Marco Aurélio Nogueira || Defender a cultura, sempre

O que seria do brasileiro sem a música, em suas múltiplas manifestações?

Quando brumas caem sobre a cena pública e a polarização político-ideológica persiste, animada por grosserias, agressões e arroubos retóricos vindos de cima, é hora de valorizar a cultura e resistir aos que tentam criminalizá-la.

Na cultura repousa o que identifica uma nação e faz uma população se reconhecer como parte de uma coletividade. De norte a sul, de leste a oeste, nas grandes cidades e nas mais recônditas localidades do Brasil profundo, é a posse de uma mesma língua, de hábitos enraizados, de símbolos, de maneiras de pensar, sentir e fazer que dá ao brasileiro a percepção de que, na vida, há algo além da sua pessoa e do lugar geográfico. Por brotar da experiência, a cultura não pode ser capturada pelo Estado, muito menos pelos governos de plantão. Continua a pulsar, sempre.

A língua é essencial, mas não opera sozinha. A cultura artística cumpre função semelhante e às vezes até mais importante. Ela ajuda a plasmar nossas marcas civilizatórias, com suas virtudes, seus sucessos e seus fracassos.

A literatura é uma preciosa forja de vida comum e identificação, desde suas expressões mais “simples” (como o cordel, por exemplo) até as produções mais “sofisticadas”. Machado, Lima Barreto, Graciliano e Jorge Amado, para citar alguns bem conhecidos, não somente deram representação estética às experiências existenciais dos brasileiros, como os ajudaram a adquirir consciência de si.

O que seria do brasileiro sem a música, em suas múltiplas manifestações singulares, regionais, étnicas, de época, de classe social? Como nos reconheceríamos sem o cinema, o teatro, a televisão, as artes plásticas, estas últimas estruturadas por escolas que vão do naïf e do primitivo aos topos do concretismo e da arte abstrata? Como estaríamos sem artistas ativos, envolvidos nos temas de sua época, nos embates públicos, que colam sua prática à dinâmica sociopolítica, contribuindo para que se formem redes de identidades?

Como intelectuais, os artistas não são um agregado à parte, independente, embora tenham suas particularidades. Estão inscritos nos conflitos e contradições da sociedade, têm raízes nos grandes grupos sociais e lidam com os mesmos interesses que demarcam a sociedade. Isso leva a que tomem partido. Numa época de redes, indústria cultural de massas e mídia intensiva, os artistas se destacam ainda mais, muitos viram estrelas de primeira grandeza, são solicitados e se engajam em múltiplas causas.

Mas “ir aonde o povo está” não significa instrumentalizar as manifestações artísticas, despojá-las de significado geral ou rebaixá-las ao cumprimento de ordens de quem quer que seja. Também não dispensa o artista de traduzir adequadamente o mundo e a dinâmica política em que se respira. Não pode ser algo movido por impulsos ou identificações simples. Se a época é de fluxos incessantes, a arte não pode correr o risco de se tornar igualmente fluida e efêmera. Deve permanecer buscando dar sentido à vida, captar o duradouro, mapear tradições: fazer-se cultura.

Um livro recentemente publicado pela Editora Terceiro Nome mostra bem como se pode dar esse encontro da arte com a vida. Trata-se de uma homenagem feita pela historiadora Rosa Artigas à mãe, a desenhista, gravurista e pintora Virgínia Artigas (1915-1990). Organizado com capricho, o livro nos apresenta uma figura singular, dona de rara sensibilidade e de uma energia cívica contagiante. Virgínia produziu muito, mas não chegou a ter uma visibilidade à altura do seu talento, em parte porque esteve sempre casada com Vilanova Artigas, o genial arquiteto comunista, e com ele amargou perseguições, prisões e exílio, em parte porque sempre fez questão de cuidar da casa, proteger a própria família, sem desistir de se engajar em causas cívicas. Fazer arte, para ela, não significava habitar uma torre de marfim. Implicava, literalmente, sujar as mãos: comprometer-se.

Não é por acaso que a produção de Virgínia Artigas está repleta de ilustrações, desenhos e cartazes feitos para os jornais do Partido Comunista, para greves operárias e manifestações do movimento feminista ou pela anistia. A temática social e os retratos predominam em sua pintura. A artista trabalhou tanto nessa agenda congestionada e exigente que sua criação pessoal acabou ficando fora do circuito das galerias e do mercado de arte.

Em Virgínia Artigas: Histórias de Arte e Política, a historiadora traça uma trajetória de vida à moda intimista, “por dentro”, a partir de suas próprias reminiscências. São histórias muito bem escritas – sensíveis, bem-humoradas, ora amargas, repletas de personagens heroicos e pessoas comuns – que mostram a artista de corpo inteiro, dividida entre os cuidados domésticos, a pintura e a militância política, lutando para preservar uma produção artística à margem do trabalho que fazia para partidos e movimentos políticos. Vivia cercada de jovens, que a procuravam atrás de conselhos e orientações. Seus desenhos, muitos dos quais estampados no livro, mostram a beleza e a força de sua arte.

Conhecer essa artista singular, que atravessou o século 20 angustiada pelos problemas da época, funciona como um sopro de oxigênio num momento em que parece faltar ar. Revela-nos o poder da política e da empatia afetiva na atividade artística. É um grito de alerta contra o obscurantismo que domina o governo central e deseja enquadrar os intelectuais por tudo o que fazem em defesa da cultura.

Se viva estivesse hoje, Virgínia estaria pedindo ao movimento democrático que trabalhe para que se definam as tarefas da inteligência e se elaborem políticas para a cultura, de modo a valorizá-la de modo pleno e blindá-la contra os ataques e as seduções do poder. Muito provavelmente concordaria com a ideia de que nos piores momentos, quando tudo parece bloqueado, também germinam grandes saídas, que trazem a cultura consigo, sempre.

*Professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Riscos desnecessários

Acima de tudo e de todos, deve-se evitar que o País degringole e fique sem opções

Falando sem parti pris, o problema político dos brasileiros não é termos um governo de direita ou extrema direita, nem ser Jair Bolsonaro um fundamentalista retrógrado. O problema é que o presidente não conhece o País, não respeita princípios democráticos básicos e não deseja governar. Estamos correndo riscos desnecessários.

Desde sua posse o País depende muito mais do empenho da Câmara dos Deputados que do Poder Executivo. Falam mal dos parlamentares, mas sem eles teríamos tido um semestre trágico, estaríamos mergulhados numa sequência de bravatas, provocações e ofensas promovidas por Bolsonaro e seu entorno, que parecem dispostos a tratar todos como inimigos.

Combater a esquerda e o PT é legítimo e aceitável, mas é uma patifaria quando feito na base de mentiras e agressões. A direita e a esquerda fazem parte da vida, o revezamento delas no governo dos países é normal, saudável e produtivo. Liberais, conservadores e socialistas são famílias políticas essenciais, filhos legítimos da modernidade e de suas transformações no correr do tempo. Querer eliminar um deles com argumentos de autoridade é ir contra a lógica das coisas e os parâmetros democráticos de civilidade.

Debochar de brasileiros do Nordeste, agredir ativistas, professores, artistas, intelectuais e jornalistas, ameaçar a cultura e a educação com a imposição de “filtros” que não passam de censura, tratar a ciência com desprezo, beneficiar o próprio filho – tudo isso, verbalizado com escárnio, faz a Presidência da República evaporar como instância de organização do País e se transforme numa trincheira de combate.

