Luiz Sérgio Henriques || Esquerda positiva e frente política

Há de ser possível relegar os extremistas às margens e minimizar o seu impacto

Em situações críticas, quando tradicionais correntes constatam a presença disruptiva de um novo adversário percebido como ameaça a si próprias e às instituições, o tema das frentes reaparece mais ou menos ritualmente, e é natural que assim seja. Não é certo que triunfem ou sequer alcancem seus fins imediatos, assim como não escapam da incompreensão de parte dos contemporâneos, por vezes atônitos com o exercício de uma das dimensões essenciais da política, que, afinal, não vive só de conflitos nem constrói muralhas da China. Adversários leais, sem minimizar o que os divide nem renunciar à própria identidade, conversam, estabelecem pactos, delimitam o terreno de luta, pondo a salvo o que lhes parece patrimônio comum e que permitirá mais adiante a continuação civilizada do conflito.

A moderna história política brasileira conheceu movimentos dessa natureza. Relembrá-los pode servir como alento para os democratas convictos e, ao mesmo tempo, antídoto contra a ação de quem deliberadamente quer repetir indefinidamente os choques mais óbvios que assinalaram os 21 anos do regime de exceção, ceifando vidas e turvando o horizonte do País. Valorizar aqueles movimentos pode ser um guia para a ação em ambiente distinto, como este no qual nascem, ou dão sinais de querer nascer, as inéditas antidemocracias do século 21.

Não teve êxito algum, para dar um exemplo que, apesar do malogro, merece reverência, a frente imaginada por um homem de raro talento, o petebista San Tiago Dantas, às vésperas de março de 1964. A frente que propôs, numa corrida inglória contra o golpe iminente e a própria doença que o mataria, deveria reunir a maior parte do seu PTB, mas também políticos do PSD e até os udenistas “bossa nova”, em defesa da legalidade do mandato do presidente Goulart e de reformas consensuais, que levariam o País até as eleições de 1965 sem quebra da normalidade constitucional - esse bem precioso que nos obriga a cuidar permanentemente da saúde das instituições, dos partidos e do Parlamento.

A frente costurada por Dantas fracassou depois de alguns meses de frenéticas negociações, sem conseguir conter o radicalismo generalizado que atropelaria a democracia de 1946. É que quase todos os atores esperavam ganhar alguma coisa com o acirramento da crise, apostando no “dia D” da explosão revolucionária ou, como seria previsivelmente o caso, contrarrevolucionária. Mas Dantas, como contou recentemente o estudo de Gabriel da Fonseca Onofre Em Busca da Esquerda Esquecida (Prismas, 2015), legou-nos, junto com sua derrota política, o conceito de “esquerda positiva”: uma esquerda que, sem renegar a si mesma nem às razões da luta por justiça social, conduz seu combate no campo das instituições e, por isso, admite plenamente a dialética da democracia, estabelecendo alianças e se comportando com lealdade com aliados e adversários.

Há algo desse movimento aliancista na “frente ampla” que, um ou dois anos mais tarde, animaria as conversas e os acordos de grandes líderes civis de então. Esmagada em abril de 1964, como em todo regime de força, a política faria sua reentrada em cena com Juscelino, Goulart e Lacerda, surpreendendo os que, congelados doutrinariamente, não podem compreender as implicações que decorrem naturalmente do extraordinário fato de adversários históricos, mesmo encarniçados, passarem a reconhecer mutuamente a legitimidade uns dos outros. A vida civil, nesse ponto, transforma-se de um modo que não é dado aos dogmáticos de todas as tendências prever e acompanhar.

Se a frente ampla terminou entre os destroços de 1968, um partido-frente marcaria os anos a seguir, firmando-se dessa vez com perseverança e heroísmo - os homens da mal chamada “velha política”, como Ulysses e Tancredo, sabem ser heróis a seu modo, cultivando com mãos de jardineiro a planta tenra da democracia e disseminando com coragem cívica “ódio e nojo” às ditaduras. Estiveram ao lado deles outros expoentes da esquerda positiva, recusando a insensata autodissolução do partido oposicionista, rejeitando o voto nulo e apontando as eleições, não as armas, como a forma verdadeiramente superior de luta. A esquerda positiva foi ao centro, não só no sentido de deixar-se “contaminar” pelos valores do liberalismo político, mas também no de apreender o centro da política, que passava muito longe da atualização do mito da revolução armada - impossível e, sobretudo, indesejável - e consistia na defesa da anistia e da Constituinte, com a participação de todas as forças. A reconciliação dos brasileiros, em suma.

Antidemocratas de novo tipo, aproveitando-se de erros cometidos nestes últimos 30 anos, especialmente pelo principal partido de esquerda, agora dão as cartas, ainda que constrangidos pelos freios e contrapesos do sistema constitucional. O presidente Bolsonaro não esconde a filiação à família dos populismos contemporâneos: uma mistura de nativismo histriônico, subalterno ao trumpismo, instrumentalização de valores religiosos redefinidos anacronicamente e, não em último lugar, submissão a uma agenda radical de mercantilização. Em âmbitos que definem o padrão civilizatório, como ambiente ou direitos humanos, o que se quer afirmar é um individualismo agressivo e, no fundo, niilista, que está longe de ser mera cobertura para a agenda econômica fundamentalista, mas sua necessária projeção num cotidiano tomado pela barbárie.

Dispersa em vários partidos e fora deles, a esquerda positiva tem nova e decisiva oportunidade. A “ida ao centro”, como no passado, servirá para revalidar suas credenciais, influenciando liberais e conservadores fiéis à Constituição e deixando-se por eles influenciar. Não se pode excluir uma frente, ainda que informal, para isolar e derrotar os extremistas. Há de ser possível relegá-los às margens e minimizar seu impacto na vida de todos.


Luiz Sérgio Henriques: Por um cosmopolitismo moderno

O antídoto mais eficaz contra a ameaça de recuos pavorosos como o que se seguiu a Weimar

Analogias históricas são, sempre e ao mesmo tempo, tentadoras e inexatas. O fantasma da República de Weimar, a frágil experiência democrática que em poucos anos sucumbiu a seus dilaceramentos internos, costuma ser uma das fontes preferidas de tais comparações, como se a desordem contemporânea guardasse em si o germe de algo parecido com o fascismo clássico. Então como agora, a democracia constitucional parecia fadada à derrota diante do bolchevismo, cedo demais desfigurado por elementos crescentes de intolerância e fanatismo, e especialmente diante da reorganização corporativa e autoritária de sociedades como a italiana ou a alemã. A demanda de disciplina supunha homens fortes e não podia admitir o jogo dos partidos, que enfraqueceria povos e destruiria nações, as quais, como voltam a dizer, devem ser cultuadas über alles.

Não é razoável acreditar que fascismo ou comunismo estejam às portas ou que nossas ruas e instituições devam ser palco de combates tremendos entre os adeptos de uma coisa ou da outra. Mas de Weimar ainda vêm advertências inquietantes, como as que se relacionam aos riscos da exacerbação sectária – suicida, a divisão entre social-democratas e comunistas – ou da submissão dos conservadores aos modos de agir e pensar da extrema direita. A desordem, explorada com método por essa direita subversiva, não prenunciava nenhuma revolução socialista; antes era a melhor amiga da ordem autoritária em preparação. E Weimar ruiria sob o peso da intrínseca miséria política evidenciada no sombrio diagnóstico de que, no fundo, não era mais do que “uma democracia sem democratas”.

Analogias não bastam, mas às vezes jogam uma luz indireta. Nosso tempo está atravessado por uma grande variedade de contradições e talvez a maior delas seja entre a unificação mercantil do mundo, até recentemente realizada sob a bandeira do liberalismo econômico, e as limitações da regulação política dos impactos que provoca, não em último lugar o esgotamento de recursos num mundo percebido como a única casa de que dispomos. Em momentos de maior otimismo chegou-se a supor como inscrita na própria natureza das coisas a constituição paulatina de uma sociedade civil global, que se somaria mais ou menos organicamente ao arcabouço de acordos e instituições nascidos no segundo pós-guerra. Os processos da economia, assim, não teriam curso automático, condicionados que estariam por múltiplos atores e personagens portadores de outro tipo de lógica.

