Luiz Sérgio Henriques: A má política dos mitos

Vivêssemos a polarização da guerra fria, a crise brasileira já teria tido um desfecho previsivelmente catastrófico

Vivêssemos a polarização da guerra fria, a crise brasileira já teria tido um desfecho previsivelmente catastrófico. É duvidoso que os atores do passado pudessem ter plena consciência do que faziam, mas o fato é que, falso ou verdadeiro, o fantasma do comunismo, ou da República sindicalista, foi mais do que suficiente para mobilizar nesta parte do mundo uma violenta reação em 1964, assim como em outras partes, como na Hungria de 1956 ou na Checoslováquia de 1968, forças de sinal contrário se impuseram, esmagando resistências e impondo soluções igualmente repressivas.

Bandeiras vermelhas ou gestos do comunismo, como o punho fechado, podem até continuar presentes, mas serão expressões sobretudo retóricas, ainda que possam prenunciar autoritarismos de tipo diferente dos do passado, que eram ou pretendiam ser “totais” em sua oposição ao mercado e à democracia “burguesa”. Um subperonismo será sempre possível e merecerá combate aberto de quem preza as liberdades, mas deve-se reconhecer que não há propriamente componente antissistêmico no petismo.

Daí que não haja nenhum paradoxo no fato de que a força de Lula, consolidada em um terço do eleitorado, derive fundamentalmente de um amplo – e em si mesmo razoável – programa de extração neoliberal, que abrange dezenas de milhões de compatriotas prisioneiros da miséria. Como é do conhecimento geral, o governo “golpista” não o extinguiu e não se vislumbram forças que queiram fazê-lo. Por isso mesmo, é irrazoável, aí, sim, que tenha servido para a construção do potente mito lulista, em vez de ser tomado como política pública do Estado democrático, com as qualidades e os defeitos de qualquer política.

Em que pesem as grandes mudanças do novo século, esquerda e direita não são posições inúteis ou anacrônicas, embora possam perfeitamente se comportar como tal. Na grande crise de agora, uma parte considerável decorre de escolhas do ator e da fragilidade de seu repertório. No caso do PT, a escolha do populismo, traço muito presente na tradição latino-americana em seu conjunto, representou pesada hipoteca, a implicar a identificação do líder (yo, el supremo) com o povo-nação, a desqualificação das oposições e o desprezo pelas mediações institucionais.

A degradação em larga escala do Parlamento – como o atestou há alguns anos o julgamento da correspondente ação penal pela Suprema Corte – esteve incluída nessa escolha. A sofreguidão para construir narrativas “heroicas”, como aquela que viu o impeachment de um mau governo como “golpe”, lançou raízes insólitas. Afinal, o golpe teria prosseguido com os subsequentes problemas judiciais do homem providencial, a quem seria lícito, entre outras coisas, adotar uma atitude de confronto permanente com o Judiciário e qualquer sujeito ou instância que considere “golpista” ou responsável por seus males.

O anacronismo petista não ficaria sem consequências. Mito por mito, a extrema direita também pode muito bem construir o seu, em sintonia com as pulsões radicais que passaram a percorrer o mundo a partir de Donald Trump e de várias forças nacionalistas europeias, anteriormente à margem da política de seus países. Múltiplas e variadas têm sido as explicações para a ascensão desse tipo de político no coração de democracias seculares e aparentemente protegidas da demagogia populista de direita, com suas conotações racistas, xenófobas e culturalmente regressivas. Insiste-se bastante, por exemplo, no apoio de massas que hoje consegue obter a defesa da economia nacional enfraquecida com as deslocalizações industriais, a livre movimentação dos fatores de produção e outras características do globalismo economicamente liberal.

O mito brasileiro da extrema direita tem uma trajetória compatível com esse quadro. Observado ao longo de sucessivos mandatos sem maior brilho, o que por si só deveria embaçar o rótulo de alheio à “casta” dos políticos, a nova figura mítica tem um desempenho que a enquadra na falange direitista do nacional-estatismo, salvo conversão de última hora ao ultraliberalismo do hipotético ministro da Fazenda que apresenta aos mercados. Na verdade, a recentíssima pregação ultraliberal, além de se chocar com os sinais de origem do candidato, promete-nos a construção de “uma grande sociedade aberta”, tomando como alvo uma suposta hegemonia social-democrata a partir de 1988.

Em função dessa promessa se segue pelo menos uma segunda contradição. Não há como dissociar a extrema direita nacional das manifestações análogas que varrem o Ocidente democrático. Traço distintivo de todas elas, naturalmente adaptado às situações locais, é uma orientação cultural retrógrada. A estratégia é semelhante em todos os casos: trata-se de contestar com histrionice, mobilizando os medos alojados no senso comum, as situações mais extremas e indesejadas produzidas pelo “politicamente correto”.

De fato, a correção política, decorrente da mistura global de pessoas e culturas, pode ser instrumento valioso de convivência ou derivar para a reivindicação de identidades exclusivas, em permanente conflito. Fácil demais explorar essa fragilidade, apresentando um imaginário mundo hierarquicamente ordenado em termos de raça, gênero e classe, que liquidaria a diversidade e o próprio conflito. A dificuldade é compatibilizar a retórica autoritária própria de tal estratégia com a grande sociedade aberta, tolerante e pluralista, em torno da qual todos nos poderíamos reunir.

Organizar a política na forma de mitos tem sido uma característica moderna, exponenciada numa época, como a nossa, que parece requerê-los com fúria e intensidade. Podem até ser inevitáveis em certa medida, mas, sejam quais forem as ideologias envolvidas, abandonarmo-nos a eles de modo imprevidente significa abrir as portas para o fanatismo que hoje costuma ser metodicamente organizado.


Luiz Sérgio Henriques: Futebol e política

Dia de Brasil e Copa do Mundo na outrora distante Rússia, hoje próxima pelas artes mágicas da revolução digital

Dia de Brasil e Copa do Mundo na outrora distante Rússia, hoje próxima pelas artes mágicas da revolução digital. Por décadas a Meca do comunismo, que viria por meio de outra revolução, a proletária, a Moscou de agora é um dos bastiões de um iliberal capitalismo de compadres, com perturbadores toques mafiosos. Impossível não levar a sério o tema esportivo, entrelaçado à política, uma vez que nós, bem ou mal, infame goleada alemã à parte, continuamos a sentir familiarmente vazio o País nas tardes de domingo, como na bela canção mineira do Milton. Aqui ainda é o país do futebol, o que sucede nas quatro linhas captura magneticamente nossa atenção, mesmo que prodígios como Garrincha e Pelé não possam surgir como numa esteira fabril dos tempos do fordismo.

Outro motivo para despertar a atenção é que o futebol está longe de ser uma paixão banal, como uma perspectiva ultraintelectualista sugere. Parábola do homem comum a roçar os céus – apregoa o verso de outro poeta –, o futebol firmou-se como o esporte de massa por excelência num século que viu a ascensão, as conquistas e as tragédias desse mesmo homem comum reunido em grandes grupos sociais, como as classes, ou em coletividades nacionais, que muitas vezes forneciam as bases de um sentir que ia além de quaisquer fronteiras particulares – incluídas as de classe.

Aos poucos, e um pouco por toda parte, o football perdia sua aura estrangeira e aristocrática, enraizava-se em cada realidade nacional, insinuava-se até no vocabulário, com seus goals e seus backs, offsides e corners. A novidade levava de roldão a oposição de homens excepcionais, como o romancista Lima Barreto, que torcia o nariz para aquele esporte esnobe que lhe parecia chocar-se com sua percepção do que era, ou devia ser, o elemento popular e nacional. Em outras latitudes, cenas igualmente surpreendentes aconteciam. O filósofo Benedetto Croce, por exemplo, considerava inexplicável a paixão futebolística e ainda mais inexplicável o contentamento que uma vitória do Nápoles lhe causava...

Antonio Gramsci – sim, ele mesmo, o tal solerte intelectual que, segundo concepções paranoides, hoje substitui o russo Lenin no bizarro arsenal de fantasmagorias subversivas – não deixou por menos.