Agindo assim, o presidente prejudica o País e a população, além de criar dificuldades para si próprio. Sua guerra ideológica contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil exaspera os parlamentares, aumentando os custos da transação política na aprovação de medidas e propostas governamentais. Enfraquece as instituições e os órgãos públicos, varrendo-os para a margem. Suas ações não são “folclóricas”, inocentes, mas ferem princípios básicos e fazem o País andar para trás, na educação, na cultura, na política internacional, nos direitos, na saúde, no meio ambiente, na economia. Impactam negativamente a sociedade, fomentando divisões que não ajudam o País a enveredar por uma trilha de progresso, justiça e bem-estar.

Um presidente que se comporta como se fosse chefe de uma facção, não mede as palavras, confunde o público com o particular, move-se pela emoção imediata e por cálculos improvisados é uma tragédia anunciada. Poderá sobreviver ao mandato, e até prolongá-lo, mas de seu período governamental não sairá um País melhor, uma sociedade mais coesa ou um Estado administrativo mais eficiente.

Em vez de nos ajudar a superar a polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ele a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita.

Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 de forma inquestionável, cristalina. Mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo que fez de valores religiosos e moralistas, sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.

Sua vitória, porém, também foi conseguida porque a esquerda petista se mediocrizou e a esquerda democrática não conseguiu abraçar o campo liberal-democrático e, junto com ele, virou farinha, que engrossou o pirão da extrema direita. Foi uma vitória do senso de oportunidade combinado com incompetência política. Sem isso o resultado teria sido diferente.

A vitória eleitoral, no entanto, não deu a Bolsonaro o direito de se comportar como o tirano platônico que se deixa dominar pelos desejos mais baixos e por seus demônios internos, postos em movimento pela paixão que aguça a imoderação. Numa República democrática o presidente deve ser um agente da moderação, um construtor de consensos, um promotor do diálogo coletivo. Tem suas preferências, seu credo e seu mapa de navegação, mas não está autorizado a agir por impulso, conforme uma rotina passional que só produz caos e confusão.

A conduta errática e acrimoniosa de Bolsonaro ainda não levou a sociedade à convulsão. Em parte porque só se passaram seis meses, em parte porque a população tem conseguido manter alguma coesão, em parte porque o Congresso tem governado o País, construindo consensos e tomando decisões estratégicas.

Faltam entrar em cena os partidos, os movimentos cívicos e os cidadãos ativos perfilados no campo democrático progressista. Até agora, eles parecem trabalhar nos bastidores, em silêncio, dando até mesmo a impressão de estarem a hibernar A oposição que orbita o PT não consegue produzir propostas e entendimentos, limita-se a mimetizar com sinal trocado a conduta presidencial, valendo-se de uma retórica igualmente passional, que divide e inflama a população. Em vez de se lançar com coragem no mar aberto da renovação procedimental e discursiva, aferra-se a mitos e atitudes defensivas, refratárias ao moderno que se renova em direções inesperadas, surpreendentes e desafiadoras.

Temos de girar a chave e abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Pode ser que se tenha de ajudar o governo a governar, a cometer menos erros e a causar menores prejuízos. Não há por que ter preconceito contra isso. Acima de tudo e de todos deve estar a preocupação de evitar que o País degringole e fique sem opções. Resistir é preciso, mas sem medo de olhar para a frente e ousar, correndo riscos que valham a pena.

 


Marco Aurélio Nogueira: A educação como valor permanente

Professor Jorge Nagle morreu amargurado com a situação educacional brasileira

Consta que Bertolt Brecht, numa de suas magistrais tiradas, escreveu: “Não basta ter sido bom quando se deixa o mundo, é preciso deixar um mundo melhor”.

Não são muitas as pessoas que mereceriam o elogio implícito na frase. Fazer o mundo melhor é difícil, requer talento, determinação e resiliência, passa pela habilidade de reunir colaboradores e pela sabedoria de modular o tempo, para que as mudanças amadureçam e seus frutos sejam conhecidos e valorizados.

O professor Jorge Nagle, que faleceu no último dia 21 de junho, aos 90 anos de idade, foi uma dessas pessoas. Deixou marcas fortes por onde passou, graças ao estilo agregador e à coragem de enfrentar circunstâncias adversas.

Nagle foi um apaixonado estudioso da educação. Com a publicação de sua tese de livre-docência (1966), Educação e sociedade na Primeira República, tornou-se uma referência na história da educação paulista.

A escola pública foi seu foco permanente, na versão republicana que tanta dificuldade teve (e tem) de se fixar no Brasil. Sua utopia era a existência de uma escola para todos, livre de imposições ideológicas ou religiosas e de influências políticas espúrias: uma escola que interagisse com a sociedade e contasse com um sistema administrativo eficiente, mas que em nenhum momento minimizasse a dimensão técnico-pedagógica, intelectual.

Graduado em Pedagogia pela USP em 1955, Nagle foi docente e diretor da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) do câmpus de Araraquara da Unesp. Foi de lá que partiu sua longa carreira. Tornou-se professor titular e atuou na linha de frente das discussões sobre a escola e a educação, o que o fez receber do governo federal, em 1993, a medalha da Ordem Nacional do Mérito Educativo, condecoração criada para premiar personalidades com serviços excepcionais prestados à educação brasileira.

Nagle foi um líder. Em agosto de 1984 chegou à Reitoria da Unesp. O momento era difícil. A reabertura democrática avançava, mas a universidade ainda vivia sob o comando de interventores nomeados pelo governo estadual. O clima interno era de conflito. O governador Franco Montoro queria mudar a situação e pressionou o Conselho Universitário da Unesp para que o ajudasse a fazer isso. Dos professores titulares que integravam o órgão, nem todos dispunham do respaldo acadêmico indispensável e da vocação administrativa exigida pelo cargo. Nagle se diferenciava e foi indicado pelo governador para, na condição de reitor pro tempore, acalmar a universidade e preparar o conselho para a escolha de um dirigente sintonizado com os novos tempos. Meses depois, por indicação do conselho, o governador o nomeou.

A Reitoria de Nagle fez a Unesp deixar de ser uma reunião de faculdades isoladas. A atuação do reitor magnetizou professores e servidores, redefinindo procedimentos, incentivando a criatividade e a iniciativa acadêmica, aproximando áreas e câmpus. Nagle cercou-se de professores para auxiliá-lo e em sua gestão surgiram o Jornal da Unesp, a Editora Unesp, a Fundação para o Desenvolvimento da Unesp, o câmpus de Bauru, o Instituto de Física Teórica. Foram anos de um dinamismo que revolucionou a universidade.

Em 1988, Nagle foi secretário de Ciência e Tecnologia, cargo que lhe possibilitou participar em posição privilegiada do processo de obtenção da autonomia administrativa e financeira pelas universidades estaduais paulistas, decretada em fevereiro de 1989.

Com seu estilo sereno e reservado, fez-se presente no circuito da educação, da ciência e da tecnologia. Presidiu o Conselho Estadual de Educação, integrou o Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Conselho Federal de Educação. No final da década de 90 ligou-se à Universidade de Mogi das Cruzes, na qual coordenou o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ensino e presidiu o Comitê de Ética em Pesquisa. Também integrou o Conselho Superior da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Em todos esses ambientes, bateu-se pelo que chamava de “credo pedagógico”, uma aposta no valor permanente da educação. Como observou a professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP, Nagle foi acima de tudo “um artífice do espaço público na educação”.

