandemia ainda não foi controlada e isso vai afetar diversos setores, especialmente os serviços. Mas ao fim e ao cabo este será um ano da maior recessão da nossa história. No meio do caminho, vamos ter números negativos e positivos. Às vezes ao mesmo tempo, como em maio: é a maior alta em um mês sobre mês anterior da série, mas no ano o acumulado negativo aumentou de 3,1% para 3,9%. Estamos neste momento olhando pelo espelho retrovisor os números do pior trimestre. E pelo visto até agora quem imaginava uma queda de dois dígitos do PIB trimestral está atenuando a dimensão desse encolhimento, que, contudo, será muito forte.

Os próximos meses trarão números contraditórios. Teme-se, por exemplo, o que acontecerá no mercado de trabalho. O governo costuma dizer que poupou 10 milhões de empregos, mas na verdade as medidas que reduziram o salário e a jornada, ou suspenderam o contrato, evitaram sim muitas demissões, mas temporariamente. A ideia é que fossem uma ponte para um momento de economia mais forte. Só que as políticas de crédito para manter as empresas com capital de giro ou com capacidade de retomar as atividades estão falhando, em grande parte, e esse é o maior risco que a economia real enfrenta neste momento.

O auxílio emergencial salvou o orçamento de milhões de famílias e explica parte da alta das vendas de maio. Já houve esse mesmo fenômeno, com dimensões menores, quando o governo liberou saques do FGTS. A atividade mostrou sinais de reação, mas depois perdeu potência. A grande dificuldade desta crise é que todos os entes da economia, família, empresas e as três esferas de governo, sairão muito endividados. Por isso, é cedo para dizer que o pior momento da recessão já passou.

O Iedi apontou que o comércio está 7,3% abaixo do nível de fevereiro, antes do início da pandemia. No conceito ampliado, a diferença é de -15,1%. O banco UBS avisou que vai melhorar a projeção para o PIB do segundo trimestre, mas de -13,5% para -11,5%. Ou seja, o recuo ainda permanecerá muito forte. E no terceiro trimestre espera-se uma recuperação parcial, em torno de 5%.

A história que os números contam é que a economia entrou em queda livre em abril, recuperou-se um pouco em maio, mas ainda está muito atrás de onde estava antes da crise. E a atividade já não estava bem. Conta também que a injeção dos recursos do auxílio emergencial, e outros benefícios que foram liberados, ajudaram as famílias e o consumo.


Míriam Leitão: Resposta errada do governo no meio ambiente

Os primeiros movimentos de resposta do Brasil aos investidores apontam para o fracasso. Que chance tem de dar certo a estratégia de convencer que o Brasil respeita o meio ambiente com o presidente Bolsonaro afirmando que eles estão com “uma visão distorcida” dos fatos e uma carta que tem entre os signatários a dupla Ricardo Salles e Ernesto Araújo? Não há o que Salles faça que apague seus abundantes atos e palavras contra o meio ambiente neste um ano e meio. Araújo vive em órbita pelo mundo da lua capturado por teorias da conspiração. Para piorar, existe o danado do fato: o Inpe acaba de mostrar que o Brasil bateu novo recorde de queimada na Amazônia.

Do ponto de vista econômico, o que está acontecendo é uma enorme contradição. A maior recessão da história do país e o desmatamento subindo. Como pode o nível de atividade estar em queda livre, e o desmatamento e as queimadas, em alta? A resposta é: o governo Bolsonaro deu fartos incentivos à atividade ilegal. Os criminosos sabem que ficarão impunes e que, se tiverem mais sorte, verão uma Medida Provisória aprovada consolidando seu domínio sobre áreas que grilaram.

O vice-presidente Hamilton Mourão no comando do Conselho da Amazônia foi um avanço, mas o desmatamento está crescendo forte pelo segundo ano consecutivo mesmo com as ações do Exército. A entrada do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na turma que quer demover grandes fundos de saírem do Brasil tem um ganho e dois óbices. O bom é que Roberto Campos circula fácil pelo mundo das finanças internacionais e tem boa rede de contatos. O primeiro problema é que um presidente do Banco Central não se envolve tanto com questões de governo como ele tem feito, segundo, pelo que disse até agora, ele também esposa a tese de que os outros é que estão mal informados.