Como se sabe, implicava acidamente com sua Itália presa nas malhas de uma política mesquinha e provinciana, que a seu ver agia de modo “transformista”, trazendo socialistas e anarcossindicalistas para as coalizões de governo, não sem antes emasculá-los e deles retirar todo o potencial para mudanças efetivas. Pois um dos ideais gramscianos era o liberalismo anglo-saxão. A Itália – dizia em 1918, depois da revolução bolchevique! – não seria afeita a esportes, mas ao preguiçoso e insalubre baralho. E o futebol, ao contrário, parecia-lhe a melhor expressão de uma sociedade individualista e competitiva, mas submetida a regras e obediente aos árbitros.

No pequeno texto O futebol e o baralho (inserido no primeiro volume de seus Escritos Políticos, organizados por Carlos Nelson Coutinho), Gramsci vitupera os truques desonestos, o ar empesteado, o ambiente malsão dos jogos de cartas. Cabeças quebradas e até mortes derivavam como que naturalmente desse modo de jogar e se divertir – na verdade, uma metáfora para sociedades em que o passado nunca passa, atrofia a vontade dos vivos e impede o surgimento da novidade histórica, a saber, a modernidade liberal, que, para usar os próprios termos do pensador, traria em si, como expressão mais coerentemente universal, o socialismo e o comunismo.

De acordo com essa visão, afirmada na atmosfera triunfante da Revolução Russa, com todo o seu cortejo de sonhos e ilusões acerca da regeneração total do homem, não podia haver nenhuma barreira da China entre o liberalismo e seus críticos marxistas mais contundentes. Sem nada conceder a uma visão irenista das sociedades humanas, ignorando conflitos e contraposições muitas vezes de difícil ou impossível composição, o fato é que, como entre nós tem afirmado repetidamente o antropólogo Roberto DaMatta, o futebol ensina ser inconcebível a ideia de destruir o adversário, já que sem este, obviamente, não há jogo nem campeonato, nem vitória nem derrota.

Os extremos políticos estão obviamente distantes da generosa ideia de que as disputas, que serão quase sempre duríssimas por envolverem paixões e interesses demasiadamente humanos, podem e devem se desenvolver num ambiente de regras democraticamente estabelecidas e de lealdade a valores e instituições minimamente comuns. Neste instante mesmo, ao nosso redor, as fúrias estão desatadas e contê-las ou colocá-las à margem, para que não prossigam em sua obra corrosiva, parece um daqueles inacreditáveis trabalhos de Hércules.

Mas as forças que se dispuserem a serenar ânimos pseudorradicais, desarmar falsas rebeliões antidemocráticas e apontar rumos positivos para a sociedade se credenciarão a um papel verdadeiramente histórico, tornando-se credoras de todos os brasileiros razoáveis.

Sociedades, para usar a linguagem da filosofia, são formadas por complexos de complexos que remetem incessantemente uns aos outros. Cruzam-se tradições culturais e políticas, misturam-se diferentes objetivações humanas nas artes, nas ciências ou nos esportes. Adversários, Garrincha e Pelé protagonizaram jogos lendários entre seus respectivos times e foram imbatíveis na seleção brasileira.

Intelectuais de campos diferentes, Croce e Gramsci se sobrepuseram e contrapuseram na análise fina daquilo que chamavam de esfera ético-política. Se bem pensarmos, mesmo observando atores e cenários inteiramente diferentes, não terá sido outra a intenção de um grande intelectual conservador do século 19 ao escrever que “nosso antagonista é nosso auxiliar”.

É preciso pensar mil vezes nesta última frase, semeá-la por aí e lutar para que dê frutos.


Luiz Sérgio Henriques: Caminhante, não há caminho

Estes itinerários que Alberto Aggio sugere, com a competência habitual, levam ao coração de alguns dos mais importantes processos políticos contemporâneos, e não só do Brasil. É verdade que nas páginas iniciais somos lançados de chofre em nossas turbulentas ruas que, a partir de 2013, desmancharam a ilusão de uma idade de ouro que nos teria trazido, por inesperadas artes demiúrgicas, progresso econômico e distribuição de renda em ritmo quase linear – a pedra filosofal finalmente encontrada –, a prefigurar um domínio político que, na cabeça de seus dirigentes mais expressivos, não deveria se alterar significativamente por muitos anos à frente.

No entanto, seguindo o traçado aqui proposto reaprendemos mais uma vez que não há linearidade possível na política e na história. “Se hace camino al andar” – diz o poema famoso, e assim foi que as ruas brasileiras em 2013 e, depois, no biênio 2015 e 2016, desafiaram o quadro idílico e trouxeram desafios interpretativos que ainda agora nos atormentam. Intérpretes mais apressados não tardaram em formular hipóteses de regresso institucional e cultural, como se estivéssemos diante de uma ressurreição poderosa da “direita” após a experiência globalmente exitosa de quase quatro períodos presidenciais em linha com o “nacional-popular”, de resto presente em outros contextos latino-americanos ainda mais problemáticos do que o nosso – haja vista, para não deixar nenhuma dúvida, a tragédia venezuelana que se arrasta penosamente sob nossos olhos.

Mérito do livro, em cada uma das peças que compõem seu mosaico, é o de escapar dos dilemas mais simples e até simplórios que nos rodeiam e embaçam uma percepção mais nítida. Longe da pseudodialética que tudo reduz a uma alternância mecânica entre “direita” e “esquerda”, ele nos propõe desde o início hipóteses ousadas, como aquela que se baseia no caráter hipermoderno da turbulência de nossas ruas, em que se defrontariam, sem muitas mediações, radicais processos de individualização e demandas por uma esfera pública mais transparente e menos sujeita às relações incestuosas entre donos do poder político e econômico. Diante de massas de indivíduos ativadas pelas redes sociais, não há no livro nenhuma concepção de regresso inevitável ou de desforra de classes médias intrinsecamente moralistas contra o presumido avanço popular, mas, sim, atores e eventos em fluidez, abertos para diferentes resultados possíveis, o que uma cultura política de esquerda ainda marcada pelo espírito “heroico” e “revolucionário” – pelo menos verbalmente – tem dificuldade de metabolizar teoricamente e adotar como motivação para suas práticas.

Esta inquietação das ruas, ora provisoriamente serenada, conta uma parte significativa da história presente e só por meio dela se explica. No poema de Antonio Machado, o caminhante é insistentemente advertido de que o caminho “son tus huellas [...] y nada más”. Neste sentido, alguns dos itinerários tracejados seguem de perto nossas marcas recentes no chão – as marcas da esquerda brasileira, esta que, sintetizada no lulismo e no petismo, fixou as rotas no largo período entre 2003 e 2016, respectivamente o ano inicial do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva e o da interrupção do segundo mandato de Dilma Rousseff. E, para nosso infortúnio, o inventário proposto por Alberto Aggio não tem nada de empolgante e menos ainda de tranquilizador: a experiência da esquerda no poder não terá contribuído para a renovação das instituições, oxigenando-as com a presença de uma nova elite dirigente, nem para a reativação da imaginação sociológica ou econômica, engessada que foi nos moldes estreitos do capitalismo de Estado.

De fato, ao longo daquelas rotas, nunca esteve em causa uma ruptura sistêmica – e, se por acaso tivesse estado, não é certo que seria desejável ou, ainda, teria o desfecho que o petismo idealmente pretendesse a ela imprimir. Revoluções “ativas” e irrupções jacobinas podem ser até fatos da vida, como afirma Luiz Werneck Vianna, mas perderam sua capacidade heurística ou, podemos acrescentar, sua função de instrumento para a instauração de qualquer tipo de socialismo teleologicamente definido. Nos modernos processos de mudança, o impulso de reconstrução é pelo menos tão importante quanto o da mera destruição abstratamente concebida e, para falar a verdade, só se muda aquilo que efetivamente se substitui, respeitados os requisitos postos pela concepção da política como hegemonia, como busca permanente e obsessiva de consenso, não como força ou constrição arbitrária.