Nagle morreu amargurado com a situação educacional brasileira. Hoje, quando os setores governantes menosprezam a educação pública, intelectuais como ele farão falta. Estamos carentes de lideranças que revigorem o sistema escolar e projetem a educação para o plano estratégico. Faltam-nos políticas educacionais que enfrentem os desafios da era digital em que nos encontramos.

Jorge Nagle fez parte de uma geração marcada pela preocupação em construir instituições sólidas, pelo rigor e pela envergadura ética e moral. Foi com essa bagagem que atuou para que a Unesp se tornasse realidade. Para ele, uma universidade honra seu nome quando funciona como uma “comunidade de destino” e compartilha saberes e experiências, não quando exibe posições em rankings e índices de produtividade.

Percursos institucionais não são feitos só de glórias e vitórias. Também conhecem derrotas e tropeços, momentos de refluxo nos quais se constata certa fadiga de material e uma perda momentânea de foco. Não foram fáceis os anos de arranque da Unesp, assim como não são fáceis os dias atuais para o ensino superior brasileiro. Professores como Jorge Nagle enfrentavam esses momentos com determinação e liderança intelectual, buscando reunir o que cada instituição tinha de melhor, com base em valores democráticos.

Talvez não consigamos mais segui-los nesse particular. Nossa vida institucional se individualizou e se fragmentou demais, dificultando ações coletivas e agregações superiores. Mas podemos muito bem tê-los como referência, buscar neles a inspiração e a energia para prosseguir em condições razoáveis de temperatura e pressão.

* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Moro mergulhou de cabeça nas armadilhas da política

O juiz Sérgio Moro fez um cálculo equivocado quando aceitou ser ministro de Jair Bolsonaro. Em vez de ganhar força para impulsionar a luta contra a corrupção e abrilhantar sua biografia, assinou um pacto com o diabo: mergulhou de cabeça nas armadilhas da política, sem ter o devido preparo para isso. Logo ficou evidente sua dificuldade para lidar com políticos, partidos e pressões.

Foi um erro provocado pelo desejo de inscrever o nome na história. O juiz deve ter achado que, a partir de Brasília e com o apoio do presidente, garantiria um fecho grandioso à carreira (o Supremo Tribunal Federal) e completaria o trabalho da Operação Lava Jato.

Só que no meio do caminho havia algumas pedras. O governo Bolsonaro não aprumou e a classe política, “empoderada” com os vazios deixados pelo Executivo, passou a monitorar os movimentos ministeriais. Contra Moro, em particular, ergueu-se uma barreira formada pelos adversários da Lava Jato, dos interessados em “Lula livre” aos preocupados em livrar a própria pele. Um desejo de “vingança” passou a conspirar contra o ministro da Justiça.

As conversas hackeadas entre Moro e os procuradores da Lava Jato dramatizam a situação e fornecem munição para que os ataques recrudesçam. O ministro da Justiça e Segurança Pública terá agora de ficar dando explicações constrangedoras.

As conversas não parecem ter força para fazer a roda da Lava Jato retroceder ou para desmanchar a montanha de provas, depoimentos e julgamentos que atestam o tamanho da corrupção no País. Mas, soltam fumaça e levantam uma nuvem de suspeita difícil de ser dissipada.

No fundo, o erro originário de Moro explica a turbulência que atinge uma operação que se imaginava blindada contra os efeitos da política. A Lava Jato nunca primou pelo respeito cego às práticas jurídicas consagradas. O ativismo que adotou esteve sempre sub judice. Para justiçar os políticos, seus operadores foram fazendo política contra a política, confiando no aplauso das multidões e, depois, no respaldo do presidente da República, que jamais se consumou.

Acontece que Bolsonaro também é político e não se caracteriza por ser criterioso na relação com amigos e inimigos.

* Professor titular de teoria política da Unesp


Marco Aurélio Nogueira: Fumaça, ruído e desertos

Presidente não percebe que sua atuação corrói a República ao esvaziar a atividade política. Ou...?

O que faz um governo eleito governar?

A resposta canônica é conhecida, mas nem sempre é praticada. Consta de três pontas.

Em primeiro lugar, apoio social, expresso na manifestação eleitoral dos cidadãos, mas reproduzido ao longo da gestão. Votos que elegem nem sempre são os votos que sustentam os atos governamentais ou coonestam as atitudes do governante. São colhidos em muitos cestos e orientados por variadas escolhas, até a de impedir a vitória de alguém. Precisam ser organizados enquanto se governa. É a batalha da legitimidade. A tentação de permanecer em campanha após a eleição demonstra o medo do eleito de perder os apoios manifestados nas urnas, muito mais do que a pretensão de conquistar novos. Sem novas adesões, porém, restringem-se suas condições de futuro.

Em segundo lugar, uma boa equipe de governo, um bom Ministério, com adequada estrutura de pessoal, técnica e gerencial, sem o que o governo não terá como formular propostas, levá-las à execução, controlá-las, avaliar o que consegue realizar. Em sociedades complexas, com Estados avantajados e repletos de atribuições, a equipe de governo responde por boa parte do sucesso. Ministros pouco qualificados, estranhos às suas pastas, guindados ao primeiro plano com pretensões eleitorais ou em busca de prestígio são tão perniciosos quanto ministros que se prestam a funcionar como meras extensões do chefe (e de seu partido, se for o caso) ou como lobistas de segmentos da sociedade.

Em terceiro lugar, capacidade de articulação política e disposição para construir consensos parlamentares, algo decisivo em qualquer situação. Num regime presidencial como o brasileiro, por exemplo, por suas características, isso implica manter uma agenda aberta à interação com dezenas de partidos e grupos de parlamentares, dialogar com governadores e corporações, movimentar-se para ouvir demandas, auscultar os humores políticos, conceder entrevistas. É o trabalho principal do chefe, que só em pequena dose pode ser delegado a auxiliares, posto que a parte nobre, mais pesada, dependerá sempre da palavra final e da modelagem do vértice superior.

Essas três pontas sofrem o efeito do que se poderia chamar de “carisma” do chefe do governo. Quanto mais brilho próprio e trajetória heroica tiver um presidente, por exemplo, mais facilidade terá de municiar a articulação política ou converter apoios eleitorais em apoio político. Sua capacidade de comunicação e sua clareza de visão estratégica são fundamentais para dar coesão e rumo à equipe de governo. Presidentes ou chefes sem dotes políticos costumam infernizar a vida dos assessores e contribuem demais para o desgaste da imagem governamental.

Considerando a situação brasileira, pode-se dizer que o governo Bolsonaro conta somente com a primeira dessas pontas. E mesmo aí não de forma perfeita, tanto que “continua em campanha”, sem conseguir ampliar sua base social e conquistar novas adesões. Seus índices de popularidade não estão subindo, mas declinando, e o governo, para tentar sair do isolamento, chega mesmo a impulsionar uma mobilização de rua para manifestar apoio social, o que pode piorar ainda mais a situação.

Sua promessa inicial era compor uma equipe avessa ao intercâmbio parlamentar e integrada por técnicos qualificados. O Ministério formado, porém, não corresponde a isso. Flutua ao sabor de jatos de personalismo, de fanatismo hidrófobo, de subserviência à camisa de força ideológica e nefasta de provocadores estranhos à vida nacional.