Só pela carta que os 29 fundos mandaram para as embaixadas brasileiras, cobrando explicações sobre a política ambiental, já ficou claro que eles sabem exatamente o que se passa no Brasil. Citaram até a boiada pandêmica do Salles. O mundo de hoje é o da informação instantânea. A tese de que os outros países estavam desinformados a nosso respeito foi usada na época da ditadura para negar a tortura. Mesmo naquele mundo analógico, a estratégia deu errado porque contrariava os fatos.

O melhor é mudar os fatos. Essa é a forma de convencer. O vice-presidente disse à “Folha” que convidará embaixadores para sobrevoar a Amazônia. A visão do verde dos nossos bosques não convencerá porque todos podem consultar as imagens de satélite que mostram a progressão do desmatamento no Brasil. Os avanços que o governo pode relatar, como, por exemplo, a queda da taxa de desmate a partir de 2004 pertencem ao governo Lula. A tendência começou a mudar nos governos Dilma-Temer e a destruição acelerou nesta administração. Se os dados atuais forem comparados com a taxa de 2004 haverá sim uma redução, mas foi resultado de políticas ambientais e fortalecimento dos órgãos de controle, totalmente desmontados na atual gestão.

Se quiser mudar a imagem do país, o governo brasileiro tem que começar trocando os ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores. Salles é um dano ambulante à imagem do Brasil. Ele faz qualquer coisa para destruir o meio ambiente, até rasgar dinheiro, como fez com o Fundo Amazônia diante da Noruega e da Alemanha. O problema de Araújo é de outra natureza. Decorre da sua falta de conexão com a realidade. Ele costuma deixar seus interlocutores constrangidos pela maneira como interpreta a conjuntura internacional e sobrevoa os eventos contemporâneos a bordo de teorias lunáticas.

O ponto central da dificuldade de melhorar a imagem ambiental do Brasil é que o presidente Jair Bolsonaro acredita em tudo o que disse e fez nesse campo. Ele acha que o bom é liberar o garimpo e perdoar grileiros. Já que não pode acabar com as terras indígenas, ele quer mineração nessas unidades de conservação. Se pudesse, fecharia órgãos como o Ibama e o ICMbio. Como não pode, ele os enfraquece e ameaça os servidores, como fez com os que destruíram tratores encontrados em desmatamentos de terras públicas. Salles segue ordens do seu chefe. A imagem do Brasil reflete o que tem infelizmente acontecido. Distorcida é a visão de Bolsonaro.


Míriam Leitão: Cenário nebuloso no resto do ano

Economia terá melhora de vários indicadores, mas forte aumento do desemprego neste segundo semestre. Cenário é de incerteza

O segundo semestre não será fácil. Essa é a visão que se consegue ouvir no Congresso e entre economistas. O governo não tem um plano organizado para sair da crise, o país não tem espaço fiscal, a dívida subiu, os estados não têm capacidade de investimento, as empresas grandes terão resultados ruins, e muitas pequenas e médias terão quebrado.

Economistas acham que há várias dúvidas sem resposta e que pode haver uma contradição entre indicadores econômicos. Haverá recuperação em alguns índices mas uma forte piora do desemprego. A conclusão é que é cedo para dizer que o pior passou, porque as famílias vão conviver por muito tempo com a queda na renda.

A ideia de que basta retomar as reformas bate na pergunta: que reformas? A reforma tributária pode ser concluída, segundo se diz no Congresso, mas como foi iniciativa do parlamento e sem participação do executivo conseguirá apenas simplificar o sistema de impostos sobre consumo. O que é sem dúvida uma ajuda, mas a reforma administrativa não será apresentada, na convicção de líderes do Congresso, porque o presidente Bolsonaro não quer, e as corporações, também não.

Alguns economistas também não apostam na agenda de retomada das reformas, mas aplaudem a ideia de o Congresso aprovar a tributária, mesmo sem o protagonismo do governo.