Se isto faz sentido, era de esperar que o ator das reformas – a saber, o PT no poder e a densa rede de organizações na sociedade civil que há décadas lhe davam apoio – atualizasse na prática algo semelhante àquilo que há quase cem anos está presente no repertório gramsciano sob a rubrica de “revolução passiva”. Em sua primeira formulação, como se sabe, a revolução passiva ou revolução-conservação foi descrita como decapitação (política) do antagonista por parte das elites dominantes e assimilação, em lugar subordinado, das instâncias de renovação que ele postula, garantindo-se assim a neutralização da inovação histórica. Nas novas condições propiciadas pela democracia dos partidos e pelo voto universal, pode muito bem suceder que o ator das reformas (originalmente, o antagonista) assuma as rédeas do governo e se coloque como mola propulsora, mas não exclusiva nem essencial, de uma delicada construção de equilíbrios mais avançados na sociedade e no próprio Estado.

O poema que até agora nos guiou adverte o caminhante de que “al volver la vista atrás/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar”. Uma esquerda moderna e reformista, uma vez no poder, sabe os passos que não pode repetir se é que pretende explorar, nem que seja tentativamente, as virtualidades positivas da revolução passiva, agora acionada em sentido transformador. A pura e simples decapitação (política) do adversário costuma ser um passo em falso rumo à atrofia da dialética democrática, ao dificultar, entre outras coisas, a necessária alternância no poder ditada por eleições livres e competitivas. A eventual posse dos palácios de governo não deve dar lugar a ruminações sofísticas sobre a diferença entre “ter o governo” e “ter o poder”, como se estar de posse deste último implicasse encenar outra vez o ritual da estadolatria e da limitação das capacidades de auto-organização da sociedade civil.

Não se pode esquecer em absoluto que os itinerários de Alberto Aggio, ainda que incertos e não suscetíveis de definição a priori, apontam todos “para uma esquerda democrática”. Por sua própria natureza, não podem passar de esboços que indicam sobretudo os roteiros que conduzem a becos sem saída e que, por isso, devem ser evitados. Ressalvadas as enormes diferenças de contexto, na história pregressa dos socialistas o autor destes itinerários encontrará pontos de afinidade – além de Gramsci, seu santo de cabeceira – com o inventor do sugestivo lema de que o fim não é nada, o movimento (democratizador) é que é tudo. Ou, para nos valermos mais uma vez de metáforas, estejamos certos nós, caminhantes, de que “no hay camino/ sino estelas en la mar”. Em geral, os poetas têm razão.

- Prefácio do livro  Itinerários para uma esquerda democrática, de Alberto Aggio.

Saiba mais em:
FAP e Verbena Editora lançam Itinerários para uma esquerda democrática, de Alberto Aggio
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2018/05/18/fap-e-verbena-editora-lancam-itinerarios-para-uma-esquerda-democratica-de-alberto-aggio/


Luiz Sérgio Henriques: Karl Marx e o nosso tempo

O filósofo agora parece readquirir o poder de inspirar uma visão do ‘presente como história’

Benedetto Croce, de quem se dizia ser o “papa laico” da cultura italiana e o líder intelectual do liberalismo europeu na primeira metade do século 20, costumava afirmar, apesar de seu proclamado laicismo, que “depois de Cristo todos somos cristãos”. Tratava-se de uma forma refinada de admitir o que havia de efetivamente universal no cristianismo do Novo Testamento, que interpelava a consciência de todos os homens, mais além dos círculos de proximidade tribal ou territorial. Segundo Croce, querendo ou não, a partir de então passamos a ver o mundo como cristãos, como de resto ainda o vemos, independentemente de fé ou adesão a qualquer visão transcendental do mundo.

Essa percepção não vale só para um fenômeno tão extraordinário quanto a vinda de um Deus. Pensadores notáveis, radicalmente terrenos em sua busca de explicações para os fatos da vida, à sua maneira também deixaram uma marca da qual nem sempre nos damos conta, mas que está presente no espírito do tempo, moldando juízos e modos de ver até do homem comum. Karl Marx, por exemplo, cujo bicentenário ora se celebra, é um desses homens notáveis, cuja obra múltipla, fragmentada e contraditória, nascida no calor da revolução industrial movida pela máquina a vapor, parece ter sobrevivido a regimes políticos despóticos que, ainda por cima, não raro o trataram como uma espécie de oráculo infalível ou moderna divindade, capaz de resolver de uma vez por todas o enigma da História.

Inscreve-se nessa tradição desafortunada o discurso de Xi Jinping, o líder máximo chinês, por ocasião da solenidade em Beijing. O marxismo – ou melhor, uma de suas inúmeras versões burocraticamente definidas – aparece como o recurso de legitimação possível num país cujo ritmo espantoso de crescimento tem definido em grande parte a globalização, ao mesmo tempo que deixa em seu rastro índices não menos consideráveis de desigualdade. Para os que apreciam medidas objetivas, a desigualdade chinesa hoje se situa em nível comparável ao dos Estados Unidos, o que repõe como atual o pensamento de Marx nas duas circunstâncias, desde que tomado criticamente e, portanto, afastado de qualquer ideia grosseiramente igualitária da vida social.

Esse, aliás, é um ponto curioso a ser anotado em nossa época de contraposições entre opostos e combinados doutrinarismos. O Manifesto Comunista – que também passa por uma dessas datas redondas, publicado que foi em fevereiro de 1848 –, sem delinear a sociedade futura, imagina-a, contudo, fundamentada no livre desenvolvimento de cada indivíduo e só a partir daí concebe o livre desenvolvimento de todos. Esse caráter fundador da liberdade individual esteve evidentemente sufocado nas diversas experiências do socialismo real. E, se na China contemporânea vigora a liberdade do Homo oeconomicus, dando um poderoso sopro de vida aos “espíritos animais” do mercado, a esfera política continua sob o controle rígido do partido-Estado e seus “sacerdotes”. E como sempre nesses casos, o que se pode prever é uma crescente e insustentável distância entre a realidade das coisas e a retórica oficial, cada vez mais vazia e ritual. Em algum momento aquela realidade cobrará seus direitos.

O Manifesto, como já assinalado por vários estudiosos, contém passagens inteiras que, sem nenhum esforço de falsificação, soam como apologia do mundo que o capital criou e só hoje se explicita aos nossos olhos em sua unidade repleta de problemas. Nenhuma condescendência com as formas idílicas e pastoris de um passado supostamente livre de dilaceramentos. Nenhum espaço, portanto, para qualquer forma de “anticapitalismo romântico”, e terá sido esse um dos motivos pelos quais soluções buscadas em Marx – num certo Marx – seduziram os países atrasados, como a Rússia de 1917 e a China de 1949, que se viram como os “elos fracos” de uma cadeia mundial e enveredaram por caminhos – de fato, extremamente autoritários – de chegada ao mundo moderno, urbano e industrial.

Em tais contextos se potencializaram as carências políticas da teoria marxiana, presa como estava à ideia de uma classe universal que, por meios violentos, subverteria a ordem dominante, colocando em seu lugar, mais ou menos aceleradamente, uma sociedade sem classes e sem Estado – mas com um único partido de estrutura vertical, vocacionado para o controle material e ideológico. Nas sociedades atrasadas, assim, autocracia e acumulação primitiva deram-se as mãos. E todos seriam marxistas ou, mais apropriadamente, fingiriam ser.

Contudo nas sociedades avançadas do Ocidente, mesmo sem ter inicialmente uma noção elaborada das formas da política, o movimento operário, apoiando-se numa leitura “revisionista” do legado do filósofo, acabou por ampliar significativamente a base de massas dos Estados liberais, enriquecendo-os com novas e poderosas figuras que vigoraram por todo o século passado, a exemplo dos sindicatos e dos partidos social-democratas. Essas figuras, entre outras, deram força e sentido às modernas democracias constitucionais, hoje sob ataque concentrado de autoritários de direita e de esquerda.