Alguns ministros funcionam, mas a maioria vive a bater cabeça e a tartamudear. Os filhos do presidente intrometem-se em tudo, distribuindo cotoveladas em ministros, aliados e parlamentares. A ideologia, processada em dimensão obscurantista e paranoica, intoxica o discurso do Executivo, atritando os demais Poderes e abrindo fendas profundas no que deveria ser a coesão governamental. Como consequência, impossibilita a ampliação dos apoios, a negociação das propostas no Congresso, a criação de um clima “positivo” que abra espaço para a atuação “construtiva” do governo.

Ainda que haja indícios de que falte inteligência política ao governo, não se trata de um governo irracional. Há nele uma dose de cálculo, um estilo de atuação, uma opção por certas armas de combate no lugar de outras. É um governo que faz escolhas, sendo a principal delas a da hostilidade como procedimento, método com o qual cria crises e inimigos para justificar sua falta de ação e, ao mesmo tempo, agregar sua base mais fanatizada. A “velha política” e a oposição de esquerda seriam, para ele, a expressão de um sistema que não permitiria governar.

A hostilidade como procedimento tem mantido o governo em campanha, mas não o faz governar. Cria fumaça e ruído, produz problemas sucessivos e nenhuma solução, destrói sem construir, como se seu programa fosse mais negativo do que positivo. Vai assim demolindo pontes, envenenando áreas, erodindo a sociabilidade, criando desertos por onde passa. Oferece em troca tão somente a promessa redentora do “mito”, a cavalo de um Deus confuso e vingativo.

O resultado é que o componente propriamente bolsonarista do governo continua do mesmo tamanho, se não menor. Permanece heterogêneo e sem coesão, sem estrutura organizacional, dependente de bots e ativistas digitais, falando consigo próprio. Mantém-se, na verdade, como uma seita, que tem seus ritos e símbolos, seus devotos, sua máquina de descobrir traidores e inimigos a cada dia.

No caso brasileiro, o horror e o espanto crescem na opinião pública. O governo desfila sua indigência e nada entrega, a crise econômica se aprofunda, a ético-política se prolonga. O presidente não percebe que sua atuação corrói a República ao esvaziar o principal mecanismo que a dignifica, a atividade política. Ou estaria ele querendo precisamente isso?

 


Marco Aurélio Nogueira:A ignorância como critério de gestão

Reduzir investimentos em cursos superiores de Humanas é o novo despropósito do governo

Bolsonaro na área da Educação. A ideia é focar em cursos que preparem os alunos para o mercado de trabalho. Além de caolho, o pressuposto é preconceituoso e ignora a relevância das Humanidades na vida atual.

O presidente usou sua conta no Twitter para dizer que haverá um corte de investimentos nas faculdades brasileiras de ciências humanas. Repetiu o discurso do novo ministro da Educação, que anda afirmando que “a função do governo é respeitar o dinheiro do pagador de imposto” e, por isso, o ensino deve se voltar para a disseminação de “habilidades” que ajudem os jovens a entrar no mercado de trabalho.

Para o governo, “poder ler, escrever e fazer conta” é o mais fundamental. Exclui-se, desde logo, o saber pensar, o saber conviver, o saber apreciar o belo. O pragmatismo é rasteiro, na doce ilusão de que a educação garantirá a aquisição de ofícios que “gerem renda para a pessoa e bem-estar para a família delas”, melhorando a sociedade.

A postura governamental ignora alguns fatos elementares. Antes de tudo, parece pressupor que os gastos das Humanidades ultrapassam os gastos com as demais áreas científicas e acadêmicas, quando todos sabem que a verdade está do lado oposto: dos cerca de R$1 bilhão investidos em pesquisa no Brasil, somente 160 milhões vão para as Ciências Humanas. O governo economizará pouquíssimo caso deixe de injetar dinheiro nas faculdades de Humanas.

O argumento orçamentário, portanto, não procede, deixando evidente que a intenção do governo é de outra natureza: ele acredita que as Humanas são um reduto das esquerdas, uma espécie de “foco subversivo” permanente. Despreza o pluralismo que vigora nessas áreas e ignora por completo a dimensão cívica, técnica e cultural das Ciências Humanas, que são vitais seja para o aprimoramento da língua e a formação reflexiva, seja para a investigação dos graves problemas sociais do País, como a desigualdade, a pobreza, a violência.

É difícil acreditar que alguém, ao final da segunda década do século XXI, não valorize a contribuição que a sociologia, a ciência política e a antropologia têm dado para a compreensão das sociedades e a abordagem dos múltiplos temas socioculturais. Sem elas, nenhum diagnóstico pode ser concluído, nenhuma política pública consegue ser formatada, executada e avaliada. A própria diversidade brasileira fica à margem, sem consideração adequada.

Numa época de complexidade crescente, demonstra ignorância e alienação quem procura rebaixar as ciências que podem se valer de perspectivas transdisciplinares para atingir a totalização crítica da experiência humana e a valorização da vida.

Alguém poderia dizer que o governo deseja imprimir marca tecnocrática à sua política educacional. Antes fosse, ao menos o caminho seria desastroso mas conhecido. O governo, porém, quer deslizar mais para baixo, abandonando qualquer tipo de filosofia educacional. Mistura problemas pedagógicos com organização acadêmica, privilegia a caça à esquerda em vez de apresentar planos e propostas para melhorar o ensino superior, faz crítica ideológica sem qualquer avaliação de desempenho.

Ainda que concentrada nas Humanidades, a perspectiva governamental mostra-se hostil ao conjunto da vida universitária. Coube ao ministro da Educação a façanha de ameaçar as universidades que permitirem a ocorrência de “balbúrdias” em seu interior, expressão genérica que pode se referir a tudo ou a qualquer coisa.

Ao atropelar a autonomia das universidades e comprimi-las com cortes e pressão, o governo exibe sua face arbitrária e destemperada. Demonstra ignorância e vontade de agredir tudo o que pode fazer pensar. Parece muito mais interessado em produzir fumaça e provocar do que em administrar o sistema universitário brasileiro e proteger as atividades de pesquisa e produção de conhecimento.

As Humanidades não podem ser suprimidas por decreto, indispensáveis que são à compreensão da vida social e à organização de um ensino superior de qualidade. O governo não sabe o que fazer nem com a Educação Básica, nem com o ensino universitário. Falta-lhe tudo o que é indispensável para a gestão de sistemas estratégicos: senso de proporção, inteligência crítica, equilíbrio, temperança, respeito à diversidade. Prefere coagir, sem se dar conta de que, ao assim proceder, está a destruir tudo o que já se construiu no País em termos educacionais. Não colocará nada no lugar, a não ser provocações. Sua maior contribuição será semear pânico e confusão.

A brutalidade governamental esbarrará na lógica dos fatos e na resistência de professores e estudantes. De agressão em agressão, preparará o caos, sem se dar conta de que nem sequer ele mesmo poderá disso se beneficiar.

 


Marco Aurélio Nogueira: Prende e solta Temer é ajuste de contas do MP com o sistema político

Se a prisão de Michel Temer e Moreira Franco pegou de surpresa o mundo político, embora fosse dada como certa, a decisão do desembargador Antonio Ivan Athié de soltá-los era esperada, mas não deverá causar maior rebuliço no já caótico quadro político nacional.