— A reforma tributária traz ganho de produtividade e pode ter aumento de receita no curto prazo. Cria um ambiente mais favorável. Mas não está no meu cenário a aprovação de reformas em geral. Meu cenário é recessão brutal este ano e um crescimento de 2,5% no ano que vem. Nesse ambiente, nada acontece — diz Vitor Vidal, da XP Investimentos.

O grande problema é que existem pelo menos três perguntas sem respostas, na visão de Sílvia Matos, do Ibre/FGV. Quanto tempo vai durar a pandemia, qual será o efeito do fim do auxílio emergencial às famílias e como será a recuperação do setor de serviços?

Vidal diz que tudo o que vê em outros países mostra que esta crise tem um fator comportamental. A economia pode abrir, mas as pessoas não se sentirem confiantes para consumir. A expectativa entre os economistas é de um aumento do desemprego neste semestre.

— Temos que olhar para o Brasil, para a rigidez do mercado de trabalho. Dados da Pnad mostraram que quem perdeu mais foi o pobre, o informal. Houve uma recomposição boa da renda, com os R$ 600 do governo, agora prorrogado. O intuito é que quando a renda for suspensa, já haja confiança para dar tração na economia — diz Vidal.

O cenário está nebuloso na visão de economistas e líderes políticos, mas uma coisa todos concordam. Será um semestre difícil.

— O segundo trimestre foi o auge da pandemia e deve ter uma queda de 10%. Teremos uma recuperação fraca no terceiro trimestre, com quedas em termos anuais. Na margem, vamos ver alguns números positivos, mas em termos anuais vai contrair — diz Silvia.

— A gente cai em torno de 11% ou 12% no segundo trimestre e sobe 7% no terceiro, mas na margem. No anual, sai da base de -13% para -7% e depois -3% — acredita Vidal.

Há ainda, explica o economista da XP, o grande problema da dívida, que chegará a 98%. É preciso um plano para enfrentá-la:

— O cenário fiscal é muito complicado para o ano que vem.

No Congresso, o que se diz é que no governo não ficou resolvida a disputa sobre como será a retomada, se seguindo o grupo dos militares, Tarcísio de Freitas e Rogério Marinho, que advogam uma presença maior do Estado na recuperação, ou segundo a direção do ministro Paulo Guedes. O conflito foi congelado pelo avanço da pandemia, mas não foi claramente arbitrado pelo presidente naquela ruinosa reunião ministerial. Entre os líderes políticos também se diz que privatização não ocorrerá porque o Senado já disse que não quer votar a Eletrobras e não há decisão do presidente sobre as outras empresas.

A aprovação de uma vacina para o coronavírus melhoraria o quadro, mas não há garantias de quando isso vai acontecer. O cenário neste segundo semestre está assim, muita incerteza sobre a retomada e dúvidas sobre a evolução da pandemia. Os indicadores parecerão bons em termos de atividade quando comparados com a queda do segundo trimestre, mas há o risco de uma elevação muito forte do desemprego. Ninguém sabe como estarão as empresas ao fim da pandemia, nem que resposta o governo dará para o pós-auxílio emergencial e para os muitos problemas econômicos que o país enfrentará.


Míriam Leitão: Indústria: maio não faz verão

Para a economia, o melhor teria sido usar os remédios certos da saúde: alto isolamento social, testagem em massa e liderança agregadora

A alta de 7% na indústria em maio é o primeiro dos números que devem parecer favoráveis no mês, mas nem de longe nos tiram do poço. A indústria está 20% abaixo de fevereiro e produz 34% menos do que em maio de 2011. Mesmo com toda a queda na economia, o Brasil conta mais de 60 mil mortos pela pandemia. Para a economia, o melhor teria sido usar os remédios certos e nas dosagens corretas para a saúde: alto distanciamento social, testagem em massa e liderança política agregadora. Isso ajudaria a economia. O Brasil teve distanciamento hesitante, baixa testagem e uma presidência desagregadora.