Houve quem afirmasse, em outra circunstância igualmente hiperideologizada, que Marx e o marxismo constituiriam o horizonte insuperável do nosso tempo, a base de uma futura civilização integral. Décadas se passaram, mudou a estrutura do mundo, ruiu a maioria dos regimes que diziam encarnar a doutrina do filósofo. Este, agora, parece readquirir o poder de inspirar uma visão do “presente como história”, contribuindo, sem exclusividade, para desbloquear a imaginação social. Mas há uma novidade: o horizonte insuperável do tempo só pode ser o Estado Democrático de Direito, que contém em si as regras – inclusive procedimentais – que devem ser plenamente assumidas por uma esquerda que saiba aprender, ou reaprender, a conjugar liberdade e igualdade.


Luiz Sérgio Henriques: Populismos e democracia bloqueada

Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.

Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.

O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.

A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.

O sistema, assim, passou a funcionar simultaneamente sem transparência, limite ou controle da parte dos cidadãos. Alguém poderá argumentar, e terá razão, que se trata de práticas herdadas do passado, em geral tacitamente admitidas, e que o maior partido oposicionista, entrincheirado em dois dos principais Estados da Federação, teria sido responsável por criar e manter azeitados mecanismos de poder. No entanto, sem negar essa pesada responsabilidade, pode-se retrucar que o esquema petista exacerbou as irregularidades em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Não estávamos aqui diante de empreendimentos locais ou regionais, mas de um fenômeno que, pela primeira vez, chegava a ultrapassar as fronteiras do País.

Este último ponto merece atenção. Recursos financeiros e estratégias políticas se misturaram de modo explosivo por toda a América Latina, num tempo em que se passou a afirmar a hipótese problemática – para ser cauteloso – de certo “socialismo do século 21”. Bem pesadas as coisas, tratava-se menos de socialismo que de um ataque populista de esquerda à democracia representativa, de conteúdo diverso, mas formalmente não muito diferente dos ataques populistas de direita que assolam a Europa e a América do Norte e, infelizmente, também já não nos poupam.

Longe da melhor tradição comunista, evocada na figura de Berlinguer, o recurso expressivo típico desses populismos, na variedade de suas manifestações, é a retórica e a prática divisiva e confrontacional. Pretenderam cancelar o passado e refundar as nações, mas os resultados, uma vez no poder, foram medíocres ou catastróficos, como no caso venezuelano – veia aberta no continente. A técnica de construção de blocos de poder supostamente inamovíveis, exportada para os parceiros latino-americanos do petismo, tornou-se, contra a intenção de seus promotores, um verdadeiro teste de solidez das instituições democráticas, desafiadas a enfrentar subornos, escândalos e até crises de impeachment numa dezena de países.

Uma esquerda forte e plural é condição necessária, ainda que não suficiente, para a efetivação de uma agenda social digna do nome, bem como de um regime de liberdades que garanta essa agenda e seja por ela nutrido. Uma coisa nunca vai sem a outra: não há progresso social sem voto e democracia “formal”. Entre nós e esse caminho virtuoso ainda se interpõem os populismos de esquerda e de direita, que deveriam ser, mas não são, fato marginal ou lembrança do passado.
 


Luiz Sérgio Henriques: A crise latino-americana no espelho da Europa

Pouca ou nenhuma compreensão merecem aduladores de tiranetes terceiro-mundistas

Este tem sido um tempo de manifestos de intelectuais, no Brasil e fora daqui, a respeito dos problemas que nos acometem num ritmo quase de tirar o fôlego. Fácil demais, mas inútil, ironizar esse tipo de “literatura”, caracterizando-a como manifestação superficial de intelectuais sartrianamente engajados, para usar terminologia anacrônica, a respeito de caóticas situações de um Ocidente distante, posto na periferia do mundo e submetido, em passado não tão remoto assim, a golpes sangrentos e regimes de exceção.

Não se trata só de cálculo pragmático. Todo e qualquer democrata, seja de que tendência for, conhece o peso e a dimensão de um Jürgen Habermas ou de um Charles Taylor – para só mencionar dois nomes que, avalizadores da hipótese de golpe contra a democracia brasileira com o impeachment de Dilma Rousseff e os problemas judiciais de Luiz Inácio Lula da Silva, carregam consigo a capacidade de influenciar pessoas de bem nas mais diferentes latitudes. Não são “companheiros de viagem”, como se dizia outrora daqueles cujo apoio uma esquerda muitas vezes sectária aceitava transitoriamente, enquanto lhe serviam de um ponto de vista puramente tático. Na verdade, mais além do pragmatismo, o que dizem de certo ou errado, de profundo ou superficial, faz pensar nas relações entre cultura e política, nos meios e modos de recíproca influência entre duas esferas ligadas, mas irredutíveis uma à outra.

Se Habermas é um intelectual que estimula e inspira respeito, há, evidentemente, outros nomes cuja atitude diante não só do Brasil, como também da América Latina, dá margem a preocupação e a pessimismo. A virada à esquerda que marcou a política do subcontinente sulamericano na primeira década do novo século nem sempre foi acompanhada com sobriedade e mesmo seriedade. Tendências que se afiguravam desde o início autoritárias e potencialmente destrutivas foram saudadas por figuras públicas maiores ou menores como indícios de insurgência anti-imperialista, rebeliões populares contra o neoliberalismo, como se conviesse à esquerda reeditar, com sinal trocado, o doloroso passado de caudilhos e ditaduras de nuestra América.

A justiça social, assim, se imporia à força, em contraposição às formas de uma democracia estruturalmente vazia e oligárquica. Novos heróis libertadores elaboraram, ou tiveram quem por eles elaborasse, estratégias de refundação radical de seus países. Nas situações mais extremadas, a mistura de nacionalismo e militarismo criou o terreno para o surgimento do homem forte e providencial, acima das instituições, que, aliás, deveriam ser remodeladas segundo uma receita que pouco a pouco se espalharia – Constituintes (ou “prostituintes”) exclusivas, reeleições indefinidas, mecanismos plebiscitários de legitimação.

A Venezuela, o país vizinho e amigo que ora apodrece sob o chavismo e o madurismo, terá sido o exemplo mais acabado desse retorno tosco ao nacional-popular de outras eras. O bolivarianismo lançou ondas de choque por toda parte, hegemonizando o discurso da esquerda não só no entorno mais imediato. No reino restaurado do nacional-popular, um submarxismo não poderia deixar de se fazer presente, como quando o caudilho anunciou, com a megalomania característica, a criação de uma “V Internacional” em torno de seu país, a nova Meca revolucionária. Ou quando passou a exportar para a Europa – para alguns de seus políticos e intelectuais – as estratégias de uma esquerda de tipo populista, como suposto remédio para a crise – efetiva – da esquerda histórica. Que o diga o Podemos espanhol, que por aqui teve, e tem, seus admiradores.

O petismo, que poderia ter sido um contraponto a esse movimento, não raro foi um elemento a ele subordinado e, por isso, incapaz de se tornar a vanguarda do Ocidente político na subregião. Construiu uma mitologia global em torno de seu líder único, o que talvez seja agora um elemento de força para a agitação e propaganda em torno do “golpe branco” e do regime de exceção que teria imposto ao Brasil. Num tempo em que não só mercadorias transitam velozmente, mas também ideias e visões de mundo, estabeleceu pontes com a cultura europeia progressista, aproveitando-se, também nesse ponto, do caráter cartorial e provinciano das demais correntes partidárias internas. Conseguiu prodigiosamente manejar a linguagem bolivariana e a do socialismo reformista, que evidentemente considera como capitulação – ainda que, no poder, tenha praticado um reformismo errático e fraco, passivamente sustentado, como acontece a qualquer economia agroexportadora, no extraordinário dinamismo da “globalização chinesa” da década inicial do século.

Nada casual, pois, que intelectuais da área social-democrata, de sólido compromisso com as liberdades, subscrevam a versão petista da nossa crise. Num mundo ideal, grandes intelectuais não deveriam vir a reboque da política de uma facção – de qualquer uma delas. Deveriam ser mais amigos da democracia como um todo do que de um só partido, atitude que requer estudo, serenidade e análise refletida de mitos, mais além da imensa competência em seus campos específicos. Seja como for, trata-se de interlocutores preciosos, pensadores que defendem a razão neste tempo conturbado e não isento de perigos para todas as democracias, incluída aquela sob a qual vivemos ininterruptamente desde 1988.