Ela pode acalmar um pouco os políticos, antes de tudo o MDB, e, com isso, contribuir para baixar a temperatura política, em elevação desde que cresceu a tensão entre Legislativo e Executivo e aumentaram as críticas à inoperância de Bolsonaro. Se tiver sucesso, ajudará a introduzir mais racionalidade no exame das medidas propostas pelo governo, a começar da reforma da Previdência.

Um segundo efeito se associa à disputa entre setores do Judiciário e a Lava Jato. A prisão de Temer foi uma declaração de que a operação continua viva, após derrota sofrida com a decisão no STF de remeter crimes de caixa 2 à Justiça Eleitoral. Prender Temer sem o devido processo legal foi passo ousado, mas torto, do juiz Bretas, dado para indicar onde estão os focos de resistência à operação.

A decisão de Athié se apoiou no respeito às garantias constitucionais, mas foi proferida por alguém com trajetória problemática. E deixou um flanco desguarnecido ao dizer que não é contra a Lava Jato. Elogiou a operação, mas a criticou por se basear em “caolhas interpretações”.

O prende e solta de Temer se insere no processo de ajuste de contas do MP com o sistema político. O momento atual é tóxico, tende a contaminar tudo. Não ajuda para que a luta contra a corrupção avance com inteligência estratégica e republicanismo, cedendo demais a erros de cálculo, personalismos e radicalizações, o que só contribui para prolongar o caos reinante.

 


Marco Aurélio Nogueira: Combustão interna

Impulsionado pelos filhos do presidente, governo parece disposto a atirar nos próprios pés

Crises fazem parte da vida dos governos. No âmago deles se acomodam, invariavelmente, interesses diversificados, grupos de pressão, ideias conflitantes e indivíduos picados pela mosca do poder, que embriaga a todos. Harmonias são compostas à custa de esforço e determinação, na dependência da presença de líderes qualificados para unir e agregar. Quando se desfazem, põem-se em campo os apaziguadores, apaga-se o incêndio sem a certeza de que um novo não irromperá mais à frente.

Mas crises agudas não são comuns nos primeiros dias de um novo governo, quando tudo deveria fluir com naturalidade, mesmo que com dificuldades. A lua de mel com a opinião pública, a expectativa positiva dos que elegeram os governantes e a legitimidade do presidente contribuem para dar ao novo grupo uma chama de entusiasmo e vontade que ajuda a neutralizar as disputas internas.

Crises nos primeiros dias causam desconfiança. Sugerem que um barco foi lançado ao mar sem rumo claro e desprovido de um capitão em condições de manejá-lo. O barco vaga à deriva em alto-mar, rangendo nas tempestades, sem conseguir evitar escolhos e ondas fortes. A tripulação deixa de se entender, os passageiros ficam inseguros e o próprio comandante, anestesiado e confuso, acaba por ajudar o desentendimento a proliferar.

Os atritos e divergências que têm agitado o governo Bolsonaro desde o início não se devem tão somente ao “fogo amigo” ativado pelos filhos do presidente. O protagonismo do clã complica demais a ação governamental, mas precisa ser avaliado em conjunto com a confusão intrínseca ao bloco de forças que elegeu Bolsonaro e que não parece reunir condições de sustentá-lo e de auxiliá-lo a se encontrar consigo mesmo.

As eleições de 2018 transcorreram num contexto inusitado. Diferentemente do que se passara nos tempos da redemocratização e se prolongou durante os governos de FHC, Lula e Dilma ao menos até 2013, a política deixou de ser ativada por partidos políticos ou movimentos organizados. PMDB, PT e PSDB foram tragados por novas dinâmicas, marcadas por inflexões “anárquicas” e muito espontaneísmo, tudo devidamente turbinado pelas redes. O quadro de fragmentação e polarização política contribuiu tanto para esfacelar o campo democrático quanto para impossibilitar que a sociedade discutisse com cuidado os principais problemas do País e as propostas dos candidatos, que acabaram assim por se perder.

Bolsonaro venceu graças a um desejo de mudança que ficou sem opção com a desagregação dos grandes partidos e com a incapacidade das forças democráticas de oferecer propostas e candidaturas sedutoras aos eleitores.

O governo formou-se sem um programa claro e reunindo pedaços de um caótico movimento mudancista que vinha da sociedade e repercutia na política. Assentou-se sobre um arranjo submetido à pressão de quatro focos de poder, cada um buscando agendar o presidente: os filhos, os economistas de Paulo Guedes, os generais e a equipe de Sergio Moro. A disputa entre eles despontou já no período de transição e foi-se amplificando na medida em que Bolsonaro se sentiu obrigado a cumprir suas polêmicas “promessas de campanha” e chamou para auxiliá-lo um agregado de figuras menores, encarregadas de fazer fumaça e reverberar a retórica ideológica, grosseira e moralizante que ajudou a eleger o presidente.

Em vez de cuidar da governança, o núcleo mais engajado do governo optou por permanecer em campanha, comprando brigas e fazendo inimigos. O governo foi assim se inchando de ideologia e de disputas, ficou pesado e sem agilidade. Complicou-se, ainda, com a proliferação de ataques à imprensa, manobras familiares, futricas e bate-bocas virtuais, que contaram com a participação do próprio presidente. Abriram-se vazios inadequados. A própria base parlamentar governista, que se imaginava seria formada pelo PSL, mostrou fragilidade e passou a criar embaraços, dado que cresceu sua expectativa de ocupar cargos e obter vantagens.

Formou-se desse modo uma tendência a que o grupo mais bem organizado - o dos generais - adquirisse maior protagonismo e tentasse chamar a si a missão de “enquadrar” o governo, ocupando espaços e buscando incrementar a coordenação governamental. A demissão de Gustavo Bebianno fez se acenderem as luzes de alerta, pelas razões que a motivaram, pelo modo como foi feita e pelas consequências que deverá ter. Os militares são bons em coordenação, mas não têm intimidade com a política, que é o fator que mais pesa no momento.

Crises assim precisam ser compreendidas como situações repletas de implicações e desdobramentos, que no limite podem ser paralisantes e catastróficos. Revelam estilos de atuação, modos de resolver pendências internas e absorver pressões. No caso em questão, a crise revelou um governo atarantado, sem um projeto comum ou um programa claro de atuação, sobrecarregado de adrenalina e emoção. Tenta compensar sua inoperância política com o pretexto de que está a organizar uma governança sui generis. Não está propriamente enfraquecido, pois sua retórica inflamada e suas promessas conservadoras ainda mantêm ativas as bases sociais que o elegeram. Mas são flagrantes sua má qualidade gerencial e sua dificuldade de ganhar estabilidade.

Impulsionado pelo protagonismo raivoso e paranoico dos filhos do presidente, o governo parece disposto a atirar nos próprios pés, como se isso fosse prova de ousadia e destemor. Sem base parlamentar confiável e limitado, no plano social, a apoios negativos (contra a “esquerda” e o “marxismo”), flerta com o desentendimento permanente e com uma combustão interna que poderá inviabilizá-lo ou levá-lo a um endurecimento extemporâneo, que não o ajudará.

Ninguém sairá ganhando se esse quadro se estender no tempo ou virar rotina. Acima de tudo e de todos, perderão o País, a população e a sociedade.