A crise de 2008, tão ou mais grave que a de 1930, pôs em xeque essa perspectiva harmoniosa. Donald Trump não foi propriamente um raio em céu sereno, mas chocou, e cotidianamente ainda choca, com o nativismo virulento expresso em seu América first – de fato, a afirmação desabrida de interesses brutos – e a desconcertante denúncia de arranjos multilaterais criados em ampla medida pelos Estados Unidos, sem falar no caráter regressivo da agenda de costumes. Com Trump e seu deus de ira e ressentimento, a mais antiga democracia moderna abandona a linguagem da hegemonia e desdenha daquele softpower, que, apesar de tudo, foi um dos pilares do “século americano”, ao lado da imensa força produtiva e, naturalmente, da capacidade militar. A hegemonia americana, na definição famosa, nascia originalmente da fábrica, disciplinava almas e corpos e sobrepujava implacavelmente estruturas mais atrasadas, como a europeia. Agora a América é para poucos, repele internamente os “não americanos” e move-se no mundo na base de ameaças e retaliações, mesmo contra velhos aliados.

As consequências que daí se seguem são surpreendentes. Recente número da revista The Economist sugere, com alarme, que hoje estão em risco não só o liberalismo clássico, de que a publicação é coerente baluarte, mas diretamente a própria ideia conservadora, tal como se cristalizou desde a Revolução Francesa. O princípio da cautela, o elogio da lenta evolução de práticas e costumes, a recusa de rupturas drásticas, que só artificiosamente desviariam uma sociedade do seu curso traçado ao longo de séculos, todos esses sinais típicos do conservadorismo “de ontem” têm sido contestados sistematicamente pelo agressivo revolucionarismo antimoderno da nova direita. E deve-se reconhecer que a narrativa agônica sobre o mundo formulada por tal “direita alternativa” teve sucesso até agora, especialmente na pars destruens, ainda que se possa duvidar que uma estratégia de guerra permanente – cultural e religiosa – possa substituir estavelmente a busca de consensos e valores compartilhados.

A esquerda não escapou ilesa do sarampão ideológico, basta lembrar que com o resultado eleitoral americano e fenômenos análogos, como o Brexit, houve quem imaginasse possível saudar o golpe de misericórdia na “globalização neoliberal”. Para essa parte da esquerda, não se trata de partir audaciosamente para a nova fronteira anunciada pela crescente interdependência, mas de recuar temerosamente para os limites do Estado-nação, só no interior do qual seria possível defender as conquistas do passado. Na verdade, essa esquerda “soberanista” mimetiza, em tom menor, o movimento do adversário, de cujas ações e de cujo programa se torna, querendo ou não, mero comparsa.

Eppur si muove. Nem governos que se veem como borrões do trumpismo podem se esquivar do novo horizonte global, como se viu ainda há pouco com o tratado entre os dois grandes blocos da América Latina e da Europa. Liberais, conservadores e socialistas, filhos legítimos da modernidade, continuam a ter relevantes chances de se renovar e retomar o controle da narrativa. Para tanto, tendo bem presente o vínculo nacional e o senso das realidades próximas, deverão sempre considerar o significado mais profundo de um cosmopolitismo moderno, o antídoto mais eficaz contra a ameaça de recuos pavorosos como o que se seguiu a Weimar.

 


Luiz Sérgio Henriques: Reconstruir o bem comum

Esquerda e direita voltam a se contrapor de modo desabrido, gritado e caótico

Em tempos de interdependência, nos quais até mesmo antiglobalistas convictos se reúnem em redes globais, nada demais recorrer a uma anedota húngara, muito embora de uma Hungria ainda “vermelha”, já distante no tempo. Um grande filósofo, um dos poucos de firme adesão comunista que permaneceu relevante, conta ter ido certa vez até um burocrata partidário, intrigado que estava com bruscas e inexplicáveis mudanças de orientação. O cinzento funcionário assegurou a Lukács, o personagem desta breve história, que o partido incorrera em sucessivos desvios da “linha justa”, ora de “direita”, ora de “esquerda”, numa sequência velocíssima que nada explicava e deixava o filósofo ainda mais confuso do que antes.

É que “esquerda” e “direita”, naquele contexto, já não significavam muita coisa. O uso convencional só atestava que a linguagem – qualquer linguagem, inclusive a do marxismo supostamente científico – podia degenerar em jargão e quaisquer conceitos, inclusive alguns firmemente estabelecidos, podiam se transformar em casca vazia, ainda que brandidos em meio a muito som e a muita fúria. E isso com os efeitos nocivos que se podem adivinhar – afinal, costumamos nos odiar e matar por palavras banais e bandeiras sem sentido.

É bem provável que hoje, num mundo em que usuários das redes sociais se engalfinham e “politizam” rigorosamente tudo, ameaçando o tecido minimamente unitário que deve sustentar as sociedades, aquela degeneração de nomes e de linguagem esteja novamente dando seus frutos envenenados. Esquerda e direita voltam a se contrapor de modo desabrido, gritado e caótico, produzindo e reforçando o “colapso do centro” que se registra em muitos lugares e já não poupa nosso país.

Centro, aqui, não pretende valer por um termo médio inexpressivo, socialmente desabitado e politicamente irrelevante. No auge da social-democracia, as boas sociedades conseguiram encurtar distâncias e redistribuir renda: eram as sociedades ditas dos dois terços, uma vez que, grosso modo, só um terço delas estava mais ou menos fora dos benefícios do progresso, enquanto uma substancial maioria convergia nas faixas centrais. No Brasil, território por excelência da desigualdade, não poucos historiadores de esquerda chamaram a atenção para o persistente papel das camadas médias em transformações decisivas. E na primeira década deste século, quando se celebrou até com exagero o sucesso do petismo, a emergência de novas classes médias terá sido o aspecto mais destacado, como a certificar o êxito dos programas implementados.

Impossível considerar a priori tais classes como “reacionárias” ou inimigas da mudança. Em boa medida, elas constituem o terreno mais sólido para o exercício da política como consenso e convencimento, como paixão iluminada por bons argumentos e, assim, estranha à lógica do poder que não quer se justificar permanentemente nem se pôr à prova em eleições livres e regulares. A ruína deste fundamento, com o crescimento das disparidades nas últimas décadas, tem sido a ruína da política democrática, que aos olhos de muitos perdeu a capacidade de incorporar ativamente as maiorias sociais e, assim, assegurar a ideia de bem comum.

Nos seus momentos mais criativos, a esquerda soube interpelar este centro, credenciando-se para dirigir o conjunto da sociedade, tal como se começou a demonstrar há cerca de cem anos durante a crise das sociedades liberais, com a ascensão de sindicatos e partidos de classe e a afirmação de inéditos direitos econômicos e sociais. Ela foi sujeito ativo, na variedade de suas expressões, de experiências de reforma das sociedades de mercado, assimilando e enriquecendo as regras do jogo.

As experiências revolucionárias, ao contrário, não redundaram em sociedades livres e foram, exceção feita a anacronismos, repudiadas cabalmente a partir de 1989. A esquerda reformista passou a ser parte ineliminável do patrimônio ocidental, se retirarmos do termo “ocidental” a conotação puramente geográfica, e só os parvos podem imaginar cancelá-la nas distintas realidades nacionais. Mas sem dúvida perde prestígio e capacidade de atração quando, por desgraça extrema, caudilhos como Chávez e Maduro rotulam sua aventura nefasta como “socialismo do século 21”.

Caso oposto é o da nova direita populista e nativista, que se diferencia dos conservadores clássicos e até dos neoliberais dos anos 1990. Seus êxitos eleitorais, inclusive no Brasil, se dissociam de qualquer verdadeira função dirigente, pois de modo assumido esta direita se reporta não ao “centro”, que despreza, mas à “maior minoria”, que pretende defender com radicalismo vizinho à subversão. Tem como traço básico, delineado a partir da matriz trumpista, um espírito antiliberal que a torna adversária da democracia representativa, do jogo de freios e contrapesos, da vida cívica plural, da imprensa independente. Assenta-se na mais falsa entre todas as notícias falsas, ao se apresentar como portadora de uma mensagem antissistêmica e revolucionária, quando, ao contrário, sua face real é a do próprio sistema despido de valores inestimáveis, como os direitos humanos, a tolerância e o repúdio a toda forma de discriminação.

Descontado o presente surto populista, em democracias consolidadas direita e esquerda constitucionais se assediam e travam batalhas duras; no entanto, além de saber que o par conceitual que encarnam só explica parte das contradições de sociedades complexas, não perdem de vista a densa realidade do “centro”. Este é o lugar em que, na melhor hipótese, se tecem equilíbrios cada vez mais avançados e se afirma a ideia de bem comum. Se nos entregarmos à fantasia dos choques frontais, em vez de tais equilíbrios teremos a mútua ruína das forças em luta, hipótese catastrófica a ser evitada segundo a visão do próprio fundador do socialismo moderno.

