Lúcio Flávio Pinto: Lula e o tempo perdido

Ao se homiziar, desde ontem à noite e até agora, no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo, na Grande São Paulo, Lula não apenas buscou um bunker para resistir à ordem de prisão expedida contra ele pelo juiz Sérgio Moro, levando a tensão ao máximo para dela tirar proveito político e lançar sementes para uma nova colheita, sem apreço pelo interesse público e o bem coletivo. É Lula, o supremo.

Parece também ter feito um astuto movimento simbólico, de volta às origens, para se banhar na água pura que já correu pela sua biografia. Para se lavar das nódoas da sujeira, materializada na sentença condenatória por crime de corrupção que o persegue.

Lulistas em geral, sejam petistas ou não, continuarão a bater na mesma tecla; de que o guia dos povos é vítima de uma conspiração das sórdidas elites. As que se tornaram conhecidas por seu novo prontuário criminal, que ele beneficiou em muito maior dosagem do que o povo humilde e trabalhador.

Povo que continua a lhe delegar poderes e credibilidade pelos benefícios realmente recebidos (que lhe foram sonegados pelas mesmas elites, sobretudo os tucanos emplumados e perfumados), mesmo sendo gorjeta em relação às centenas de bilhões de reais que foram parar nos bolsos polpudos dos condutores das "multinacionais brasileiras" gestadas pelos dois governos do PT (e que se liquefizeram sem o aditivo estatal).

A volta à origem é uma busca do tempo perdido e das oportunidades oferecidas pela história, antecipadamente condenada ao insucesso por sua irrealidade. A remissão dos oito anos de Lula, em conjunto com os seis anos de Dilma, perverteram a imagem do líder carismático, dos maiores políticos da república.

Os autos dos processos contra Lula estão recheados de provas contra a sua condução dos negócios do Estado. Quem vier a escrever uma biografia competente dele passará por esse lodaçal, no qual não há inocentes nem heróis.

Beneficiado por uma democracia dotada de todas as formalidades requeridas por esse sistema político, Lula percorreu cada uma das etapas do processo judicial, intervindo na produção de provas através de advogados famosos e competentes. Ao final do primeiro capítulo, foi condenado pelo juiz singular.

Recorreu tantas vezes quantas lhes ofereceu a lei processual, Perdeu de goleada, de 5 a 0 no STJ, depois de 3 a 0 no TRF da 4ª região. Seria tão perfeita a conspiração das elites que ele só conseguiu placar apertado no leniente STF?

Derrotado em três instâncias e ainda contando com a possibilidade de novos recursos, sacados com desprezo pela razão de recorrer, agora Lula não aceita mais as regras objetivas da justiça e adota suas próprias leis, promulgadas no seu bunker sindical. Ainda parece acreditar na possibilidade de recuperar a pureza inicial, fazendo parar o curso da história e a reescrevendo conforme seu desejo soberano.

Lula, que quase nada leu ao longo da vida, não decorou a lição de Marx aplicada à sua biografia. Já foi tragédia e drama. Agora, é farsa.


Lúcio Flávio Pinto: Amazônia, a terra do bandido

Líder em trabalho escravo, em violência no meio rural, em pistoleiros de aluguel, em destruição da natureza, em educação ruim, em precariedade de serviços e saneamento básico nas cidades, em saúde pública — a lista de fatos desabonadores em uma agenda cotidiana na Amazônia é extensa e assustadora.

Em algumas situações e em alguns lugares, parece que a defasagem entre a Amazônia e as áreas mais desenvolvidas do Brasil, no Sul e Sudeste (e mesmo em suas áreas imediatamente periféricas, como no Centro-Oeste), é, mais do que de dezenas de anos, de século — ou de séculos. Cumprir as leis parece ser um exagero, um excesso de suscetibilidades, iniciativa incabível, aspiração ilegítima.

Garimpeiros que extraem ilegalmente ouro do fundo do rio Madeira, valendo-se de balsas velhas, se apropriando de um bem que só pode ser explorado com autorização estatal, poluindo as águas e contaminando os peixes, quando são punidos por sua flagrante ilegalidade reagem com fúria, sentindo-se no direito de destruir bens do patrimônio público e ameaçar os servidores que cumprem a lei, como aconteceu duas semanas atrás

Madeireiros apanhados no interior de unidades de conservação da natureza ou em reservas indígenas, a abater e arrastar árvores que levaram décadas para atingir a maturidade e se integrar num conjunto harmônico, que precisa ser mantido na sua integridade, partem para atos de vandalismo e mobilizam a população da área para protegê-los, embora estejam se apropriando de um bem nobre em benefício exclusivamente deles, como aconteceu mais atrás na rodovia Cuiabá-Santarém.

Apesar da evolução nas leis (principalmente ecológicas) e na fiscalização para o seu cumprimento, além dos números da grandeza crescente da atividade produtiva, quem anda pela região tem uma sensação de insegurança, de atraso e de precariedade. Um clima de tensão e agressividade que distancia a Amazônia da posição das regiões mais desenvolvidas dentro e fora do Brasil.