 


Marco Aurélio Nogueira: Almas e demônios

Rasgam-se importantes mapas de navegação que poderiam dar ao governo alguma direção

Entenda-se a metáfora com espírito aberto e generosidade: governos costumam ter alma. Os melhores caracterizam-se por ter uma consistente, que lhes dá força, coesão e audácia nos campos político e administrativo. Os piores, ao contrário, vivem sem eixo.

Como não são integrados por anjos, mas por homens, mulheres e partidos, com suas paixões, suas idiossincrasias e seus apetites, governos sempre tendem a se dividir em pedaços, pequenas almas que competem entre si pelas luzes da ribalta, pelos aplausos do público, pelos mimos do chefe. Somente uma alma que se destaque e se imponha – uma anima magister – consegue domar os demônios que brotam do cotidiano governamental. Tem sido assim em todos os governos, dentro e fora do Brasil.

O Estado e, sobretudo, a sociedade sofrem quando são governados por governos desprovidos de alma: sem um programa, um núcleo coordenador, um partido ou uma liderança inconteste, qualificada para fazer que prevaleça uma direção. Por não saberem que rumo tomar, governos sem alma agem por impulso, por espasmos, ao sabor dos interesses parciais que nele preponderam e nem sempre coabitam. Deixam assim de poder cumprir a missão que deles se exige. No limite, vivem em turbulência, aos solavancos, espalhando crises por todos os lados. Natural que, nessa situação, tudo o que acontece de problemático em seu interior reverbere no exterior, desgastando-lhes ainda mais a imagem.

Passados 26 dias de sua posse, o governo Bolsonaro não mostrou ter uma alma. Falta-lhe quase tudo: programa, projeto de País, discurso, comunicação, temperança, conhecimento do terreno, prudência, capacidade de articulação, quadros técnicos e políticos competentes. Exceção feita às áreas da Economia, da Justiça e de Infraestrutura, o restante é um amontoado de figuras menores, com mentalidade provinciana, que falam pelos cotovelos, mas dizem pouco, como se tivessem, repentinamente, caído do céu para realizar uma tarefa que desconhecem e para a qual não foram treinadas. A improvisação dá o tom.

Os ataques ao “globalismo” feitos em nome de uma “Pátria soberana” que abaixa a cabeça para os poderosos do mundo são acompanhados de um esforço contumaz para desmontar os pilares institucionais, éticos e políticos da política externa brasileira. Desprezam as perspectivas que trabalham pela construção de um sistema internacional mais cooperativo e sustentável, livre de muros e barreiras ideológicas. O presidente disse em Davos que praticará uma política econômica de abertura e acima de ideologias, ao passo que seu ministro do Exterior se derrama em pregações ideológicas e fala em fechar o País aos “globalistas”. É uma dentre várias dissonâncias.

Entoar a cantilena autoritária da “caça aos marxistas” nas escolas só serve para ocultar a falta de um plano de ação que se dedique a recuperar o sistema escolar. A política educacional desponta com um vezo moralista e conservador que ignora as graves deficiências que minam a educação brasileira. Há, também, falas ministeriais despropositadas, sem pés nem cabeça, feitas como se estivessem referidas a outro tempo histórico e a um País datado.

Estão a ser rasgados importantes mapas de navegação, que poderiam dar ao governo alguma direção. Desprezam-se tradições consolidadas, práticas administrativas bem-sucedidas e atitudes políticas que contribuíram de forma decisiva para erguer o Brasil moderno que conhecemos e, no momento inaugural de um novo governo, serviriam de base operacional e fator de equilíbrio. Submete-se assim a máquina governamental a um estresse perigoso, fazendo-a funcionar com uma bomba-relógio amarrada ao corpo, a marcar o estouro da próxima crise.

A população torce para que o novo governo acerte. É a maior interessada em que isso se concretize e sabe que é preciso dar tempo ao tempo, não atropelar as coisas, não pedir o impossível. Mas o governo não se ajuda. Como será quando o jogo começar para valer, daqui a poucos dias, com o novo Congresso devidamente empossado e funcionando a todo vapor? A articulação política e o desempenho técnico que não existiram no primeiro mês serão ainda mais indispensáveis e o governo precisará encontrar, em seu interior, uma dinâmica que o auxilie a modelar sua alma e a domar seus demônios.

Não é por acaso que setores do governo, incentivados, ao que parece, pelos generais e pelo vice-presidente Mourão, começam a se mexer para blindar o presidente das estripulias de seus filhos e dos efeitos do caso Flávio Bolsonaro e para reforçar a agenda positiva na Economia e na Justiça, as únicas áreas que demonstram ter, até agora, capacidades executivas. Procuram assim emprestar uma alma ao governo, no mínimo para lhe fornecer um mínimo de capital político para lidar com o Congresso e a opinião pública.

A extrema direita que sustenta o governo parece por ora imune aos conflitos e tensões que espocam no seu interior. Demonstra tanta autoconfiança que se dá ao luxo de descuidar do fundamental. Continua em campanha, quando precisa governar. O excesso de confiança, nesse caso, produz arrogância e exagero nas relações com o poder, rei de todos os demônios.

O governo ainda tem tempo, pode aproveitar a lua de mel dos primeiros meses. Mas o bloco que o sustenta parece ter uma solidez mais aparente que real. Beneficia-se, em boa medida, da inoperância oposicionista, ainda sofrendo as dores da derrota do centro-esquerda em outubro, que desbaratou e desorientou seus grupos e partidos. É um quadro que não se prolongará no tempo. No momento em que a vida política recuperar o fôlego e os democratas liberais e progressistas voltarem a se movimentar com desenvoltura, será, então, a hora de ver quanto o governo avançou ao encontro de si próprio, modelando uma alma que o guie e oriente, ou se permanecerá atormentado pelos demônios de que não consegue se livrar.


Marco Aurélio Nogueira: O bode expiatório

O que está por trás dos ataques dos bolsonaristas ao chamado “marxismo cultural” e como isso pode empobrecer a democracia e prolongar a crise do sistema político

Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala.

Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.

A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.

A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.

Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate. Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.

O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.

Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.

A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.

Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.

Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Tudo isso não se deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje. Tanto quanto o pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares, fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos, diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a dialética chama de unidade na diversidade.

O fato é que não houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.

Em seus escritos, muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites. Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso. O debate sério sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo, sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que aprisionou os comunistas durante décadas.

Paradoxalmente, a cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o debate pode fluir de forma democrática.

É o que faz o antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle, reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos, suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula. Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma ideologia.

O ataque ao “marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus, transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita conservadora chegou tão longe.

Não se trata de um ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de “macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.

Afinal, o combate ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.

O desdobramento disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre menos técnicos.

Na hipótese de essa parábola se completar, perderemos todos.


Marco Aurélio Nogueira: O ano de Marx

O antimarxismo atual não conhece Marx, é pura ideologia, opera por sobre a espuma levantada pelas disputas em torno das ideias marxistas

Não seria necessário que diversos integrantes do futuro governo Bolsonaro insistissem na ideia de “libertar o Estado brasileiro do marxismo cultural” para que se percebesse que um espectro voltou a circular no Brasil em 2018.

Esse espectro atende pelo nome de Karl Marx, filósofo e ativista político alemão (1818-1883), um dos fundadores do comunismo moderno e patrono da mais influente teoria política contemporânea.