*Tradutor e ensaísta, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)


Luiz Sérgio Henriques: Cinquenta tons de barbárie

A natureza proteiforme do populismo permite que ele se vista de direita ou de esquerda

Pudéssemos confiar em alguma forma de evolucionismo ou supor que a política acontece numa espécie de ringue previamente ordenado, em que os contendores só por descuido desferem golpes abaixo da cintura, então estaríamos num mundo em que extremistas não teriam vez nem voto. As democracias maduras do Ocidente teriam mantido força e capacidade expansiva, demonstradas quando, por exemplo, personalidades como Barack Obama, um negro, ou Angela Merkel, uma mulher egressa da velha Alemanha Oriental, se puseram à frente de seus países e se mostraram comprovadamente capazes de administrar situações complexas, como a grande recessão de 2008 ou os desafios da integração europeia.

As populações desses países, mesmo diante do impacto desorganizador trazido pela aceleração de mudanças tecnológicas ou por eventos extraordinários, como migrações massivas e a consequente formação de sociedades culturalmente heterogêneas, sempre teriam preferido tratar os conflitos daí decorrentes segundo padrões razoáveis e já submetidos aos testes da História. Longe de desaparecer, tais conflitos, inseridos na lógica democrática e tratados, quando fosse o caso, em instâncias internacionais assentadas nos direitos do indivíduo e na convivência pacífica, produziriam frutos positivos para todos, ao menos tendencialmente.

Nós, no Extremo Ocidente, a nosso modo replicaríamos esse procedimento. A planta frágil dos valores liberais e da incorporação social estaria finalmente sob bons cuidados. Seríamos educados politicamente pela Carta de 1988, a qual por sua própria natureza nos impôs a todos – centro, direita, esquerda – a tarefa da autorreforma de atitudes e modos de pensar. Nenhuma concessão ao golpismo tantas vezes manifestado em momentos críticos do passado. Ódio e nojo permanente às ditaduras, tal como proclamado por um dos pais da refundação da República. E como consequência, disputa áspera, mas institucionalmente enquadrada, em torno de ideias, projetos e políticas capazes de integrar milhões de concidadãos aos benefícios – e deveres – de uma sociedade aberta e dinâmica.

É evidente que falhamos coletivamente em pontos decisivos desse programa. A Carta de 1988 permanece como ideal regulador extremamente potente, razão pela qual devemos nos reunir em sua defesa sempre que ameaçada ou levianamente criticada por impor obstáculos de qualquer natureza ao nosso desenvolvimento como sociedade. Mas, como fatos e números atestam, eis-nos já na parte final de uma segunda década perdida, sem que, diferentemente da primeira, a dos anos 1980, possamos agora nos orgulhar de conquistas de alta relevância, como, naquela altura, a reconquista da democracia. Ao contrário, estamos em meio às tempestades naturais de uma conjuntura em que, mesmo mantidas as regras do jogo, autoritários estão no poder, embora não possam (ainda?) pôr em prática todo um repertório que, muitas vezes, reproduz o de uma estranha “internacional” que tenta depredar as instituições do Ocidente político.

Falhamos – e nisso a esquerda petista deu nociva contribuição – em enraizar solidamente a crença de que adversários políticos não são inimigos. Apesar do aspecto aparente de senso comum, como dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best-seller sobre o colapso “suave” das democracias contemporâneas, essa crença é “uma invenção notável e sofisticada”. O “eles contra nós”, irredutivelmente martelado durante anos entre “nacional-populares” e “neoliberais”, foi a senha para a entrada em cena de antagonismos ainda mais ferozes e inconciliáveis. A democracia requer e suporta polarizações produtivas, mas tem dificuldade de conviver com aquelas de que se aproveitam atores e personagens demagogicamente contrários ao establishment, especialmente quando, na verdade, tais atores expressam os poderes fortes da sociedade, e não o “povo” convocado para passivamente sustentar mitos e legitimar autocratas.

É possível apontar o caráter mais ou menos global desses fatos, embora seja este um consolo mau e precário. Não vivemos em solidão a ofensiva populista contra as instituições, para usar o ambíguo termo – populismo – a que críticos e adeptos têm recorrido com igual frequência. Mark Lilla, em O Progressista de Ontem e o de Amanhã, anotou uma expressão extraordinariamente radicalizada do subversivismo de direita que vai pelo mundo: “Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para nada”. Aqui se condensam, de modo lapidar, os desvalores de uma direita patologicamente individualista e supostamente antipolítica, ainda que, por óbvio, possa combinar-se com variadas formas de governo despótico.

Ao empregarmos a noção de populismo, não devemos contar com ideias e programas coerentes. A natureza proteiforme do fenômeno lhe permite vestir-se de direita ou de esquerda, como na imensa tragédia venezuelana. O populista pode entoar loas à “tradição judaico-cristã” ou, como na Hungria de Orbán, recorrer ao vulgar antissemitismo. A islamofobia, se for o caso, convém-lhe como uma luva, servindo para catalisar medos coletivos. Pode renunciar ao individualismo à americana, como aquele captado por Lilla, e apelar, ao contrário, à “ressurreição” do povo e de usos arcaicos que sufocam o indivíduo. Só não pode, em qualquer caso, renunciar aos cinquenta ou mais tons de grosseira demagogia antidemocrática.

Se o evolucionismo não nos serve e, por isso, nenhum progresso está assegurado de uma vez por todas, pode ser que este tumultuado processo de unificação do mundo em algum momento nos surpreenda com o amadurecimento e a mobilização das mais diferentes forças e tradições, laicas e religiosas. Todas elas, em sua diversidade, são preciosas na luta contra a barbárie.

*Tradutor e ensaísta, é autor de Reformismo de esquerda e democracia política (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)


Luiz Sérgio Henriques: A cidade e os bárbaros

É preciso tornar à ideia da grande aliança contra os que corroem as bases da democracia liberal

No ato final do comunismo histórico, a partir de 1989, um breve e conhecido texto de Norberto Bobbio, O reverso da utopia, conseguiu dar forma e sentido ao espantoso espetáculo que então se encenava. O mais radical dos sonhos políticos da História – dizia Bobbio – havia se transformado em distopia à moda do pesadelo imaginado por Orwell. Mesmo distantes dos grandes crimes do stalinismo, os regimes inspirados na revolução bolchevique, a URSS em primeiro lugar, arrastavam-se penosamente num quadro de ineficiência econômica, pasmaceira social e autoritarismo político, no qual se abria um fosso insuperável entre ideia e realidade, palavras e fatos, grandes ideais e realidades prosaicas da vida.

As populações submetidas sublevaram-se, em geral pacificamente, em torno das mais elementares – e insubstituíveis – consignas democráticas, como a liberdade de pensamento ou de reunião. As tentativas de autorreforma, como a glasnost (transparência) e a perestroika (reestruturação), mostraram-se afinal incapazes de dar um sopro de vida a regimes esclerosados, ainda que possivelmente tenham contribuído para a saída relativamente indolor de uma situação histórica difícil. Vivia-se o momento inaugural de um mundo que os mais otimistas, ou os mais ingênuos, julgavam livre dos conflitos abertos por uma restrita e quase inapelável visão bipolar. Como sabemos, ser adepto do comunismo ou do capitalismo era mais do que ter um credo político: implicava escolhas de vida, definia destinos individuais, de um lado ou de outro da “cortina de ferro”.

A sabedoria do velho Bobbio, contudo, não descartava pura e simplesmente o comunismo e os comunistas. Estes seriam, como no extraordinário poema de Kaváfis, os bárbaros cuja presença ameaçadora, às portas da cidade, condicionava a rotina de todos, paralisava as ações, congelava tudo numa atmosfera de ansiedade e medo. E, agora, a ausência dos bárbaros – pois subitamente a notícia é que não mais viriam – implicava um chamamento brutal à realidade. Não havia mais inimigos e a vida, como requer outro verso notável, devia ser vivida como uma ordem, sem mistificação.

Num plano mais geral – perguntava-se ainda o filósofo –, as democracias saberiam dali por diante responder aos imensos problemas que tinham gerado a utopia que, no curso do tempo, se transformara no seu exato contrário e fora vencida? Conseguiriam por si sós, sem o medo incutido pelo adversário temível, ampliar as liberdades, enfrentar novas e velhas desigualdades que dividiam norte e sul do planeta e, ao mesmo tempo, voltavam a se ampliar no interior de cada sociedade, mesmo as do Ocidente desenvolvido?