Pouca ou nenhuma compreensão merecem os aduladores de tiranetes terceiro-mundistas de fachada revolucionária. A destruição da Venezuela é séria demais para que deixemos de cobrar responsabilidades de quem insiste em ver a América Latina como uma Sierra Maestra que não passa. Quanto à nossa esquerda, longe de projetar golpes e catástrofes, já era para ter ciência plena de que ciclos eleitorais vão e vêm, como é próprio das democracias normais, que, com toda a firmeza, deveríamos aspirar a ser.

 

 


Luiz Sérgio Henriques: A difícil identidade do petismo

Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo

Mesmo sem nunca ter tido a carga antissistêmica dos antigos partidos comunistas, o petismo, surgido essencialmente de um núcleo sindical moderno, vocacionado simultaneamente para o confronto e para a negociação trabalhista, continua a responder por boa parte das turbulências da vida brasileira nestes 30 anos de País redemocratizado. Por isso, constitui para intérpretes e comentaristas um desafio que se torna ainda mais agudo em momentos de espesso nevoeiro, como este que temos atravessado, com os fatos relativos a seu maior dirigente, novamente candidato presidencial contra todo e qualquer empecilho legal que lhe possa ser oposto, segundo a vontade reiterada dos organismos partidários e de sua “sociedade civil”.

Em vão procuramos a identidade daquele partido, pouco nítida mesmo após os sucessivos períodos à frente do Poder Executivo, interrompidos por um impeachment traumático. O controle de inúmeros governos municipais e estaduais, bem como as amplas bancadas legislativas, para não falar no lastro eleitoral consistente, parecem não ter trazido aquele mínimo de cultura de governo que caracteriza os agrupamentos conscientes de sua própria força e capazes, por esse motivo, de dirigir todo um país, cumprindo uma função nacional que só se alcança com a superação de vícios de origem, limites programáticos e sarampos ideológicos. Traços, em suma, que os leninistas de antes, com todo o pathos revolucionário que os abrasava, chamavam de doença infantil, cuja irrupção os isolava e criava, à direita, um virulento espírito reacionário de massas.

A comparação sempre imperfeita com os comunistas – porque, repetimos, quando falamos de PT, de comunismo não se trata, sem contar que hoje nem sabemos delinear minimamente qualquer ordem anticapitalista – serve ao menos para afirmar que tais distantes antepassados, em certos casos, desenvolveram um certeiro e valioso sentido institucional. Não se conta a história da Itália moderna sem o PCI, permanece digna de respeito a cautela estratégica do PC chileno nos tempos de Allende, deu provas de serenidade o partido espanhol na transição pós-franquista. E o pequeno e clandestino PCB, durante o regime militar, abriu-se para o liberalismo político e a democracia representativa, que alguns de seus setores, em certo momento, passaram a considerar patrimônio de qualquer esquerda que viesse a se firmar a partir daí.

E nem nos aprofundemos na trajetória social-democrata, o outro ramo dos partidos de origem operária que poderia servir como termo de comparação. Aqui, a plena adesão ao programa reformista foi menos acidentada e mais em linha com o Ocidente político, resultando na construção de algumas das mais interessantes sociedades de que até hoje se tem notícia. Mesmo que o primeiro desses ramos da esquerda do passado tenha desaparecido e o segundo atravesse dificuldades cuja extensão não conhecemos, o fato é que se trata de um legado teórico-político a ser cuidadosamente avaliado na nova configuração que o mundo assumiu neste início tumultuado de século.

O petismo não parece ter-se preparado para esta crucial avaliação, que não é só conceitual, mas envolve modos de ser e agir na sociedade, requisitos de lealdade institucional e compromisso firme com a renovação de hábitos e costumes. Bem mais organizado do que os partidos tradicionais, provincianos e com escassa vitalidade interna, pôs essa sua capacidade organizativa a serviço de uma subcultura sectária, voltada para a cisão e o confronto. Seu militante típico se move à força de slogans e de uma visão maniqueísta do mundo. Muitos de seus intelectuais se soldam à massa dos militantes nesse mesmo plano, abdicando de qualquer esforço de educação democrática. Ao ver e ler uns e outros, podemos ter o sentimento de estar a bordo de uma máquina do tempo: um intelectual comunista dos anos 1950, treinado no catecismo mais elementar, não faria diferente, com a denúncia repetida contra agentes do imperialismo, oposições antinacionais e traidores da pátria, que certamente não teriam lugar na democracia popular que então se propunha com fé e agora retoricamente se quer atualizar.

O trauma comunista do “culto à personalidade” não está superado. Em vez de grupos dirigentes amplos, capazes de autorrenovação constante e porosos ao surgimento de novas elites partidárias, seguem intactos os mecanismos daquilo que mestre Graciliano, ele mesmo contraditoriamente prisioneiro do culto de Prestes, uma vez chamou de “canonização laica”. E, agora, os problemas judiciais em torno do líder canonizado nada mais seriam do que a continuação do golpe que teria vitimado o governo popular de Dilma Rousseff, ainda que o PT e vários de seus intelectuais “orgânicos” tenham requerido o impedimento de todos os presidentes, de Sarney a Fernando Henrique, sem exceção. Tertium non datur: ou bem o impeachment é golpe, e nesse caso o petismo deve admitir um golpismo renitente, ou bem é um remédio amargo, com danos consideráveis, mas plenamente integrado aos dispositivos legais.

Nesse mesmo sentido, estamos por todos os títulos longe do apregoado “estado de exceção” – cuja denúncia em foros internacionais, falsa e artificial, denota a persistência do desprezo que a parte atrasada da velha esquerda votava às liberdades civis e políticas, sob as quais, depois de árdua travessia, vivemos desde 1988. Como se dizia de Weimar e podemos dizer de nós mesmos, impossível ter uma democracia sem democratas. O legado a ser mantido, inclusive e principalmente pela esquerda, é o assinalado pelos valores de um patriotismo de novo tipo: o patriotismo constitucional. Ele é que nos ensinará a nutrir sempre, de modo imperturbável, nojo e horror por todas as ditaduras, como queria um grande liberal. Mesmo as que, por aí, mal e toscamente se disfarçam de progressistas.

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci

 


Luiz Sérgio Henriques: As duas faces da nossa miséria

Derrotar as ideias extremas é o desafio que todo democrata deve continuamente se impor

Do ponto de vista democrático, o recente ciclo das esquerdas latino-americanas no poder, entre elas o petismo, não foi particularmente entusiasmante. Em seu conjunto, em grau maior ou menor, não souberam dirigir-se a toda a sociedade, ao optarem por uma ideia substantiva de democracia, hostil à dimensão que reputam “meramente” formal, fazendo-a acompanhar por estratégias discursivas fortemente divisivas, próprias de percursos já cumpridos, sem êxito, no passado.

O caso extremo, que, no entanto, chegou a ter pretensões de se tornar a matriz de transformações revolucionárias em boa parte do Continente, terá sido o bolivarianismo venezuelano, desde o começo tingido por um autoritarismo de feição militar que, recorrendo a instrumentos plebiscitários e arregimentando uma parte da população – por certo aquela socialmente mais destituída –, foi capaz, como ainda hoje é, de obter sucessivas vitórias eleitorais, por bem ou por mal.

Nenhuma dúvida, especialmente durante os sucessivos mandatos de Hugo Chávez, de que, manipulações à parte, o regime contou com adesão majoritária. Um dos requisitos da democracia, assim, parecia plenamente preenchido, a saber, o respeito à vontade majoritária na constituição dos governos. Menos ou nada respeitados, ao contrário, ficavam outros requisitos igualmente essenciais, como o respeito aos direitos da minoria, que do ponto de vista formal deve ter a possibilidade de se tornar governo em eleições disputadas em razoáveis condições paritárias.

O mau padrão bolivariano, crescentemente cultivado a partir da primeira vitória de Chávez, ainda no final do século passado, deitou raízes e se espalhou, conquistando adeptos até mesmo entre intelectuais. Chávez, naturalmente, surgia como a encarnação – sem restos – de todo o povo. Um redivivo pai fundador, capaz de recolocar o Estado sobre novas bases e de encaminhar transformações supostamente socialistas à altura do século 21. Em certo momento, a busca da “felicidade social” chegou a se institucionalizar na forma de um ministério. Por óbvio, quem se opusesse – ou se opõe – aos desígnios oficiais só podia ser visto como um sabotador ou um agente do imperialismo. Um “esquálido”, na novilíngua chavista.