A queda da produção é decorrência do distanciamento social. Se ele tivesse sido feito de forma eficiente, sem idas e vindas, o Brasil teria saído de forma mais rápida e segura. Mas o presidente Bolsonaro atacou governadores e minou a adesão ao distanciamento. Os governadores e prefeitos foram pressionados pelos grandes empresários e alguns estão cedendo. Bolsonaro usou sua posição de liderança para confundir. Essa hesitação tem o pior resultado para a economia, porque paga-se o preço da interrupção da atividade, mas não se tem nem uma redução expressiva das mortes, nem se prepara o terreno para uma retomada segura. Essa estratégia é ruim também do ponto de vista fiscal.

— Quanto mais tempo demorar a pandemia, mais o governo vai gastar. É mais fácil bancar dois meses do que seis de auxílio emergencial. Por isso, alguns países fizeram restrição na entrada de pessoas e adotaram protocolos muito duros. Seria melhor ter dois meses terríveis, muito duros, mas depois começar a reabrir. Se o Brasil tivesse feito um isolamento realmente forte por dois meses, poderíamos já ter um terceiro trimestre mais normal —disse Silvia Matos, do Ibre/FGV.

O economista especializado em saúde, André Medici, disse algo muito parecido na entrevista que concedeu ontem na CBN. O melhor remédio para a economia coincidentemente é o melhor remédio para a pandemia.

Dentro dessa perspectiva é que deve ser olhado o dado de ontem da produção industrial. O número positivo não tranquiliza. Primeiro porque apenas atenuou parte das duas quedas anteriores, segundo porque a abertura da economia está sendo prematura.

Um dos dados que o IBGE trouxe derruba a versão do governo sobre a conjuntura. A pandemia não foi um raio em céu azul. A indústria brasileira está caindo há sete meses seguidos na comparação com o mesmo mês do ano anterior. Segundo análise da XP Investimentos, menos de 30% dos principais setores industriais apresentaram crescimento consistente nos últimos 6 a 12 meses.

O que explica o 7% positivo de maio é a reabertura de algumas fábricas que simplesmente haviam fechado no mês anterior. O caso mais claro é o do setor de automóveis e carrocerias. Teve um aumento de 244,4% porque compara com a total paralisação do mês de abril, mas ainda está 72% abaixo de fevereiro. O setor automobilístico explica em grande parte a alta de 92% dos bens de consumo duráveis. Por outro lado, a indústria de alimentos cresceu em maio, mesmo em relação ao mesmo mês do ano passado, 2,9%.

Quando os economistas afirmam que o pior da crise ficou para trás, eles querem dizer que os números mais fortes de queda ficarão concentrados nos meses de abril e maio. Mas isso não significa uma retomada consistente do nível de atividade. Especialmente o setor de serviços preocupa, porque é o que mais emprega no país e é o que mais deve sofrer restrições durante o período de reabertura.

— O terceiro trimestre começou sem que a pandemia tenha acabado. E a grande dúvida é sobre o setor de serviços. Ele não volta com a mesma força, pois sofre o efeito mais generalizado das restrições. E tem segmentos dos serviços que mesmo com a abertura não ficarão normalizados, como os restaurantes, bares, cinemas. O home office deve permanecer em várias áreas, o que afetará a contratação de funcionários de limpeza, segurança, transporte — afirmou Silvia.

Ainda será penoso o nosso caminho. Alguns dados serão positivos, mas apenas setoriais e localizados. O Brasil está vivendo este ano uma recessão de dimensões que nunca viveu. Fomos atingidos, como o mundo todo, por uma pandemia, mas a baixa qualidade da resposta nos trouxe a um momento de extrema incerteza. O país está abrindo a economia, antes de ter controlado o vírus.


Míriam Leitão: Forças Armadas, para que servem?

Atuação das Forças Armadas na pandemia fica encoberta pela mistura que Bolsonaro faz entre elas e os seus objetivos políticos

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, estava ontem em território Ianomâmi. Foi numa viagem de rotina para acompanhar a operação de atendimento médico e orientação nas aldeias. Os aviões da FAB já deram o equivalente a 11 voltas ao mundo, em três meses, só levando e trazendo material e equipamento médico que antes eram deslocados pela aviação comercial. Sete mil e quinhentos militares foram contaminados com o vírus, exatamente porque eles estão presentes em muitas frentes ao mesmo tempo. Há uma sensação nas Forças Armadas de que seu trabalho no combate ao Covid-19 não aparece em função dos enormes ruídos causados pela discussão política sobre o risco de um novo golpe.