Bárbaros e habitantes da cidade, para seguirmos a sugestão do sábio e a metáfora do poeta, não haviam sido jamais seres indiferentes uns aos outros. Os bárbaros de 1917, ao assaltarem os céus, invocavam frequentemente o extremismo jacobino da revolução burguesa de 1789. Distinguiam-se com veemência dos girondinos do próprio campo. A velha social-democracia, afinal, era o tronco comum de que agora se afastavam ruidosamente os bolcheviques, para quem todos os outros passavam a ser “renegados” da causa proletária. E sobre esses traidores deveria recair um anátema ainda mais virulento do que o dedicado aos inimigos de classe. Uma esquerda afeita ao confronto nascia aí, motivando seus gestos extremados com a expectativa messiânica da revolução mundial.

Nos anos 1930, em textos até mesmo de comunistas heréticos, impressiona o uso mais ou menos corrente de palavras como “total” ou “totalitário”. O seu marxismo, ainda que se desviasse da ortodoxia, também se pretendia a matriz integral de uma nova civilização. Ele bastava a si mesmo, recusava acréscimos externos. O Estado soviético, que parecia imune a crises como a de 1929, podia ter uma forma política tosca, primitiva. Não importava: havia quem dissesse, pragmaticamente, que a pior ditadura do proletariado era sempre preferível à melhor democracia burguesa...

A similitude com o Estado hitlerista era patente. O partido único, a arregimentação militarista das massas, o culto irracional ao líder carismático, entre outros elementos aterradores, confirmavam a semelhança e pretendiam atestar a obsolescência das formas democráticas. A superioridade racial apregoada de um lado parecia corresponder, grosso modo, à situação do lado adversário, em que uma classe supostamente universal construía seu próprio Estado e se arrogava o direito de submeter – ou liquidar, como no caso dos camponeses – grupos sociais inteiros.

No entanto, a esquerda jacobina convertida em Estado, que dividia o mundo em campos inconciliáveis e, por isso, era bárbara, tinha elementos que a levavam além do confronto e do desafio sectário. Às vezes, como no caso das frentes populares antifascistas, aproximava-se dos socialistas e dos “democratas burgueses” e via-se obrigada a questionar seus próprios dogmas, a imaginar caminhos diferentes do que tomara em 1917 e a levara a condescender com formas “totais” de poder. Apesar de si mesma – isto é, apesar dos traços odiosos da sua rudimentar construção estatal –, esteve maciçamente ao lado do Ocidente democrático e contribuiu de modo inestimável para vencer o mal absoluto. Stalin à parte, todo democrata em algum momento se sentiu drummondianamente irmanado “com o russo em Berlim”.

Esta breve memória talvez ajude a entender por que, depois do comunismo, há múltiplas razões para uma esquerda agora sem a menor complacência com as sociedades “totais”, sem excluir as que resistem anacronicamente. Nos países democráticos, as fúrias voltam a se desatar, os moedeiros falsos retomam o labor de sempre e os demagogos desempoeiram velhos figurinos. Por isso é preciso tornar à ideia da grande aliança contra todos os que se mobilizam para corroer as bases da democracia liberal.

 


Luiz Sérgio Henriques: A filósofa e o autocrata

Agnes Heller adverte que a democracia liberal é nossa única chance de sobrevivência

Talvez não seja vezo, vício, muito menos viés o que tem garantido no debate corrente a fortuna do termo “ideologia”, especialmente no seu mau sentido, aquele segundo o qual, se não formos capazes de um esforço severo e constante, terminaremos por ver o mundo com lentes deformadas ou mesmo de ponta-cabeça. A acreditarmos em Agnes Heller, filósofa de sólida formação marxista e há décadas influenciada pelo liberalismo político, passamos rapidamente de uma sociedade de classes para uma sociedade de massas, em que, se as classes obviamente não desapareceram, foram fortemente redefinidas e deixaram de ser percebidas como o motor único ou mesmo principal do comportamento político.

Neste contexto de massas, ideologias tóxicas de novo tipo, manipuladas por aventureiros, tomam a cena, insuflam atitudes irracionais e servem de escora para modalidades inéditas de tiranos e tiranias. As palavras de Heller, registradas por Le Nouvel Observateur e reproduzidas por O Globo, provêm de um dos vários laboratórios atuais dessas perigosas experiências, a sua Hungria natal. Nela, com efeito, Viktor Orbán, personagem com quem nos familiarizamos já no primeiro dia do ano, com sua presença na posse do novo presidente, radicaliza o projeto de democracia iliberal, oposto ao liberalismo não democrático que, segundo ele, assinalaria uma Europa extenuada, sem cultura e sem alma, termos afins aos do nosso ministro das Relações Exteriores.

A “democracia cristã” do autocrata húngaro nada tem que ver com grupos e correntes da mesma denominação que, no segundo pós-guerra, reuniram partes muito expressivas de eleitores influenciados pelo catolicismo, muitas vezes em confronto aberto, mas institucionalmente regulado, com setores do mundo laico, fossem eles liberais ou socialistas. Conflitos ásperos à parte, a velha democracia cristã incorporava amplos contingentes populares à vida do Estado democrático, vitalizando-o e tornando-o mais representativo, transformando-o, por conseguinte, na arena por excelência da disputa política civilizada. Nessa arena preciosa, resultado de longo e cruento percurso histórico, o conflito, então, poderia ser produtivo para todos, tal como provado por décadas de políticas de bem-estar social que não se restringiram à Europa ou aos Estados Unidos de Roosevelt, mas deixaram marcas por toda parte, até no Brasil.

A nova “democracia cristã”, ao contrário, gostaria de generalizar ideias fora de lugar e de tempo – ideologias, exatamente –, como, em particular, o recurso demagógico a egoísmos nacionais e a extremado conservadorismo de valores. O primeiro de tais recursos choca-se, evidentemente, com os traços de uma época em que o gênero humano, provavelmente pela primeira vez, deixa de ser construção mais ou menos abstrata dos filósofos e passa a ser realidade imediata para cada indivíduo, em qualquer canto que esteja. Difícil contornar essa evidência apontando o dedo contra “globalistas”, uma vez que cada país se vê às voltas com fenômenos de todo tipo que escapam às próprias fronteiras. A interdependência, por isso, é o horizonte do nosso tempo para o bem ou, certamente, para o mal, se não soubermos construir os instrumentos capazes de governá-la.

O conservadorismo de valores assenta-se, no caso de Orbán, e não só nele, numa religião singularmente reativa aos processos de modernização e secularização, além de amputada da dimensão solidária e fraterna que nos acostumamos a encontrar nos fatos religiosos. Não há aqui nem sombra de períodos marcados pelo ecumenismo ou pelo “diálogo” com os não crentes, mas, ao contrário, espírito de cruzada a ser invocado na perspectiva de uma guerra de civilizações. Imigrantes são mal-vindos, as religiões que trazem maculam a pureza dos valores locais, o multiculturalismo próprio de uma vida cosmopolita deve ser desprezado. E não é complicado, para demagogos, explorar ressentimentos incrustados no senso comum e produzir tiradas em série contra o “politicamente correto”, denunciado como insuportável “ditadura” de minorias, quando, nos casos melhores, ele é sinal de atenção e reconhecimento de sujeitos e realidades antes invisíveis.

Viktor Orbán, como dizíamos, não está só no mundo. Pertence a uma galeria de personagens autocráticos que pouco a pouco passaram a fazer parte das nossas preocupações cotidianas. Alguns deles, mais agressivos, certamente por agirem em contextos de tradições democráticas mais frágeis, chegaram a concretizar os elementos iliberais com que sonharam. Outros, como Trump ou Salvini, mesmo implementando políticas regressivas, veem-se constrangidos ou limitados por aquilo que se tem chamado de “regras não escritas da democracia”, as quais, materializando amplo consenso em torno das instituições, impedem que as liberdades morram, para aludir ao livro conhecido de Levitsky e Ziblatt. E não se entende muito bem por que o Brasil, segundo palavras recentes do presidente Bolsonaro, deva se aproximar de países, como esses, ideologicamente vizinhos. Só haveria perdas reais e ganhos imaginários, a não ser que a realidade passe a ser percebida de cabeça para baixo.

A voz da outra Hungria, a de Agnes Heller, adverte-nos que a democracia liberal é a nossa única chance de sobrevivência, ainda que nem todas as suas promessas tenham sido cumpridas nem tenham sido exploradas todas as dimensões da liberdade. Mas nenhuma hipótese de mudança social poderá doravante cancelar o regime de liberdades “liberais”, ao contrário do que políticas puramente classistas do passado admitiram e promoveram, com resultados em geral negativos ou até catastróficos. E não há “populismo dos povos” a ser contraposto ao “populismo ideológico” dos grupos de extrema direita. Mas essa é uma outra frente de combate ideal que se deve travar no âmbito dos progressistas. Incessantemente, aliás.