O mundo comemorou, ao longo de 2018, os 200 anos de nascimento de Marx. Registros feitos por inúmeros seminários, congressos científicos, livros, artigos, filmes e entrevistas dedicaram-se a homenagear o pensador alemão e a verificar em que medida suas teses continuam a dialogar com a realidade do mundo atual. O balanço foi positivo, mostrando que Marx, em que pese o incontornável desgaste sofrido com a passagem da história, permanece vivo como intérprete do nosso tempo e, em particular, das transformações do capitalismo.

O Brasil não ficou fora das comemorações, mas terminou o ano com o reposicionamento político dos inimigos de Marx, concentrados agora no combate ao “marxismo cultural”, entendido como a disposição de ocupar totalitariamente os espaços públicos via controle da cultura e de suas instituições, da escola à imprensa e às artes, tudo devidamente concentrado em cercear a liberdade de pensar e falar, modelar mentes e impor agendas inadequadas à sociedade (gênero, aborto e clima, por exemplo). Na versão simplória corrente, essa preponderância do “marxismo cultural” estaria a impedir a “regeneração nacional” e a contaminar os diferentes âmbitos da vida familiar e do Estado, indo da escola à política externa.

O antimarxismo dos nossos dias não conhece Marx, não leu seus livros nem as análises de seus intérpretes. É pura ideologia, que opera por sobre a espuma levantada pela circulação das ideias marxistas e pelas disputas ideológicas em torno delas. O que lhe falta de rigor filosófico e conhecimento histórico é compensado por uma combatividade histriônica que pouco se importa com o que Marx realmente disse ou com o significado de suas proposições. Despreza tudo o que o marxismo trouxe de contribuição crítica – por exemplo, sua teoria sobre o funcionamento do capitalismo – para vê-lo exclusivamente pela lente do militante revolucionário, devidamente desfocada. É um antimarxismo inquisitorial, que pressupõe que as ideias de Marx seriam tóxicas a ponto de impregnar aqueles que delas se aproximam, como um vírus.

Os antimarxistas teriam muito a aprender, por exemplo, com o livro do cientista político alemão Michael Heinrich, “Karl Marx e o Nascimento da Sociedade Moderna”, uma alentada pesquisa em 3 volumes que começou a ser publicada no Brasil pela Editora Boitempo. A obra não é um panegírico e trata Marx de maneira fria e realista, situando-o na sua época e vendo-o sem qualquer mitificação. O pressuposto é simples: cada geração desenvolverá uma nova perspectiva em relação à vida, à obra e ao significado de Marx, conforme as transformações das condições históricas.

O nosso tempo trouxe consigo um Marx já bastante processado criticamente, saturado, manipulado de muitas maneiras. Já foi responsabilizado pelos crimes do stalinismo, por ditaduras, assim como já foi santificado e posto num pedestal como profeta da emancipação definitiva da humanidade. O Marx com que lidamos hoje é bem diferente daquele das décadas finais do século XX. As novas gerações o veem como um “clássico”, não como o mestre infalível da revolução, até porque a própria ideia de revolução se alterou bastante. A reprodução das condições gerais do capitalismo, porém, dão a ele uma atualidade que muitos outros clássicos não têm.

O primeiro volume do livro de Heinrich – assim como outras biografias mais recentes – nos ajuda a inserir Marx na história e a vê-lo em sua pujança filosófica, em seu desejo de liberdade, em sua adesão progressiva ao humanismo materialista, em sua relação com a dialética de Hegel. É um Marx que assiste ao amadurecimento do mundo moderno e começa a interpretá-lo.

Mais tarde, já depois de ter escrito com Engels o famoso Manifesto Comunista, Marx sai da Alemanha, passa por Paris e Bruxelas até se instalar em Londres. É o Marx mais conhecido, autor de O Capital. Crítica da economia política e de ensaios políticos, ativista do nascente movimento socialista. O Marx que passará para o século XX será sobretudo esse, devidamente incorporado primeiro pela cultura da socialdemocracia alemã e, depois, do comunismo soviético, do qual se espalhará pelo mundo.

Diferentemente do que pensam os antimarxistas atuais, o marxismo continua a nos ajudar a compreender o mundo do capitalismo globalizado, mesmo que esse capitalismo seja mais potente e diversificado, disposto na vida como um sistema global irresistível, muito distante do capitalismo do século XIX, que Marx visualizava como fadado a ingressar numa crise terminal.

Mas não é preciso admitir o fim do capitalismo para concluir que esse sistema todo-poderoso não conseguiu até agora apaziguar suas contradições ou evitar crises recorrentes de natureza sistêmica. Desse ponto de vista, Marx errou e acertou. Suas descobertas não só foram incorporadas ao modo moderno de pensar a vida, como são fundamentais para que consigamos decifrar o estado em que se encontra a Humanidade ao final da segunda década do século XXI.

Estar em crise não significa estar à beira da morte. O capital tem conseguido avançar mediante o processamento de seus limites e contradições, usando isso para alavancar novos ciclos de expansão. Tem sido beneficiado, paradoxalmente, por três coisas: pela desorganização da sociedade de classes, pela democratização derivada das lutas sociais e da ampliação progressiva das margens de liberdade, o que paradoxalmente esfriou o desejo de revolução, e pela incapacidade prática da utopia marxista (a organização consciente da produção social) de se traduzir efetivamente no terreno da vida cotidiana. Há planejamento, racionalização e regulação, mas a economia continua fora de controle, fazendo com que o sistema econômico despeje seus custos sobre as costas dos mais frágeis e desprotegidos, os desempregados, os trabalhadores precários, os migrantes e refugiados, os excluídos de todo tipo.

As ideias de Marx, nesse sentido, mantiveram-se como uma advertência para o sistema. Revelaram suas entranhas, sua face perversa e desumana. Permaneceram como uma espécie de “demônio antissistema” a desafiar o coro dos contentes.

O marxismo profetizou uma revolução do proletariado, que não teve como se realizar. Onde ela foi tentada os resultados deixaram a desejar. Depois da queda do Muro e do fim dos “socialismos reais”, a partir de 1990, ficou a impressão de que o marxismo desfalecera irremediavelmente. Tornou-se usual falar que “Marx estava morto”. No primeiro momento, Marx foi deslocado para a margem. Lá, porém, permaneceu a latejar. Continuou a ser consagrado e tratado de modo “religioso” por um séquito de milhares de cabeças, mas no terreno do pensamento tornou-se muito mais profano e laico, passando a receber tratamento mais distante e bem comportado, não como profeta de uma revolução política que não ocorreria, não como inspirador de movimentos e partidos, mas como impulsionador de uma visão abrangente do mundo. Marx perdeu algo de sua potência contestadora mas se manteve como passagem obrigatória para qualquer atitude interessada em se debruçar criticamente sobre a sociedade.

A permanência de Marx deixou de ser alimentada por certos recursos de reprodução simbólica e de narrativa revolucionária. Os partidos operários de primeira e segunda gerações – o movimento operário histórico – foram soçobrando e assumindo outras características, nas quais Marx e Engels não podiam seguir como “patronos”. Os Estados comunistas desapareceram. A linhagem construída pela tradição tradicional foi posta em xeque, e Marx deixou de ser o primeiro de uma sequência que passaria “obrigatoriamente” por Engels, Lênin, Trotsky, Stalin, Mao e Fidel, além, evidentemente, dos secretários-gerais dos partidos comunistas. O “marxismo-leninismo” simplesmente evaporou. Heterodoxos de todo tipo ganharam a luz do dia e se projetaram. Foi assim com Lukács, Rosa Luxemburg, Kautsky, Korsch e, sobretudo, Gramsci – todos eles comunistas e marxistas, mas invariavelmente atacados pela ortodoxia como “revisionistas”.

