Fernando Gabeira: O capitão combate a verdade

Ao lado do armamento da população, esse é um passo decisivo rumo a um governo autoritário

“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Bolsonaro venceu as eleições citando com frequência esse versículo de João. No entanto, não se conhece na História moderna do Brasil um governo que tenha combatido a verdade em todos os níveis.

Os números do desemprego, compilados pelo IBGE de acordo com métodos internacionalmente reconhecidos, foram negados por Bolsonaro. O indice de desmatamento na Amazônia obtido com ajuda de satélites foi contestado por Bolsonaro e o cientista Ricardo Galvão, demitido. Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo.

A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais.

Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classifico como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso.

Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal

A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.

Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro.

Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas ss de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.

O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia.

Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência.

O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso.

A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros.

A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.

Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade.

Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.

Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”.

Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.

*Jornalista


Fernando Gabeira: O fascismo eterno e o fascismo tabajara

Há obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja dos traços mais decisivos na política externa

Fascismo tabajara é uma feliz expressão criada pelo cientista político Luiz Werneck Vianna. Fascismo eterno é um conceito do intelectual italiano Umberto Eco e foi tema de uma de suas conferências nos EUA.

Como muita gente nova tem me perguntado o que é o fascismo, resolvi trabalhar um pouco o tema, partindo das características eternas do fascismo para suas manifestações tropicais. A conferência de Umberto Eco acabou resultando num livro de 64 páginas. Ele entende como fascismo esse regime nacionalista, autoritário, que vigorou na Itália e foi derrubado no final da Segunda Guerra.

Quando garoto, Umberto Eco participava de concursos de composições com esse tema: “Devemos morrer pelo glória de Mussolini e o destino imortal da Itália?” Como um garoto esperto, respondia que sim. Eco viu os americanos ocuparem a Itália, Mussolini ser executado e refletiu tantos anos sobre o fascismo que acabou extraindo do regime as suas características que sobrevivem aos tempos.

São 14 traços essenciais e, segundo Eco, não precisam estar todos presentes para definir um regime fascista. É temerário condensá-los num curto artigo e apontar sua manifestação tabajara.

Alguns, no entanto, são tão evidentes que não demandam profundas análises comparativas.

Eco acha que para o fascismo eterno não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. “Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.”

Daqui salto para dois outros traços essenciais: a relação com a cultura e a relação com as armas. Para o fascista, a relação com a cultura também é uma guerra permanente. Daí a célebre expressão atribuída por Eco a Goebbels: “Toda vez que ouço falar de cultura tenho vontade de sacar minha arma.”

No campo das armas, também se desenha um traço essencial do fascismo eterno. O fascismo eterno transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu machismo, que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos não conformistas, como o homossexualismo.

Para Eco, o herói do fascismo eterno, para quem o sexo é um jogo difícil de jogar, prefere jogar com as armas, um simbolo fálico, e seus jogos de inveja se devem a uma permanente inveja do pênis.

Para aqueles que se veem despojados de qualquer identidade social, o fascismo diz que o único privilégio comum a todos é terem nascido no mesmo país. É a base do nacionalismo extremado. O único elemento que pode conferir identidade é o inimigo.

No fascismo há uma obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja um dos traços mais decisivos na nossa política externa. A própria ONU parece ser uma sede de conspiração, assim como a OMS e outros organismos internacionais. O aquecimento global é uma invenção do marxismo globalizante, o corona é um vírus comunista, destinado a enfraquecer os países do Ocidente.

Entre os 14 traços essenciais do fascismo eterno, na concepção de Eco, está também a recusa da modernidade. Escrevi sobre ele, mostrando que a proposta de Bolsonaro na verdade é uma retropia, uma volta a um passado ideal, ordenado e tranquilo, desenhado por Damares, com meninos vestidos de azul, meninas, de rosa.

O fascismo tabajara também defende um tipo de tradição religiosa, na qual a verdade foi revelada e não há espaço para o avanço do saber.

Só que aqui a verdade foi revelada nas profecias evangélicas, segundo as quais Cristo deve retornar ao Oriente Médio, quando Israel recuperar suas terras. É essa profecia que move o governo Bolsonaro a querer mudar para Jerusalém a embaixada brasileira.

O interessante, para finalizar, sem finalizar de fato porque há muito o que comparar ao longo dos traços restantes, o fascismo vê diversidade como um sinal de desacordo. Ele busca o consenso exacerbando no natural medo pela diferença. Seu primeiro apelo é contra os intrusos, logo, por definição tende ao racismo.

Umberto Eco morreu recentemente. Não viu surgir de novo o movimento antifascista. Mas, sobretudo, não pôde incluir um traço ao fascismo eterno que surge aqui como nos Estados Unidos: o fascismo chama de terrorista quem se insurge contra ele.


Fernando Gabeira: Acabou, acabamos

Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, Forças Armadas mostram que topam tudo por seu capitão

Acabou, porra! Esta frase de Bolsonaro, dita na porta do Palácio da Alvorada, me lembrou uma outra frase de um personagem de “Esperando Godot, peça de Samuel Beckett: “Acabou, acabamos.”

Esta lembrança surgiu porque há alguns dias fizemos uma live, eu e o querido embaixador Marcos Azambuja, cujo título era: “Esperando Godot, a tempestade perfeita.” Nesse encontro, promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, defendi a tese de que a tempestade perfeita no Brasil era produzida pela associação da pandemia com a presença de Bolsonaro no poder. Há outras combinações no mundo: nos EUA, por exemplo, coronavírus e racismo.