 


Luiz Sérgio Henriques: Os fatos da Venezuela

Absurdo drama humano, motivo de vergonha para seus promotores e quem lhes dá apoio

Certamente próxima do fim, mas sem que se possa excluir como desfecho uma intervenção externa ou uma guerra civil catastróficas, a tragédia venezuelana em curso põe de ponta-cabeça o mundo tal como o temos experimentado. É verdade que parte da esquerda global - seria mais apropriado falar de extrema esquerda - permanece irredutível na defesa do que seria uma “revolução nacional e democrática”, com todos os seus erros e até crimes, contra a ameaça iminente do “imperialismo”, acorrentando-se com cegueira deliberada ao destino da ditadura bolivariana. Não menos verdade é que, dada a gravidade dos acontecimentos, atores como Donald Trump e os que a ele se associam de forma subordinada podem apresentar-se, pelo menos taticamente, como defensores de uma agenda humanitária que raramente, até agora, deram mostras de considerar com seriedade.

Trump, afinal, é o político que constrói muros, mesmo quando na fronteira se amontoam refugiados de países centro-americanos literalmente devastados pela “guerra às drogas”. E o nativismo que apregoa é versão particularmente grosseira daquele “esplêndido isolamento”, uma das vertentes, ainda que não a única, do modo norte-americano de estar no mundo. O nacionalismo que pratica e, ao mesmo tempo, ajuda a difundir entre sócios menores hostiliza instituições multilaterais que, com todas as suas limitações, participam do “governo global” minimamente necessário numa fase histórica em que o mundo objetivamente se unifica, ao menos em termos econômicos, e a interdependência se afirma como possível fator de paz e entendimento.

Naturalmente, há razões geopolíticas de muito peso no movimento para além da própria fronteira, em direção ao sul do continente. Há motivos econômicos óbvios e há novos aliados ideológicos a serem mobilizados em ordem unida: a conjunção de astros aqui parece muito favorável, pouco depois do encerramento do ciclo dos governos ditos nacional-populares. Mas a justificativa imediata e, em seus termos estritos, rigorosamente defensável decorre de algo com que governos de direita e extrema direita dificilmente contam, a saber, uma emergência humanitária sem precedentes, acarretada, no caso, pelo colapso do frágil e ruidoso experimento de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Trata-se, em suma, de uma questão de direitos humanos ferozmente violados por uma ditadura que se apresentava, e se apresenta, como de “esquerda”, ainda que tenhamos de ampliar consideravelmente este último conceito para nele incluir expressões acabadas de caudilhismo, militar ou não, típicas da história do autoritarismo latino-americano. Para mencionar uma fonte acima de dúvida, ao tomar posse como alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, em setembro de 2018, a socialista chilena Michelle Bachelet teve palavras muito duras: em meados do ano passado, o êxodo venezuelano tinha dimensões assombrosas, atingindo até então cerca de 7% da população do país. Um êxodo causado pelo colapso econômico, pela falta de comida e de remédios, pela perseguição política pura e simples. Suas origens foram basicamente endógenas e não advieram de sanções ou pressões do poderoso vizinho do norte. Um absurdo drama humano, motivo de profunda vergonha para seus promotores diretos e para aqueles que ao longo de duas décadas lhes deram algum tipo de apoio.

Nenhuma possibilidade, por isso, de evocar o presidente Salvador Allende a propósito de aventureiros. Allende foi homem de Estado, que escolheu morrer com a democracia de seu país. A diáspora chilena seguiu-se à sua derrubada, diferentemente do drama venezuelano de agora. Por certo, Allende não está acima de exame crítico e menos ainda se presta à mitificação infantilizadora. O projeto com que passou dignamente à História - a construção do socialismo em regime de liberdades - era certamente inviável num tempo em que a potência dominante não permitiria outra Cuba no continente, embora houvesse distância imensa entre o ethos republicano do chileno e o caudilhismo “nacional-popular” característico de Cuba.

Tanto se tratava de personagem de outra envergadura que um destacado líder do comunismo histórico - talvez o último - tomou-o como inspiração para escrever sofridamente a propósito do 11 de setembro de 1973. Enrico Berlinguer, refletindo sobre os “fatos chilenos”, mostra então plena consciência do papel desempenhado tanto pelo PCI quanto pela Democracia Cristã no segundo pós-guerra. Os dois partidos rivais, que, no entanto, se entendiam e se condicionavam mutuamente, tinham sido praticamente os únicos recursos com que o país contara para se reconstruir depois dos 20 anos de fascismo e da catástrofe nacional por ele produzida. Por isso, qualquer avanço na conjuntura difícil dos anos 1970 só se poderia dar no quadro de amplo compromisso que resguardasse, em primeiro lugar, os institutos democráticos “clássicos”.

Impossível aqui avaliar as peripécias que frustraram generosos propósitos como os de Allende e Berlinguer. De resto, assim será sempre a história dos homens, fadada a não conhecer nenhum fim determinado - nem mesmo o “socialismo” como etapa última e superior -, mas por certo suscetível de equilíbrios mais justos e valores compartilhados, à medida que se afirmem os processos de democratização próprios da modernidade. A esquerda política, necessária “apesar de todas as quedas”, como no verso de Bandeira, está chamada a refletir impiedosamente sobre os “fatos venezuelanos”, sem minimizar as pesadas responsabilidades que recaem sobre parte de si mesma. Da extensão e da qualidade de tal reflexão dependerá a possibilidade de se recolocar coerentemente como fator de justiça e liberdade. Se não o fizer, continuará a deixar o caminho livre para autocratas capazes de manipular emergências humanitárias e redefinir direitos humanos, esvaziando-os de seu extraordinário universalismo.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, LUIZ SÉRGIO HENRIQUES É UM DOS ORGANIZADORES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

SITE: WWW.GRAMSCI.ORG


Luiz Sérgio Henriques: Sobre vieses e viseiras

Nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão

Há já algum tempo não temos sido poupados de incômodos vieses, viseiras e amarras ideológicas, a pesarem como bolas de chumbo, e nada parece indicar ares mais amenos nos dias que virão. Deixando de lado o intermezzo representado por Michel Temer, generaliza-se a ideia de que na troca de guarda, em si natural, entre os governos da era Lula e o novo governo da ultradireita, afinidades eletivas se substituem umas às outras sem um padrão racional discernível, trocam-se preconceitos tanto na política interna quanto na externa, num jogo de espelhos que pretende repetir-se indefinidamente e, com isso, deformar a percepção das prosaicas questões reais.

De nada fomos poupados – ideologicamente – nos anos de ascensão e auge do petismo. Seria natural, para ficar em política externa e nas afinidades que ela propicia, que um partido de esquerda – e de resto qualquer partido – buscasse contatos e relações com seus pares, especialmente na própria região. Provincianos como muitas vezes somos, esquecemo-nos de que a política tem constitutivamente um nexo nacional-internacional, e a troca de ideias, a busca de convergências e mesmo o apoio mútuo, respeitadas as normas constitucionais, constituem recursos preciosos para agremiações comprometidas com a estabilidade das respectivas democracias e, ao mesmo tempo, com a realização de propósitos mudancistas.

O que não era natural, e mais uma vez nos perderia, foi a associação entre partidos cuja natureza deveria ser essencialmente diversa: uma coisa é o “Ocidente” político, no qual felizmente nos encontramos desde 1988, outra é o “Oriente”, com suas revoluções nacional-populares, seus caudilhos que jamais se despedem, sua retórica “anti-imperialista” e a invariável denúncia dos “inimigos da pátria” e dos “agentes da CIA”. Uma vez afundado em tal terreno movediço, erguer-se daí requer as artes do Barão de Münchhausen, o que parece estar além das capacidades do atual grupo dirigente petista, como o comprova o apoio alucinado à violação maciça dos direitos humanos perpetrada na Venezuela de Chávez e de Maduro.

Uma esquerda tão desprovida, se não existisse, teria de ser inventada pela extrema direita que ora ensaia seus primeiros passos no governo do País. Deve-se constatar, de início, que a linguagem do poder, especialmente de vocação autoritária, nunca é muito original: também no universo da ultradireita temos de nos haver eternamente com inimigos internos e agentes de ideologias exóticas, como se homens e mulheres de esquerda não pudessem ser atores legítimos numa democracia digna do nome ou, ainda, como se fosse possível imaginar um Brasil sem Graciliano, Niemeyer, Portinari ou Gullar.