A Argentina dos Kirchners e, em tom mais brando, o Brasil de Lula reiteraram o novo padrão retórico. Por certo, sociedades mais complexas do que a venezuelana requerem objetivamente um discurso público menos marcado pelo maniqueísmo. Apesar disso, o recurso lulista da primeira hora consistiu em brandir a “herança maldita” dos anos FHC, bordão repetido infinitas vezes desde sempre, a ponto de borrar o aspecto formalmente exemplar da transição de um governo para outro, em 2003. Opor-se a Lula era pertencer, automaticamente, à “direita neoliberal”, um espantalho conveniente sob cuja sombra se iria gradualmente congelar a imaginação política do País nos moldes estatistas que no passado presidiram, à direita e à esquerda, seus surtos de modernização.

A “linguagem do ódio” fez sua potente reaparição em nossa história política, minando a constituição possível de uma cultura cívica minimamente compartilhada. Não se chegou, como na Venezuela, ao cinismo de promulgar pretensa legislação constitucional contra o ódio, depois de semeá-lo abundantemente; mas, tal como lá, atribuiu-se aos adversários o espírito da “casa grande”, em pânico diante dos avanços – mais proclamados do que reais – da “senzala”. E esse constitui agora o legado pior do petismo, sua peculiar herança maldita, a qual, recortando de alto a baixo nossa sociedade, acabou por gerar seu oposto simétrico na figura – agora, sim – de uma direita primitiva, cuja expressão política mais evidente simula portar um fuzil em suas intervenções públicas – num país devastado pela insegurança e pelas mortes violentas.

Na verdade, assim foi que “nos atualizamos”, paradoxalmente, em relação a algumas das correntes mais perversas que se agitam mundo afora. A começar por Trump, algo mudou na extrema direita contemporânea, dando-lhe não só confiança agressiva, como também capacidade de explorar medos, frustrações e ressentimentos. Nem mesmo nos Estados Unidos, uma democracia liberal plurissecular, passou inobservada a mudança genética da velha direita republicana, a ponto de fazer um político solidamente conservador como o senador John McCain protestar contra a retórica de “solo e sangue” que se afirma contra as marcas de origem de seu país. Ou o contestadíssimo Georg W. Bush lamentar a degeneração do nacionalismo em nativismo vulgar. Para não falar dos ventos xenófobos que varrem a velha Europa, em que no tronco enfermo do antissemitismo agora se enxerta a doença islamofóbica.

Entre nós, ainda não é possível avaliar o impacto eleitoral desta “atualização”, com sua explosiva mistura de trevoso conservadorismo comportamental e liberalismo econômico radical, se é que se levará a cabo esta outra mudança genética na extrema direita nativa, originariamente portadora de sua própria versão de capitalismo autoritário e nacionalista. Da mesma forma, observando o polo simétrico, não sabemos até onde a sociedade resistirá à reproposição do populismo radicalizado “de esquerda”, com o qual voltou a girar pelo País o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para impor como fato consumado uma candidatura presidencial às voltas com conhecidos e crescentes problemas judiciais.

A política democrática requer que tais ideias extremas sejam paulatinamente postas nas margens da arena pública. No rigor do termo, são excêntricas e constituem tentativas desastradas ou de retorno a um passado mítico de lei e ordem, ou de fuga para um futuro com mais igualdade (admitamos para fins de argumentação), mas, certamente, menos liberdade. Derrotá-las é o desafio que a vasta e variada área dos democratas deve continuamente se impor.

 

 


Luiz Sérgio Henriques: Profissão esperança

 

Corre contra o tempo quem acalenta a ideia de reconstruir o centro político em 2018

As dificuldades da política democrática – aquela que de modos muito variáveis, segundo os diferentes contextos, apela ao centro político e o considera lugar por excelência de conflito e consenso – estão à vista de todos e não se restringem a nós. Pode ser frágil consolação para nossa própria miséria, mas o fato é que, fora das nossas fronteiras, também nos assustamos com as estratégias radicais de polarização, toscas, mas conscientes, postas em prática por “populistas” de vários tons e matizes, e diferentes graus de periculosidade, a começar pelo caso evidente da mais antiga das democracias contemporâneas.

Nela, surpreendentemente, da própria sala de comando partem assaltos continuados à razão, ameaçando mais do que a coesão do grande país do norte ou a arquitetura institucional construída nas últimas décadas para ordenar de algum modo as relações globais. Como está claro, o extremismo de Donald Trump parece pôr em risco o próprio estatuto da verdade, tal como modernamente pode ser concebida a partir do debate plural, em razoáveis condições de paridade, entre os diferentes atores da sociedade aberta.

Os novos inimigos desse tipo de sociedade – diferentemente dos velhos inimigos, com suas versões “totais” de Estado e sociedade, baseadas na hipótese racionalista da “classe universal” ou, de modo bárbaro, na da “raça superior” – apostam desabridamente na polarização destrutiva. A falsificação elementar dos fatos é sua estratégia. O irracionalismo diante de consensos científicos razoáveis, como o que se tem estabelecido em torno dos riscos ambientais, é o credo acintoso que ostentam, em prejuízo da inteligência. A linguagem do ódio é o recurso expressivo predileto, cindindo de alto a baixo as relações cotidianas de homens e mulheres comuns.

Polarização e antagonismo – segundo a distinção do chileno Fernando Mires – não são a mesma coisa. A primeira requer, patologicamente, a destruição do outro polo e com ele não admite interação de nenhum tipo. Para um fanático de direita, não existe a esquerda política, mas sim, ressalvado o duvidoso neologismo, “esquerdopatia”. Para um fanático de esquerda, posições moderadas devem ser toleradas até a “relação de forças” permitir seu cancelamento. A América ideal de Trump exclui imigrantes latinos e árabes – e muito possivelmente os negros. O populista latino-americano de nossos dias se vê como a encarnação inteiriça de toda a nação. Quem a ele se opõe merece ser desqualificado como inimigo do povo ou lacaio do império.

Os antagonismos, nessa linha de raciocínio, seguem outra lógica. Podem explicitar-se na plenitude de suas forças porque admitem a política como centro. Adversários que se colocam em tal plano – o da centralidade da política – reconhecem forças e fraquezas recíprocas. Ganha prestígio e consenso quem triunfar sobre o adversário em seus pontos mais altos, incorporando-os de modo coerente e rigoroso ao próprio programa. E esse triunfo, como facilmente se depreende, tem prazo de validade predeterminado até novas eleições, cujo calendário deve valer como crença popular solidamente enraizada.

O que atemoriza no Brasil de agora é que, projetando-se mecanicamente o cenário mais comum das pesquisas, poderemos ter pela frente a neutralização do centro político e a confrontação, necessariamente estéril, de polos que não se tocam nem interagem. A esquerda lulista, por oportunismo ou convicção, jamais criou uma linguagem capaz de hegemonia. Sindicalistas no palanque podem desenvolver um estilo de confrontação, ainda que mais encenada do que real; esquerdistas de matriz “cubana” ou “venezuelana”, chegando ao governo, mostram-se impacientes com limites constitucionais e passam a se perguntar, anacronicamente, sobre o lugar do poder real, que querem absorver e controlar. Sindicalistas e esquerdistas moldaram o vocabulário e a sintaxe do petismo. E os disseminaram com sucesso, dizem-nos as pesquisas, sobre um bom terço do eleitorado, apequenado diante do líder carismático que já há décadas se repete e imobiliza politicamente o País, à maneira de um imperador de fancaria.