— Estamos apanhando mais atualmente do que nos últimos 30 anos. Assuntos que já estavam resolvidos voltaram com uma força enorme — disse um oficial superior.

O relato do que as Forças Armadas estão fazendo neste momento é interessante porque ilumina exatamente o seu papel no meio de uma pandemia num país continental, com gigantescos desafios. Sendo, como têm que ser, uma instituição do Estado, e não braço de um governo, tudo fica mais fácil de ver e de valorizar. Lá dentro se diz que é nisso que as tropas estão realmente pensando, no seu papel tradicional. Enquanto isso, manifestantes bolsonaristas fazem passeatas pedindo intervenção militar, e o próprio presidente fez constantes ameaças que alimentaram velhas dúvidas e temores. Certos fatos incendiaram ainda mais o debate, como o dia em que o ministro Azevedo sobrevoou com o presidente uma dessas manifestações que pediam o fechamento do Supremo.

Na época das Olimpíadas havia uma grande preocupação com o risco de atentados terroristas. Houve um investimento nas Forças Armadas em treinamento e qualificação para ações de defesa contra ameaças química, nuclear e radiológica. Isso ficou como um legado e foi usado agora no combate ao Covid-19. Militares fizeram mais de duas mil descontaminações de espaços públicos. E até por ser em áreas de muita população essas ações tiveram mais visibilidade. Estiveram em locais de mais difícil acesso, ilha de Marajó, por exemplo, para distribuir cestas básicas. Ao todo, em vários pontos do país, e até aldeias indígenas, em três meses distribuíram mais de meio milhão de cestas básicas.

— Tem um programa que nasceu também na esteira dos Jogos Olímpicos, em que crianças carentes saíam da escola e iam no contraturno para os quartéis para a prática de esporte. Trinta mil crianças nesse programa. De uma hora para outra, as escolas fecharam, e eles não iam mais para o reforço escolar. Ficaram sem duas refeições. O dinheiro foi revertido em kit alimentação para a família dos jovens — conta um oficial.

Um programa entre CNI, Senai e hospitais, para consertar respiradores no Brasil inteiro, foi possível porque os aviões da FAB ou caminhões do Exército ficaram no leva e traz de equipamentos. Foram 1.500 respiradores consertados. Quando os restaurantes à beira das rodovias pararam, o país poderia ter tido um colapso logístico, porque os caminhoneiros não teriam onde se alimentar. Os militares fizeram pontos de parada e distribuição de quentinha para os motoristas.

Médicos militares foram deslocados para alguns hospitais com falta aguda de pessoal. Saíram, por exemplo, do Sul, que estava pouco afetado, para regiões de quase colapso como Macapá, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga.

Porque estiveram em várias frentes de combate o índice de contaminação de militares foi de 2%, considerado alto. Morreram 20 dos 7.500 contaminados, mas já estão recuperados 80%.

— O militar mesmo está com pouco tempo para discussão política. Há pontos no país onde só nós conseguimos chegar com rapidez, uma ONG bem intencionada consegue ajudar, mas as Forças Armadas fazem em grande volume. Isso sem falar em todo o trabalho de sempre, de patrulhamento, de vigilância de fronteira — me disse um oficial.

A politização das Forças Armadas foi evitada durante 30 anos. O presidente Jair Bolsonaro, de forma deliberada, fez uma mistura entre seu governo e o poder que elas têm. Se os militares forem viabilizadores de um governo que estimula o conflito, e que está em crise, será, como tenho dito aqui, um risco para o país e para a própria instituição.