Mas não nos interessam tanto a cultura ou as infames “guerras culturais” que, envenenando generalizadamente o discurso público, poderiam justificar e até dar tons ainda mais obscuros ao proverbial pessimismo que orientou, ou desorientou, a obra de tantos pensadores que se debruçaram sobre a grande crise existencial moderna. Aqui não se trata de filosofia, mas da resposta dada por próceres do novo oficialismo à crise em curso da globalização – uma resposta mais vulgar, certamente, mas nem por isso menos capaz de incidir nos nossos destinos individuais. Curiosamente encontraremos pontos de contato significativos entre as posições extremadas, que, como sugere o senso comum, muitas vezes se tocam e vivem parasitariamente umas das outras.

Em lugar do culto – retórico e irresponsável – da “revolución” ou, no mínimo, de uma América Latina em pé de guerra contra o “neoliberalismo”, tem-se agora a proposição paradoxal de um nativismo extremado, mas associado subalternamente ao nacionalismo de feitio trumpista, com tinturas de ideologia religiosa. O “Deus de Trump” vê-se convocado a deter o declínio do Ocidente diante do que outrora alguns chamavam pejorativamente de “perigo amarelo”. E o Ocidente em estado de sítio não é mais o território ideal em que se entrelaçaram, em percurso acidentado, mas afinal virtuoso, sucessivas camadas de direitos civis, políticos e sociais, com a participação decisiva das classes populares – em outras palavras, de setores que podemos considerar genericamente como “esquerda”, em qualquer uma das suas várias florações e fossem quais fossem suas contradições e seus limites.

Estamos longe, pois, do que um representante da ala ultraliberal do bloco no poder, recorrendo a um intelectual relevante como Popper, evocava como “sociedade aberta”. Talvez não seja forçar demais o paralelismo afirmar que, a partir de Trump e seus avatares de menor importância, o que temos é uma versão arcaica do nacional-popular. O “povo-nação” aqui aparece em roupagem essencialista: uma metafísica arrogante, mas sombria, que só se pode expressar politicamente como nacionalismo ressentido, construtor de muros e fomentador de conflitos. Não por acaso, a América de Trump hoje rechaça o mundo que ela própria, nos momentos em que contava – também – com admirável soft power, contribuiu para criar, dando alguma ordem possível às coisas relativas à nossa humanidade comum.

Não se pode saber muito bem o que o País teria a ganhar emulando a precária trilha trumpista rumo a uma América do Norte momentaneamente desencontrada de si mesma e dos seus ideais fundadores. Mas a ideologia, como ninguém ignora, não apenas mascara ou dissimula interesses que um indivíduo ou um grupo não têm coragem de expor à luz do dia. Mais além disso, ela desenha a estrutura mental em cujo contexto percebemos dramas e fatos da vida. Enquadra hábitos, sugere inclinações, motiva afetos. Por isso, vieses e viseiras ideologicamente fossilizados, caso se generalizem, são fatores de regresso civilizatório. Seria bem exagerado dizer que passamos do ponto de não retorno, mas, ao que parece, Darwin não anda mais na zona de conforto.

 


Luiz Sérgio Henriques: Política e valores

Com o bloco vitorioso em 28 de outubro, difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente

Buscar clareza e coerência em planos, projetos e ações pode ser algo muito difícil ou impossível em meio a este mal-estar generalizado contra o “sistema”, quando mapas de voo não existem ou são trocados e retocados ao sabor das circunstâncias, como vimos com os programas na última campanha presidencial. Personagens antes evidentemente postos à margem passam a protagonistas, figuras da tradição soletram apressadamente o novo vocabulário “antiestablishment”, tendências e visões de mundo se misturam sem muita lógica e fazem nascer um mundo mais imprevisível do que o habitual.

Examinemos algumas referências notórias do bloco vitorioso em 28 de outubro. O intelectual ultraliberal, ele próprio um emblema da reforma que se quer imprimir à economia, promete-nos uma “sociedade aberta”, que não se sabe como conciliar com a retórica repressiva do líder político que avaliza perante os “mercados”. Esse mesmo líder, de formação corporativa e, à sua maneira, laica, escora-se em apoiadores religiosos que não raro parecem querer guiar-se por uma noção arcaica de “poder direto”, ou quase isso, na pretensão de moldar e controlar, por via legislativa, costumes e comportamentos que países livres delegam ao arbítrio dos indivíduos. E não por acaso uma anti-ideologia de gênero, tão confusa e mal explicada quanto sua antípoda, ameaça trazer prejuízos generalizados para os direitos civis.

Mas não é só. Um anticomunismo extravagante pretende servir de cimento ao novo bloco: uma dessas ideias flagrantemente fora de lugar, incapazes de criar um sistema de orientação para a sociedade e o próprio Estado, uma vez que temos os pés e a cabeça projetados muito além da guerra fria e da contraposição entre ordens antagônicas que ela supunha. Não se pode imaginar, por exemplo, que uma anacrônica Cuba nos ameace de algum modo, como modelo de transformação ou de organização social, ou que a verdadeira revolução comunista do século 20 tenha ocorrido em 1949, e não em 1917, de tal forma que devêssemos agora desafiar o dragão chinês, quando antes tínhamos de nos alinhar automaticamente contra o bolchevismo russo.

Esse emaranhado de ideias e situações, hoje envolto numa pesada capa de chumbo ideológica, tem dado corpo a debates infindáveis e muito pouco produtivos no plano da chamada guerra de culturas ou de valores. Em geral, o palco é o fornecido pelas redes, o esquematismo é a regra, os contrastes se extremam até o ponto da caricatura e da demonização. E quando entramos com ingenuidade nesse conflito tal como ele nos é dado, terminamos por nos vestir com apetrechos de outrora, como se “fascistas” e “comunistas” estivessem fadados a se engalfinhar indefinidamente nas ruas virtuais e – pior ainda – não virtuais, fazendo confluir potencialmente a violência simbólica e a física.

Há, obviamente, quem ganhe e quem perca com a atmosfera de conflito “mortal” entre valores. Ganham sobretudo os que apostam na degradação da vida democrática tal como se configurou nas instituições e nos procedimentos estabelecidos a partir da Reforma, do Iluminismo e das revoluções liberais do século 18, em cuja sequência cabe inserir a ideia moderna de esquerda e o próprio marxismo. Este último – não nos esqueçamos –, ao surgir como expressão dos setores subalternos do mundo industrial, pode ser entendido como uma potente heresia do liberalismo ou, em outras palavras, como a ala “esquerda”, mais extrema, dos processos de secularização e laicização, de modo que não é possível extirpá-lo da cena pública como indesejável elemento de perturbação.

Intrinsecamente plural, aliás, tal próprio processo de secularização não pode ser pensado como cancelamento da “ilusão religiosa” ou simples afirmação do ateísmo. As religiões, de fato, não são expressão da infância da humanidade ou dos períodos menos iluminados pelas ciências e pelas correntes radicais do humanismo. Se um valor estratégico como a tolerância, em todos os seus múltiplos sentidos, nasce historicamente como solução para as guerras de religião, confinando esta última à esfera privada e desligando-a dos poderes temporais, o vigoroso retorno da dimensão religiosa a que temos assistido assinala uma inflexão interessantíssima, a ser pensada e vivida como possibilidade de aprofundamento da nossa humanidade comum.

Na verdade, o moderno laicismo nada tem de “ateu”, ainda que, sem dúvida, incorpore plenamente os que não creem. Nutre-se do pleno reconhecimento do papel público das religiões, aceitando alguns de seus princípios como fontes constitutivas do “partido da liberdade do espírito”, para usar uma expressão do socialismo democrático contemporâneo de vocação nitidamente ocidental. E por isso aquele tipo de laicismo perde com as instrumentalizações ideológicas rasteiras do fenômeno religioso, que suprimem ou dificultam o diálogo e a compreensão mútua. Perde, em resumo, com a tal guerra de valores, bem como com os anátemas e as exclusões que ela incessantemente repõe em circulação.

Difícil exagerar as dificuldades que teremos à frente. Alternativas políticas ou econômicas propriamente ditas, que, mesmo operacionalmente imprecisas, ambicionam mudar a face do capitalismo brasileiro, têm convivido no espaço público com delicados temas éticos, agitados muitas vezes de forma superficial, quando não leviana, à maneira de memes de internet ou bravatas politicamente incorretas. Tais aspectos eticamente relevantes também deixam marca em políticas públicas que darão um sentido regressivo ou inovador às nossas relações sociais cotidianas, ao modo como nos comportamos uns com os outros. Os democratas devem não só avaliar os resultados práticos da reforma que se pretende, como também impedir que se enxovalhe a ideia da História como criação acidentada, mas permanente, de valores já irrenunciáveis, como, entre outros, o da tolerância.