A dissolução dessa cultura reverencial fez bem ao marxismo. Tornou-o mais livre para ser examinado criticamente, atualizado e revisto com critérios científicos. O marxismo perdeu a aura sagrada que tinha antes, mas suas ideias-força incorporaram-se ao pensamento prevalecente. Não só passamos a aceitar o poder de determinação da economia, por exemplo, como nos tornamos mais “totalizadores” e dialéticos, enxergando a sociedade como um complexo composto de complexos, no qual tudo interage com tudo o tempo todo. A concepção ético-política do marxismo não teve a mesma disseminação, mas no conjunto o pensamento de Marx mostrou-se vitorioso.

Nada disso pode ser eliminado como se fosse um dejeto do passado. O marxismo, sua história e seu significado precisam ser, ao contrário, devidamente assimilados, parte da cultura moderna que são. A inquisição antimarxista atual, porém, não dispõe de envergadura teórica, sabedoria e inteligência democrática para se por criticamente diante de Marx e de seu legado. Opta, por isso, pela estigmatização pura e simples, com o que chega a uma caricatura do marxismo que só faz rebaixar o nível de um debate que precisa ser mantido e proliferar.


Marco Aurélio Nogueira: Um ano para a oposição mostrar seu valor

Requerem-se iniciativas que sejam claramente democráticas, abertas, laicas, flexíveis

Depois da derrocada política, ideológica e eleitoral da esquerda democrática, do centro e da esquerda petista, os perdedores terminam 2018 amargando os efeitos de sua desarticulação. Procuram juntar os cacos. O vendaval bolsonarista abalou cálculos e personagens da democracia brasileira. Abriu uma espécie de caminho de volta.

Passadas as festas de fim de ano, terá de haver muita reflexão e ação.

PSB, PDT e PCdoB movimentam-se para organizar um arranjo político que funcione como bloco no Congresso e sirva de plataforma para deslocar o centro gravitacional das esquerdas, afastando-as tanto quanto possível do PT. Os petistas, por sua vez, terão de deixar de girar em círculos, abandonando a narrativa do golpe e da perseguição.

Ao mesmo tempo, o PPS e a Rede abriram conversas para examinar a possibilidade de uma articulação que abrigue os desejos de renovação de ambas as correntes políticas, juntamente com movimentos cívicos surgidos nos últimos anos.

Por entre esses dois mundos flutuam políticos e ativistas originários do PSDB, do MDB, gente da esquerda pragmática, petistas realistas, tucanos incomodados com a guinada direitista do partido, pessoas sem vínculos partidários – todos preocupados em encontrar uma porta por onde passe uma agregação que cumpra funções de ordem prática e ideal.

Haverá quem trabalhe para que as três iniciativas acima mencionadas, ou ao menos duas delas, convirjam no médio prazo em direção a um ponto comum. E haverá quem pense que nenhuma delas tornará viável uma oposição propositiva, consistente e vigorosa ao próximo governo federal.

No fundo, estão todos convencidos de que os partidos existentes já não dão conta da situação e precisarão agir de outra maneira, quem sabe, extraindo de seu interior os germes da própria superação, rumo à formação de um novo movimento político.

Estão aí as dificuldades. Alguns falam em fortalecer o que tem sido chamado de “centro radical”, outros cogitam de um “centro” sem adjetivações adicionais, há quem pense em termos de “centro-esquerda” e outros, por fim, acreditam que não se deveria trabalhar com a ideia de “centro”, imprecisa demais, mas de social-democracia.

Os nomes importam. Se se quiser ter um novo posicionamento das forças democráticas brasileiras, a ideia de “centro” é preciosa, mas precisa ser adequadamente processada, qualificada com rigor. Sem isso dificilmente exibirá face rejuvenescida e não conseguirá desvencilhar-se do que já se tentou fazer no passado, sem grande sucesso. Sem isso terá reduzido poder de sedução, enfraquecendo-se perante a opinião pública e a esquerda democrática, que tem peso próprio não desprezível em termos de concepções políticas e valores.

Um “centro radical” é uma proposição engenhosa, no sentido atribuído à expressão pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas carece de formatação. Poderia ser mal interpretada como opção por um posicionamento “radicalmente de centro”, isto é, algo que não é nem esquerda nem direita: um muro não muito largo onde só haveria lugar para políticos pouco atentos à questão social e aos direitos humanos, concentrados na reforma da economia e do Estado em sentido fiscalista e gerencial, mais dedicados a futuros embates eleitorais e parlamentares do que ao diálogo com a sociedade.

Não seria um “centrão”, mas sua identidade ficaria ofuscada, inviabilizando-se para dialogar com as multidões e, acima de tudo, com as novas gerações, que não querem mais do mesmo. Não é o que pensa FHC, mas o risco de a ideia se perder nas nuvens é real.

Qualquer “centro” que queira cumprir uma função positiva no Brasil atual terá de infletir para a esquerda. Não em termos ideológicos, mas em termos programáticos, valorativos. Terá de se distanciar da esquerda anacrônica, aprisionada ao século 20, e abraçar uma esquerda que saiba decifrar o século 21 e ativar os valores da democracia, da liberdade, da igualdade, da justiça. Precisa ser mais progressista que reformista, voltar-se mais para o social que para o econômico, atacar com determinação a desigualdade, ser capaz de temperar seu moderantismo com boas doses de generosidade social e combatividade democrática.

Chamá-lo de “centro” não ajuda muito. Antes de tudo, porque carrega um pecado de origem, o da imprecisão.

Não se trata de um problema nominalista. Em política estamos sempre à procura de selos que identifiquem e, ao identificarem, auxiliem a produzir apoios e adesões. A política democrática é uma arte dedicada a unir, mas também a distinguir e diferenciar: somente se unem partes que têm clareza do que são e aceitam a dosagem de seus interesses particulares em nome de um interesse comum.

Para enfrentar o furacão direitista que sacudirá o País nos próximos anos e que, à primeira vista, fará isso conforme as regras do jogo, necessitamos de um polo democrático progressista o suficiente articulado para se abrir à direita liberal e à esquerda democrática, a reformistas moderados e a socialistas, a liberais, verdes e sustentabilistas. Um polo que entre firme no século 21, abandone dogmas e roteiros já experimentados, disponha-se a elaborar uma nova teoria da sociedade nacional e a enfrentar com determinação os graves problemas do País.

Requerem-se iniciativas que sejam claramente democráticas, abertas, laicas, flexíveis, com capacidade de expansão e de negociação, que reverberem no Parlamento e nos ambientes da sociedade civil, compondo o que há de vida ativa no Brasil atual sem concessões desnecessárias à direita, à esquerda e ao centro. Nada disso é obra de curto prazo.

Que 2019 represente, para os democratas, a abertura de uma fase nova, na qual se compreendam as carências acumuladas, os erros cometidos e se prepare o terreno para o amadurecimento de uma oposição política que traga consigo o futuro.