Míriam Leitão: A razão de voltar ao velho debate

A resistência tem diversos caminhos, e o país vem dizendo que entendeu o risco e as ameaças do governo atual à democracia

Os shows de Gilberto Gil e Milton Nascimento no fim de semana emprestaram uma trilha sonora sutil e linda ao clima de resistência ao autoritarismo. A pesquisa da “Folha de S.Paulo” trouxe o alento de que aumentou para 75% o apoio à democracia entre brasileiros. Novas manifestações da coalizão de políticos e de atores da sociedade civil surgiram. O Brasil parece ter recuado várias quadras no seu processo histórico, tendo que retomar o esforço de convencimento das virtudes da democracia e lembrar o que foi a ditadura. É necessário?

O vice-presidente Hamilton Mourão, em artigo publicado no “Estadão” há um mês, disse que lendo “colunas de opinião e os despachos de egrégias autoridades” fica a impressão de que “sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil”. Aqueles anos não foram dourados — chumbo é o elemento químico que melhor descreve o período — e a demografia derruba a tese.

Na faixa etária de 65 anos ou mais estão menos de 10% da população. Metade brasileiros tem até 33 anos, é mais jovem que a democracia. Quem tem hoje 43 anos nasceu em 1977, o ano da última luta dentro do Exército, quando a linha dura, encarnada pelo general Sílvio Frota, foi derrotada pelo ditador Ernesto Geisel. Daí para o final do governo militar foram ainda sete anos. O Brasil se livrou penosamente do arbítrio, construiu sua democracia com esforço e deveria estar no trabalho árduo de aperfeiçoá-la. Quem vê de forma idílica aquele período terrível está dentro do governo, e não fora dele. O debate voltou porque ficou inevitável diante da agenda do atual presidente da República.

A democracia tem maioria de defensores, segundo Datafolha, mas há números que assustam. Some-se a parcela dos que concordam que é preciso fechar o Supremo Tribunal Federal com os que discordam em parte ou concordam em parte e teremos 39% aceitando, total ou parcialmente, o fechamento do STF. Os que defendem o tribunal são 56%. Ainda que 62% atestem que o legado da ditadura foi ruim, 25% dizem que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas. É preciso olhar também o aviso negativo dos números.

Na entrevista à “Época”, Mourão defende os que estão sendo investigados pelo Supremo no inquérito das fake news, dizendo que eles não ameaçam ninguém e que deveriam pagar uma cesta básica e pronto. Totalmente diferente foi o tom usado por ele para definir os que se opõem ao governo. No artigo do “Estadão”, de 3 de junho, chamou os manifestantes contra Bolsonaro de “baderneiros”, “umbilicalmente ligados ao extremismo internacional”. Disse que eles são “caso de polícia e não de política”. No dia seguinte, Bolsonaro os chamou de “terroristas”.

O problema não são apenas os que pedem intervenção militar. Os atos ficaram muito mais importantes quando o presidente participou e os estimulou a seguir adiante. Por que a manifestação pró-ditadura do domingo não teve o mesmo impacto? Porque o presidente não foi. Bolsonaro tem aproveitado os últimos fins de semana para sempre fazer viagens não anunciadas a algum destacamento militar. Primeiro, no entorno de Brasília, neste fim de semana, em Minas Gerais.

Como disse Fernando Gabeira no artigo de ontem neste jornal, a democracia atualmente é comida pelas bordas. É a maneira como o autoritarismo se instala e essa é uma república com muitas tentativas de intervenção militar. O país vem dizendo, de diversas formas, que percebeu o risco.

Gil em festa junina de aniversário cantou com a família clássicos nordestinos. Um, de Dominguinhos e Fausto Nilo, parecia feito agora: “Ô tempo duro no ambiente/ Ô tempo escuro na memória/ O tempo é quente/ E o dragão é voraz/ Vamos embora de repente/ Vamos embora sem demora/ Vamos pra frente que pra trás não dá mais.” Esse duplo dizer aprendeu-se naquele tempo. Milton, no domingo, cantou profundo como se faz em Minas: “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?”

Pode-se entender disso a pandemia que já matou tantos brasileiros, pode-se entender muita coisa. A delicadeza poética foi afinada na ditadura. A formação de frentes também foi aprendida naquela época. A resistência tem muitos caminhos. O projeto de Bolsonaro é enfraquecer a democracia. Seria estúpido não ver.