Luiz Sérgio Henriques: Além das culturas que dividem

A persistência das divisões atuais somente nos garantirá uma continuada decadência

Pode suceder que culturas políticas fortemente divisivas, mais perto do seu ocaso, descubram a pertinência de ideias que superem ou pelo menos subordinem a linguagem de parte ou facção. O comunismo do século 20, uma expressão desse tipo de cultura, ainda nos anos 1930 teve momentos positivos, como nas frentes populares, quando, com idas e vindas, firmou a aliança com os liberal-democratas e muitos outros, contribuindo para a derrota do nazi-fascismo. E saltando algumas décadas, já a caminho do fim, do interior da sua vertente ocidental brotaria a “heresia” eurocomunista, que afirmava, dessa vez com consistência, a universalidade da democracia política.

O panorama, assim, abriu-se para a recomposição com os social-democratas. No Ocidente, com suas instituições progressivamente ampliadas e sua “sociedade aberta”, se se quisesse manter o uso do termo “socialismo”, então não haveria dúvida: a democracia passaria a ser o caminho do socialismo, não para o socialismo. A “meta final” ficava em segundo plano ou mesmo desaparecia. A travessia era tudo, e para percorrê-la devia-se deixar de lado a bagagem autoritária do passado.

Idealmente, um partido como o PT, criado no momento em que se saía de uma ditadura e, ao mesmo tempo, se prenunciava o fim do comunismo, deveria ter tido nesse conjunto de valores um alicerce bem assentado. A formação de seu grupo dirigente e a educação de seus militantes se valeriam dos recursos inéditos que o País redemocratizado podia oferecer. Nada de culto à personalidade nem formação de subculturas dogmáticas e excludentes - ou, para usar termos mais atuais, o encerramento em “bolhas eletrônicas”, que desprezam a dúvida e erguem muros tão ou mais altos do que os de pedra e cal.

Não foi o que aconteceu. O novo partido permaneceu atado a um sistemático espírito de cisão que o impediu de participar positivamente de momentos cruciais da transição. Chegou a votar contra o texto da Constituição! Parecia cuidar de si próprio, absorvido na dialética interna de grupos e correntes que só se uniam em torno do líder promovido a mito e, posteriormente, a mártir. Sua excepcionalidade estava garantida a priori e dela viria o resgate de um país perdido em séculos de História infeliz. A recusa de alianças era marca registrada. E suas atitudes anunciavam uma guerra “contra tudo”, muito próxima, por sinal, dos populismos contemporâneos, inclusive de direita.

Pode-se perguntar sobre as razões do crescimento eleitoral até o grande êxito de 2002. Haveremos de convir que prometer um novo início em tempos de mal-estar da democracia é uma jogada de mestre. Essa mesma sabedoria tática levou à assimilação do programa de bolsas e à demonização do adversário, sem que se tornasse, no entanto, uma visão estratégica de Estado e de sociedade. Mas houve coisa mais séria, se cuidarmos do nexo nacional-internacional. O novo partido associou-se, e aí já sem sabedoria alguma, ao caudilhismo latino-americano de viés “nacional-popular”, que hoje, entre outros fracassos, nos põe diante da catástrofe sem fim da Venezuela.

E foi assim que o petismo, um neologismo sem força para designar uma cultura política amadurecida, viria a ressuscitar a concepção maniqueísta da velha esquerda, ainda que sem o pathos revolucionário. Acossado por dificuldades judiciais, iria mais adiante entrincheirar-se numa visão redutivamente classista do Estado “burguês”, de cujos mecanismos supostamente monolíticos passou a se dizer vítima. E as consequências não se deteriam nas fronteiras partidárias: a linguagem “radical” terminou por gestar, como reação quase automática, um antipetismo avassalador, regressivo e autoritário.

Em ambos os casos, sucessos eleitorais à parte, podemos reconhecer a mesma dificuldade de articular um discurso complexo sobre o País e, afinal, dirigi-lo com o método do consenso. De fato, opondo agressivamente mito contra mito, doutrina contra doutrina, a emergente “narrativa” antipetista tem análogas pretensões refundadoras, que num certo momento chegaram a expressar-se na ideia estranha de uma Constituinte de sábios. O hibridismo vem a ser sua marca constitutiva e o sinal de alerta para os mais atentos: o ultraliberalismo de seu expoente econômico não combina com o histórico estatista da liderança máxima e seu entorno de militares reformados. A política que apregoa é a antipolítica dos nossos tempos: uma razzia dirigida contra o “sistema”, sem que se saiba ao certo, ou sem que se saiba absolutamente, qual material será empregado na reconstrução. Não é certo que tenha qualidade melhor.

Este vazio que acompanha toda incursão populista contra sistemas políticos em crise também aqui se busca recobrir com o apelo ao antimoderno no plano das crenças, dos costumes e orientações de valor. O motivado interesse por tudo o que define o perfil de uma sociedade tolerante - direitos humanos, pluralidade de estilos de vida, respeito aos valores de crentes e não crentes - se vê abafado pelo fragor de uma “guerra cultural” inédita entre nós, mas já testada, e aprovada, em outras latitudes. A sensatez parece bater em retirada diante de ideólogos que simulam viver ou, o que é mais grave, acreditam viver nos tempos sombrios da contraposição mortal entre capitalismo e comunismo.

Se quiser ir além do petismo, a esquerda terá pela frente uma longa temporada de autorreforma - na verdade, um verdadeiro processo constituinte, que ela irresponsavelmente andou receitando para o País. Com métodos, categorias e linguagem renovada, poderá então contribuir para um diálogo vivo entre culturas e tradições, e até para a mútua “contaminação” entre elas, como convém às sociedades da diversidade. De resto, a persistência das divisões atuais só nos garantirá uma continuada decadência para a qual - até hoje - nosso país não parece ter sido talhado.


Luiz Sérgio Henriques: A degradação do discurso público

A democracia está sob cerco dos autoritários que não nos permitem menosprezar os riscos

Não é simples nem alentador examinar termos e condições do discurso público neste momento, e não só no Brasil. Numa época de intensa transformação, como poucas o foram, o medo do futuro se instala, a capacidade de governo e autogoverno diminui até parecer negligenciável, atitudes irracionais se espalham como chamas, quando não são irresponsavelmente atiçadas. As formas da democracia, que demandam certa dose de confiança para florescer, veem-se sob ataque frontal. Há quem diga que a ameaça, agora, vem da extrema direita, como antes vinha do que podemos chamar, num só bloco, de comunismo – ou melhor, a forma assumida pelo comunismo histórico, ao relegar a segundo plano uma relação positiva com as liberdades próprias do liberalismo.

Não é hora de meios-tons, nuances e sutilezas. Pulsões extremistas parecem soltas ao redor. A esfera pública se enche de narrativas e discursos de ódio. Pode ser que uma esquerda algo desorientada se tenha extraviado, nestes tempos pós-modernos, em reivindicações identitárias parciais, abandonando a dimensão universalista que sempre caracteriza as fases de avanço civilizatório e fornece o porto seguro para a ampliação dos direitos das minorias. Registrada esta crítica, deve-se logo após apontar que muito mais perigosos são a ação e o discurso de quem, detendo substanciais recursos materiais e simbólicos, leva adiante sua própria e feroz política de identidade. Donald Trump é o patrono mais em evidência da causa, mas também aqui, no Brasil, já se ouvem opiniões bizarras que clamam contra a opressão de que seriam vítimas, sabe-se lá onde, homens brancos e heterossexuais.

Uma característica recorrente do discurso público tem sido, nele, a falta de um componente de catarse. A palavra tem ressonância clássica e diz respeito ao efeito de purificação sofrido pelo espectador da tragédia. Um nobre efeito, portanto, extraído da experiência de terror e medo posta em cena pelos grandes trágicos. Na psicanálise, muitos séculos depois, a catarse viria a indicar um trajeto de cura, quando o sujeito vê aflorar à consciência, em meio ao sofrimento, conteúdos reprimidos e fora de seu controle. Um processo de crescimento individual, de domínio racional sobre forças e motivos antes desconhecidos.

Na política, a catarse também seria mais tarde ressignificada para designar um percurso aberto para grupos sociais e políticos mais amplos: uma classe social, um partido e até um Estado. O conceito aqui é relativamente menos difundido, mas vale a pena nos determos um pouco sobre ele, dado o caráter essencial que adquire como garantia de convivência civil e possibilidade de encaminhar o conflito de indivíduos e grupos sociais.