À força de gritar “direita!” a propósito de toda e qualquer crítica, a linguagem binária do petismo terminou por favorecer e criar o terreno mais favorável para a nova direita brasileira, nos moldes de Trump. Mantida a contraposição polar, além de se estreitarem as possibilidades de uma campanha civilizada, entre outras coisas estará interditado o debate econômico: ao nacional-estatismo, catastroficamente ressuscitado por Lula e Dilma Rousseff, se contraporá um liberalismo econômico abstrato e extremado, forjado para a ocasião, sem que nenhuma dessas duas posições, postuladas doutrinariamente, deixe entrever o fato de que Estado e mercado são instituições falíveis e, ambas, necessitadas de controle, limite e regulação democrática.

Sob o influxo de poderosas correntes externas, seremos arrastados, querendo ou não, pelas vagas irracionais das “guerras de cultura” ao estilo norte-americano. O que menos importará, no caso, será a afirmação de um espaço público arejado e laico, à altura dos novos tempos, aberto até mesmo aos valores religiosos. Não casualmente, como escreve Cacá Diegues, constatamos ao redor o retorno triunfal das patrulhas ideológicas, avessas à noção de que a liberdade de pensamento é, por definição, a liberdade de quem pensa diferente de nós.

Corre contra o tempo quem acalenta a ideia de reconstruir o centro político em 2018. A seu favor tem só a certeza de que, longe de evocar a noite em que todos os gatos são pardos, o centro reconstruído é um espaço que pressupõe inteligência e sentimento profundo do País. Em tempos mais terríveis ainda, um artista talentoso quis dar a cada um de nós, brasileiros, a “profissão esperança”. Está na hora de retomar essa nossa profissão esquecida.


Luiz Sérgio Henriques: 1917 

Papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos

Os cem anos da revolução bolchevique provavelmente não nos darão – ainda! – a trégua necessária para pôr em perspectiva acontecimentos que estiveram no cerne da “segunda guerra europeia dos 30 anos” e, mais do que isso, lançaram ondas de choque por toda parte – não em último lugar, sobre o vasto mundo então colonial. E talvez não seja para menos: o comunismo histórico, assim como várias outras correntes do século passado, foi intensamente vivido como uma das tais religiões laicas em choque de vida e morte, com sua vontade de assaltar os céus e torná-los uma realidade imediatamente terrena.

Impossível recapitular, mesmo sumariamente, as vicissitudes do “primeiro Estado operário”, surgido entre os escombros da guerra de 1914 e da guerra civil subsequente. Um Estado operário erguido, ainda por cima e contraditoriamente, num país de ampla base rural e costumes autocráticos profundamente enraizados. A dirigir isso que hoje parece uma tarefa irrealizável estiveram o leninismo e, depois, o stalinismo: modalidades militarizadas da política não exatamente iguais, mas, ambas, com um déficit fatal de pensamento democrático ou, caso se queira, com uma visão jacobina de democracia avessa às conquistas do liberalismo, o que daria uma fisionomia despótica à construção do socialismo soviético.

Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da 2.ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, identificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à democracia e a escolha da violência revolucionária como método privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.

O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavelmente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democracias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.

Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemônicas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capacidade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressivas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, entendido como contínua reproposição de confronto com o outro campo, sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso; o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.

Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e conflituosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por um marxista singular, não era só um método de produção revolucionário ou uma nova concepção de fábrica, implantada pelo fordismo, mas uma matriz de comportamentos individuais e um projeto de sociedade mais racional. No entanto, para a maior parte dos marxistas, a falsa percepção de catástrofe iminente impediu a compreensão do modo como o capitalismo se autorreformava e seguia adiante com êxito, especialmente quando o idioma liberal era falado com sotaque universalista. Sirvam como exemplo algumas experiências já dos anos 1930, como o New Deal rooseveltiano, e as do segundo pós-guerra, quando as social-democracias, secundadas em alguns casos por poderosos partidos comunistas, capitanearam as modificações que desaguaram na “era de ouro” do capitalismo reformado.

Difícil fazer um balanço equilibrado da trajetória comunista. No poder, o modelo bolchevique produziu estruturas autoritárias ou, reconheça-se, totalitárias, que afinal se mostraram frágeis e ruíram. Fora do poder, deve-se admitir que aquela trajetória teve luzes às vezes intensas. O próprio Ingrao, cuja capacidade autocrítica destacamos, constatou a ação positiva dos comunistas na organização de uma classe – a dos trabalhadores, mas não só – e na sua integração à sociedade inclusiva, ampliando regras e valores da democracia – rigorosamente, um bem coletivo.

Eric Hobsbawm convidou-nos a uma visão livre de uma das muitas ironias que a História, essa dama caprichosa, acabou por nos reservar: o fato de a revolução russa, que parecia encarnar o mais temido dos fantasmas, na verdade ter salvado duplamente a civilização “adversária”. Na guerra, aniquilando Hitler; na paz, estimulando, até pelo medo de algum novo evento revolucionário, sua reforma e sua capacidade de se expandir além da feição original. Descartado cabalmente o método da violência, o papel democratizador dos velhos comunistas, no Ocidente, deveria ser lembrado por todos nesta hora difícil.

* Luís Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci


Foto: Beto Barata\PR

Luiz Sérgio Henriques: O terceiro fantasma  

A falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos

Espectros e assombrações, de acordo com sua natureza evanescente, costumam rondar cenários de terra devastada, como é o caso da política brasileira, trazendo presságios e reminiscências mais ou menos distantes e, no entanto, úteis para nossa ponderação. De fato, a devastação é grande demais: líderes e partidos, de governo ou da oposição, parecem dissolver-se no ar, arruinados por denúncias às vezes imprevistas ou transformados em alvo de acusações que os tratam, respectivamente, como delinquentes ou “organizações criminosas” imprestáveis para o funcionamento de uma democracia normal.

Tendo em vista as prosaicas malas abarrotadas de dinheiro ou os sofisticados softwares de propina, não se pode dizer que se trata de calúnias saídas do nada. Mas o fato é que, ao lado do aspecto investigativo-judicial, é preciso voltar os olhos para toda a imensa crise de representação que assim se estabelece, dando ouvidos à assombração italiana dos anos 90 do século passado e à argentina da virada de século. A evolução política daqueles dois países é o que nos interessa de perto; judicialmente, respeitado o processo legal, que os mortos enterrem os mortos. De todo modo, não haverá muito a fazer se e quando condenados, sejam eles quem forem e seja qual for a narrativa persecutória que preferirem.

O impacto da Mãos Limpas na história italiana foi de tal monta que assinalou o ocaso da Primeira República, estruturada em torno de dois grandes partidos de massa, a Democracia Cristã e o Partido Comunista. O primeiro deles ainda tentaria reviver com o nome de seu longínquo antecessor, o Partido Popular, mas sem muito sucesso. E deixaria o campo da centro-direita livre para o surgimento fulminante de um personagem egresso do mundo dos negócios, Silvio Berlusconi, a seduzir cidadãos-consumidores, numa peculiar telecracia, com a retórica da antipolítica. Empresário, estaria comprometido só com a eficiência; rico, não precisaria valer-se da corrupção intrínseca à atividade política.

Em síntese extrema, o que levou à ruína a Democracia Cristã – e o Partido Socialista de Bettino Craxi, morto no exílio – foi a construção de um complexo sistema de poder, que excluía por definição a alternância. Impensável um partido comunista chefiar um governo nacional na Itália daquele tempo. Excluído do poder central e, portanto, só marginalmente atingido pelas investigações, o PCI, já mudado em partido de esquerda democrática, se lançara havia alguns anos em busca de uma identidade distinta da matriz bolchevique, busca evidentemente necessária para a formação de governos alternativos ao de Berlusconi.

Esta função cumprida pelos pós-comunistas italianos é algo que hoje nos falta à esquerda, se for verdade – do ponto de vista estritamente político – que o comportamento do petismo terá significado pelo menos o início da constituição de estruturas de poder avessas à alternância e voltadas para a cooptação bruta de aliados, chamados para ocupar predatoriamente, em posição subordinada, os lugares disponíveis em órgãos de Estado e empresas públicas. E esta falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos, penalizados que seremos pelas contradições e ambiguidades do lulismo e do petismo.