Com olhos para ver, constata-se que os sinais de enriquecimento e progresso são precários, transitórios. Como se o incremento econômico entrasse por uma porta e saísse por outra, sem se enraizar de forma perene na condição de verdadeiro progresso. Indo gerar seus melhores efeito à distância, frequentemente além-mar.

Esse mecanismo se alimenta da condição de fronteira imposta à Amazônia e do modelo colonial de exploração das suas riquezas, que só geram efeito multiplicador fora dela. A fronteira deve ser amansada pelo bandido antes que chegue o mocinho, disse o economista Delfim Netto, no auge do seu poder, sob o regime militar, na década de 1970 (quase tão forte quanto sob o PT de Lula e Dilma, de 2003 até 2014). A colônia deve, sobretudo, gerar dólar, determinou o II Plano de Desenvolvimento da Amazônia (1975-1979), elaborado pela Sudam, a agência federal de Brasília no sertão amazônico. Essas regras prevalecem até hoje.

A ditadura acabou e seis presidentes se sucederam em 32 anos de democracia, eleitos por quatro partidos diferentes, de um extremo a outro do espectro político e ideológico. Mas a Amazônia continua a ser uma fronteira de natureza colonial, com vocação imposta: produzir bens de aceitação no mercado internacional, intensivos em energia. Fora desse circuito favorecido, que o caos siga seu curso no restante das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.

Não importa quem esteja na ponta dessas frentes de penetração aos extremos dessa vasta fronteira, que, só no Brasil, constituiria o segundo maior país do continente: posseiro, colono, madeireiro, garimpeiro, minerador, João da Silva ou sociedade anônima, todos agridem a natureza, modificam radicalmente a paisagem, investem furiosamente contra o ambiente, passam por cima dos nativos, ignoram que há história realizada por eles e seguem para objetivos previamente definidos, independentemente do conhecimento (precário ou falso, quando existente) sobre cada uma das partes dessa vasta Amazônia.

A fronteira amazônica é definida por uma vertente ancorada na doutrina de segurança nacional. É o lema dos militares abrindo estradas de penetração pelo centro desconhecido da região: integrar para não entregar. Haveria uma permanente e perigosa ameaça de internacionalização a exigir do governo central a expansão da população para áreas ditas vazias e fazê-las desenvolver uma atividade qualquer de fixação nesses locais, já que a terra nua não tem valor (é o conceito do VTN). Só assim os ameaçadores vizinhos estrangeiros ou os distantes povos imperialistas deixariam de se aproveitar desses “espaços vazios” para usurpar os brasileiros e anexar sua reserva de futuro.

A história real já se encarregou de desmentir essa geopolítica. O exemplo máximo foi a possibilidade que o governo imperial brasileiro abriu para a Inglaterra, maior potência no século XIX, para estabelecer um governo metropolitano na Amazônia, a partir da repressão aos cabanos. Ao invés disso, os ingleses mandaram seu banco para financiar a extração da borracha e garantir sua supremacia nesse comércio.

Essa teoria geopolítica tem valor utilitário. Esgrimindo a cobiça internacional como ameaça iminente e constante, a ação nacional integradora a qualquer preço se legitima. Ela faz a remissão dos males a cada dia em que se derrubam centenas ou milhares de árvores em floresta nativa. Tudo bem: é para proteger a Amazônia, mantendo-a nacional. E cada vez menos Amazônia.

Os atos violentos dos últimos dias mostram que, em cada um dos locais de conflito, a situação real difere muito dos relatos que dela são feitos e do diagnóstico produzido à distância. Os grileiros de terras, os madeireiros clandestinos, os garimpeiros ilegais e vários dos personagens de destaque e poder já não agem isoladamente, Passam a formar organizações criminosas, para usar a expressão corrente, manipulando inocentes úteis ou insuflando revoltas procedentes, em grande medida produzidas pela insensibilidade do poder central.

Mais e mais me convenço de que a única saída com efeito prático, embora de mais longa maturação, com a força e as limitações de uma utopia, é substituir os agentes que se encontram na linha de frente desse avanço sobre as áreas pioneiras por pessoas qualificadas a entender a região e utilizá-la da melhor maneira possível.

Seriam — como já sustentei em artigo anterior — os assentamentos científicos, a que dei o nome de kibutz, inspirado no espírito e na mística do exemplo de Israel em outra fronteira, a do deserto. Ao invés de seguir pelo rastro da destruição praticada por todas as frentes de ocupação, eles provocariam uma onda de saber em sentido inverso: do ponto mais avançado da penetração para trás, numa maré de saber a arrastar e lançar a irracionalidade para fora da Amazônia.

O silêncio à proposta dói, como o retrato de Itabira no retrato poético de Carlos Drummond de Andrade.

* Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e do blog Amazônia hoje – a nova colônia mundial. Entre outros, é autor de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).