Sem a catarse – adverte-nos Antonio Gramsci, o pensador que melhor estudou o conceito – forças políticas não conseguem superar o estágio mais elementar de sua razão de ser. Dão voz, quando muito, aos motivos econômico-corporativos, que podem até se justificar num plano material imediato, sem que permitam elaborar mediações políticas e culturais sofisticadas, capazes de convencer aliados e, mais ainda, persuadir o conjunto da sociedade a seguir um determinado rumo melhor para todos, não apenas para uma força em particular. Tal elaboração é um processo complexo, requer a ativação de ingentes recursos intelectuais, bem como a capacidade de superar egoísmos particularistas e de se mover em campo aberto.

No tempo de Gramsci havia uma conexão bem mais direta do que hoje entre partido e referente social, entre grupo político e grupo econômico. Uma conexão que dava certezas ora insustentáveis, como a existência da classe universal dotada de um programa para abolir toda a sociedade classista. Como se sabe, na sociedade líquida em que estamos imersos, tal relação se atenuou ou mesmo, quem sabe, se perdeu. Indivíduos, agora, contam como nunca, contam tanto ou mais do que os grupos sociais, e é preciso saber a linguagem dos direitos para levar adiante a boa luta dos nossos dias. Mais até do que naquela já distante modernidade gramsciana, a catarse implica, sobretudo, renúncia à força e à violência como princípio lógico de pensamento e mola propulsora da ação, ainda que em torno de nós sejam em tão grande número os cultores do ódio, da discriminação e da violência.

Com efeito, entre nós e um pouco por toda parte está a democracia sob cerco dos autoritários – de direita ou de esquerda –, que não nos permitem baixar a guarda e menosprezar os riscos. O discurso público reflete agudamente esse cerco e nessa história não há inocentes. Em nosso país, sob a capa de um radicalismo primitivo houve, antes, a virulência das corporações em defesa de antigos e novos privilégios. A catastrófica divisão da sociedade nada teve de revolucionário, nem no antigo sentido da palavra “revolução” nem no novo, que ainda não se conhece, mas, com certeza, dispensará a violência. Não houve a criação de conceitos ético-políticos, a busca de consensos amplos, a proposição de avanços coletivamente experimentados como tais.

E a reação, como era previsível, não iria fazer-se esperar. Já agora, entre outros sinais, uma violência simbólica inusitada – que é preciso apreender em toda a extensão para dela nos distanciarmos – reside na ameaçadora coreografia de fuzis em posição de tiro que capturou a imaginação e a vontade de tantos cidadãos, na expectativa de uma redenção pela submissão a um mito irracional. Nenhum refinamento ou elaboração catártica, mas, sim, a proposição da força em lugar do pensamento, a destruição da razão em lugar da sua primazia.

O jogo, contudo, não está jogado e não termina neste outubro. Homens e mulheres razoáveis de todos os quadrantes estamos chamados a tecer novos enredos e narrativas – em interminável diálogo plural, como doravante haveremos conscientemente de fazer.


Luiz Sérgio Henriques: A refundação necessária

Reconectar partidos e ideias requer a decisão de nos pormos nos marcos definidos em 88

Há formas e formas de encarar situações críticas, e lá diz o poeta que mesmo um copo vazio, bem observado, está cheio de ar. Em meio às agruras presentes, pressentimos, às vezes sem plena e cabal consciência, que a Carta de 1988 é o que impede sobressaltos, como a convocação de constituintes exclusivas para tal ou qual finalidade, especialmente a reforma política - que há de vir, mas por outros meios. Entre candidatos presidenciais bem posicionados, existem os afeitos à ideia de aumentar perigosamente a eletricidade ambiente, tornando-a mais “intensa”, seja qual for o significado disso.

Afinal, vivemos tempos de crise das democracias e os remédios que se aviam em laboratórios de fundo de quintal nem sempre trazem a cura, quando não são, como no caso dos populismos, piores do que o próprio mal.

Paradoxos não faltam. As instituições de controle se ativaram como nunca. Excessos à parte, puseram a nu mecanismos de financiamento político-partidário de cuja existência suspeitávamos, sem ter a exata noção de seu amplo poder corrosivo. Grupos dirigentes inteiros foram chamados às barras da lei, o que desarticulou alguns dos mais importantes partidos da redemocratização e os respectivos projetos de poder. Ao mesmo tempo, o ambiente de terra arrasada daí nascido é o mais propício a aventureiros de todos os matizes, que se alimentam da antipolítica que eles mesmos semeiam, ao se colocarem “contra tudo o que está aí”. Esta é a hora clássica dos demagogos.

Se as instituições de fiscalização vieram para ficar, com suas exigências de controle e transparência, o sistema político reage e se reagrupa como pode. Tem a seu favor o fato óbvio de que não existe democracia sem partidos e sem Parlamento digno do nome.

Velhos comunistas costumavam dizer que a mais medíocre das “democracias operárias” era preferível à mais pujante das “democracias burguesas”. Devemos parafraseá-los em outro sentido: do ponto de vista de uma vida civil moderna, como a que precisa existir no Brasil, não haver democracia parlamentar, verdadeiramente livre e plural, é o pior dos mundos.

Como dissemos, o establishment reage, vale-se das regras de financiamento exclusivamente público, aposta na maior visibilidade dos detentores de mandato, de modo que se vislumbra um nível baixo de renovação do Congresso e das assembleias estaduais. Eppur si muove, e algo como um processo constituinte, nada espalhafatoso, mas quem sabe promissor, pode estar ocorrendo sob nossos olhos. Este processo, distante de qualquer subversivismo rupturista, atinge um dos pilares da vida institucional: exatamente, o sistema de partidos, às vésperas de ser - em parte - racionalizado com a cláusula de barreira já prevista para este outubro.

Regras, quando pertinentes, costumam ser bem mais do que meros artifícios técnicos. Já que o voto é livre e as urnas são imprevisíveis, impossível dizer quantos e quais partidos terão plena existência parlamentar e assim poderão condicionar, positiva ou negativamente, o futuro programa de reformas.

Sabe-se apenas que serão em número bem menor do que as atuais três dezenas. Deixando de lado qualquer previsão minuciosa, aqui propomos um mapa provisório do sistema de forças em surgimento, apontando alguns dos prováveis rumos à frente.

Já temos de nos haver com uma extrema direita competitiva - e agressiva - pela primeira vez desde a redemocratização. O partido ou grupo de partidos que nesta área se firmarem estarão em linha com tendências globais. Não por acaso seu líder se derrama em elogios à figura tutelar de Trump e tenta capitanear uma versão nativa da Christian Right, com “Deus acima de tudo”. Será capaz de dirigir toda a sociedade com base em valores que dificilmente seriam os de uma apregoada “sociedade aberta”?

Partidos tradicionais, como PP, DEM e em certa medida MDB, vivem uma versão peculiar do dilema dos velhos partidos operários, quando se dizia que as ideias deviam vir “de fora” do aparelho partidário.

Veem-se assediados por vozes e movimentos que postulam um liberalismo distante das esferas do Estado, nas quais aqueles partidos se movimentaram até hoje com maestria e conhecimento de causa. A capilaridade que detêm parece condenar ao insucesso as novas vozes, mas, sem estas, organismos tradicionais caducam e morrem, antes de construir suas pontes para o futuro.

Este “centro ampliado”, de resto, é vital para barrar a pretensão hegemônica da ultradireita, mas não basta. A revitalização do PSDB será requisito para dar gravitação a uma frente democrática de novo tipo, com soluções positivas para as urgências econômicas e sociais do País. Nascido de notável constelação de intelectuais e com a vocação de representar as camadas médias modernas, um bom desempenho tucano nas urnas recolocaria o dilema deste partido, a saber, estar no governo e não desaparecer da sociedade. E desta vez sem espaço para o erro.

Tal como da extrema direita, pouco se pode esperar da esquerda dominante, pelo menos por ora. Até por uma questão geracional, teria cabido aos grupos dirigentes do petismo renovar a política e dar-lhe novo fôlego. Aqui, sim, teria sido necessária uma transformação que liquidasse mitos revolucionaristas e impedisse seu reaparecimento, ainda que só para fins de retórica ou de sustentação a toscos projetos externos, como o bolivarianismo. Uma missão que o petismo deixou de cumprir - e sem refletir sobre este descumprimento ele dará mil voltas sem sair do lugar.

Reconectar partidos e ideias - de preferência a ideologias -, ação e programa, sociedade civil e sociedade política requer a decisão de nos pormos nos marcos constitucionais livremente definidos há 30 anos. A República não precisa de refundação; os partidos que deveriam vertebrá-la, sim. Distinguir uma coisa da outra é um dos modos de separar amigos e inimigos da sociedade aberta.