O fantasma argentino também traz sua mensagem para nós. Após a década neoliberal de Menem, uma das mais surpreendentes metamorfoses do peronismo, e do fracasso de seu sucessor “radical”, Fernando de la Rúa, as praças do país vizinho foram invadidas por intensos protestos populares. E até houve quem os tomasse, confundindo a nuvem com Juno, por um processo revolucionário à moda de Lenin, no qual uma eventual invasão da Casa Rosada significasse, quem sabe, a tomada do Palácio de Inverno.

Também aqui a antipolítica ressurgiu com virulência. O lema que se vayan todos, que no quede uno solo, condenatório de toda a “classe política”, correu mundo como expressão da vontade popular de fazer tábula rasa de representantes e instituições representativas. Alguns terão sonhado novamente com a “democracia direta”, a ser exercida nas praças, dispensando mediações e dando voz ao verdadeiro soberano. A ilusão de começar do zero, em meio à instabilidade provocada pela sucessão alucinante de governos brevíssimos, haveria de desembocar paradoxalmente na era Kirchner, manifestação desta feita do peronismo de esquerda, cujo apelo “nacional-popular” nem sempre, ou quase nunca, ocultou o desígnio de uma democracia iliberal e tendencialmente carente de contrapesos republicanos.

Pode ser que um terceiro fantasma tenha, agora, aparecido em nosso relato. Ambíguo, multiforme, o populismo será um espectro capaz de variadas encarnações e, por isso mesmo, de difícil apreensão conceitual. Há mesmo um bom argumento que rejeita seu uso por causa destas suas múltiplas figuras, que vão dos governantes “nacional-populares” da América Latina até Berlusconi ou mesmo Trump. O fato é que, em nossos dias, importantes teóricos voltaram a pôr em circulação a “razão populista”, que invariavelmente tenta desagregar, segundo a lógica feroz de amigos versus inimigos, o consenso em torno das instituições democráticas. O que diferenciaria o populismo progressista daquele reacionário seria a escolha atilada dos inimigos: as elites em vez dos imigrantes, por exemplo.

Em tempos difíceis, como os que temos vivido aqui e agora, o que se requer é uma esquerda que majoritariamente não pense só na afirmação de suas próprias razões, mas seja capaz de levar em conta o conjunto da sociedade, aceitando a espinhosa – e interminável – missão da persuasão permanente. E reconheça, por isso, que apostar na cisão simplória entre o povo e seus inimigos pode acarretar tragicamente “a ruína comum das classes em luta”. Como temos visto, construir esse tipo de esquerda não é nada fácil.

Mais em: www.gramsci.org

 

 


Luiz Sérgio Henriques: A Venezuela não é aqui  

Temos à frente a imensa tarefa de reformar um Estado disfuncional e uma sociedade injusta

As coisas – assim como as ideias e os livros – estão no mundo, só que, como no samba, é preciso aprender. E foi assim que nos anos mais duros do regime autoritário abriu caminho, aos poucos e não sem muito atraso, a noção de que nosso país, em tumultuado processo de modernização conservadora, mesmo sem resgatar integralmente as hipotecas do passado, estava fadado a construir estruturas e culturas políticas de tipo “ocidental”, que dariam a todos a régua e o compasso para pensar os problemas e elaborar, com meios propriamente políticos, as hipóteses de sua superação.

Do ponto de vista dos opositores do autoritarismo, a lição da realidade parecia cada vez mais clara. Deveríamos dar um adeus definitivo às ilusões da militarização da política, bem como à tentação de recorrer aos caudilhos terceiro-mundistas monopolizadores de praças e falas – apesar da sedução que a revolução cubana exercia sobre frações relevantes da velha e, paradoxalmente, da nova esquerda, nisso internamente incoerente com a novidade que alegava representar.

Um mundo diverso deveria agora ser descoberto: não o da “tomada do poder” por meio da violência ou o exercício deste mesmo poder pela força bruta, com o desconhecimento dos mínimos requisitos ditos procedimentais, tal como, para eliminar qualquer dúvida, a existência de oposição legítima e competitiva, capaz de voltar a ser maioria em eleições regularmente dispostas. A política se deslocaria, assim, para a “sociedade civil”, lugar plural por excelência, no qual a permanente construção de consensos devia ter como único norte padrões mais altos de civilização. E uma esquerda moderna se tornaria, afinal, fiadora da República e da democracia, atraindo para este campo favorável o conjunto das correntes da política, isolando extremismos e inviabilizando retrocessos autoritários. Uma mudança verdadeiramente histórica.

Reafirmar este horizonte, em grande parte enevoado, parece particularmente importante num momento de fúrias desatadas na esquerda latino-americana e, por consequência, na brasileira. A “perspectiva venezuelana” – e suas projeções entre nós, como o atesta a posição oficial do PT e de considerável setor da intelectualidade – lança uma pesada sombra sobre tal horizonte, que essencialmente requeria, e ainda requer, a convicta superação do paradigma da “revolução” em benefício daquele da “democracia”. Talvez tenhamos sido excessivamente otimistas quanto ao ritmo e à consistência desta passagem: vistas as coisas em sua aparência imediata, o que a corrente autoproclamada revolucionária agora pretende é uma segunda oportunidade na Venezuela de Chávez e Maduro, sob a forma de radicalização violenta do “socialismo do século 21”.

De fato, a “cubanização” do regime venezuelano domina a conjuntura do bolivarianismo. Os adeptos da radicalização voltam a atacar aqueles que teriam uma concepção “fetichizada” da democracia, reduzindo-a a seus pressupostos “liberais”, quando – dizem – o caminho deles é a democracia direta dos produtores, dos povos originários, das mulheres e dos oprimidos em geral. Desprezam a notável conquista do sufrágio direto e universal, assim como buscam suprimir todo e qualquer resto do arcabouço jurídico “burguês” que, só ele, como mostram as duras réplicas da história, torna possíveis os ensaios de democracia direta e de auto-organização da sociedade.

A violência reaparece, ameaçadora. No imutável “Oriente” dos revolucionários de Nuestra América, o essencial é que se imponham os interesses das classes populares, tal como redefinidos e enquadrados por estruturas verticalizadas e autoritárias. Se irão se impor pela via “eleitoral” ou pela “armada”, passa a ser um problema secundário. Nos manifestos deste Oriente ressurrecto, escreve-se o termo “guerra civil” com a naturalidade dos politicamente levianos, que se obstinam em desconhecer o quanto uma perspectiva desse tipo arruína, antes de mais nada, a vida dos subalternos, como, para dar só um exemplo, os homens e as mulheres comuns que já atravessam a fronteira roraimense e cujo fluxo parece estar só no começo.

Os brasileiros participamos, querendo ou não, deste revival antidemocrático. Ainda não nos demos plenamente conta da nocividade do argumento que transformou o impeachment da presidente Dilma Rousseff em “golpe institucional”, alardeado, no fundo, por quem desconsidera ritos constitucionais densos de conteúdo. Argumento fraco, entre outras razões por ter o PT tentado, por meio de parlamentares ou de intelectuais “orgânicos”, o impeachment de todos os presidentes da redemocratização, desde que de outras legendas. Tratada com a mesma lógica, esta reiteração caracterizaria uma espécie de golpismo permanente ou de subversivismo juvenil, próprio de uma força pouco leal na oposição e intolerante no poder.

Além de fraco, o argumento é perturbadoramente nocivo: é que o afastamento da presidente Dilma insere-se, de modo irracional e anti-histórico, numa “narrativa” mais ampla de golpes reais ou supostos contra os governos progressistas latino-americanos, rubrica em que entram desde os dirigidos por bufões até os que tiveram à sua frente estadistas como Salvador Allende. Há nisso, convenhamos, menos a pitada do surrealismo tradicional na região do que uma infâmia pura e simples: Allende não pode andar em reles companhia.

Felizmente, nunca fomos tão longe como na Venezuela. Nosso universo mental, inclusive o de boa parte da esquerda, não está congelado em oposições irredutíveis nem gira em falso entre “império ou revolução”, “pátria ou morte”. E a burguesia nacional, como dizia um bom frasista, não cabe em Miami. Longe do delírio revolucionarista, temos pela frente a imensa tarefa de reformar um Estado disfuncional e uma sociedade injusta. Não aprendemos exatamente como fazê-lo, mas o método só pode ser o democrático.