Bolsonaro disse esta frase porque não quer respeitar as decisões do STF, onde, no momento, tem duas preocupações: um inquérito sobre sua interferência na Polícia Federal e outro sobre a máquina de fake news montada por gente muito próxima a ele.

Filho de Bolsonaro, Eduardo entra no nosso ônibus e diz: eu poderia estar fritando hambúrguer nos Estados Unidos, mas vim avisar que haverá uma ruptura, não é questão de se, mas de quando acontecerá.

Juristas ultraconservadores acham o artigo 142 como saída. Se Bolsonaro não aceita as decisões do Supremo, as Forças Armadas têm de funcionar como Força Moderadora, obrigando o Supremo a aceitar tudo o que faz Bolsonaro.

As Forças Armadas já mostraram até onde podem ir. Em primeiro lugar, ocuparam o governo. Isso era previsível, pois o espírito salvacionista que vem desde a Proclamação da República não morreu: só os militares conseguem dirigir este país caótico, pensam.

O mais grave é que as Forças Armadas, através de um general da ativa, ocuparam o Ministério da Saúde, encamparam a errática política de Bolsonaro e querem nos entupir de cloroquina. Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, mostram que topam tudo por seu capitão.

Como assim, nossas Forças Armadas? Outras forças também poderosas foram seduzidas por um simples cabo. A hora não é tanto de reflexões sociológicas, mas de organizar a resistência.

Simplesmente não há tempo a perder. O tempo que perdemos esperando o coronavírus chegar representou muitas mortes.

É hora de avisar a todos os brasileiros no exterior para que reúnam e discutam a necessidade de falar com partidos, organizações, imprensa, organizar núcleos de apoio na sociedade europeia e americana, entre outras.

As Forças Armadas não só encamparam a política da morte de Bolsonaro. Elas tiraram de centro da cena o Ibama e outros organismos que fazem cumprir nossa legislação ambiental, conquistada ao longo de anos de democracia.

O governo brasileiro vai se tornar uma grande ameaça ambiental e biológica simultaneamente. Lutar contra ele em todos os cantos do planeta é uma luta pela vida, pela própria sobrevivência. Esse será nosso argumento.

Internamente, será preciso uma frente pela democracia. Já temos uma frente informal pela vida, expressa no trabalho de milhares de médicos e profissionais de saúde, nos grupos de solidariedade que se formaram ao longo do Brasil.

O que a frente pela democracia tem a aprender com eles? Em primeiro lugar, ninguém perde tempo culpando o outro pela chegada do coronavírus. Em segundo lugar, a gravidade da morte onipresente não dá espaço para confronto de egos.

Uma frente pela democracia não é uma luta pelo poder, mas sim pelas regras do jogo. Quem estiver interessado no poder que espere as eleições. Foi assim no movimento pelas Diretas.

Hoje uma frente pela democracia transcende as possibilidades do movimento pelas Diretas. As redes sociais colocam na arena milhares de novos atores, alguns deles capazes de falar com mais gente do que todos os partidos juntos. O espaço para criatividade se ampliou. O papel de cada indivíduo é muito mais importante do que foi no passado.

Não tenho condições num artigo de falar de todas essas possibilidades. Mesmo porque eles não se limitam à cabeça de uma pessoa. A única coisa que posso dizer produtivamente agora é isto: não percam tempo. É urgente falar com amigos, estabelecer contatos, discutir como atuar adiante, como resistir ao golpe de Estado. Posso estar enganado, mas jamais me perdoaria, com a experiência que tenho, se deixasse de alertar a tempo e também não me preparasse para esta que talvez seja a última grande luta da minha vida.


Fernando Gabeira: Algumas notas para resistir

Depende de nós frear a marcha totalitária, deter o obscurantismo. É só querer

O poeta Carlos Drummond escreveu estes versos: Deus me deu um amor no tempo de madureza/ quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. Conversando com um político da minha geração, esta semana, lembrei-me do poeta quando ele disse: “Deus nos deu uma luta pela democracia, nos últimos anos de vida”.

Não esperávamos por essa. No entanto, não dá mais para ignorar que o sinal vermelho do regime autoritário está aceso no Brasil.

De um lado, vê-se um presidente falando em armar o povo, como Mussolini ou Chávez, e isso diante de uma plateia de generais indiferentes à gravidade desse discurso; de outro, um general falar em crise institucional porque um ministro do Supremo apenas cumpriu um artigo do regimento interno, despachando um pedido para o procurador-geral da República considerar: a perícia no telefone do presidente da República.

Nossa atenção estava toda concentrada na pandemia, o maior desafio depois da 2.ª Guerra Mundial. Mas um ministro diz na reunião do conselho que é preciso aproveitar nossa atenção no coronavírus para passar uma boiada de medidas que não suportam a luz do sol.

Pois muita coisa está se passando diante dos nossos olhos consternados com a sucessão de mortes e amedrontados com a síndrome respiratória aguda. Bolsonaro seduziu as Forças Armadas com verbas orçamentárias e uma suave reforma da Previdência. E mais ainda, fez um apelo ao salvacionismo que viaja no espírito deles desde a Proclamação da República e abarrotou o governo com militares.

Tudo indica que estão anestesiados. Generais reagem com sonolência a um projeto de milícias armadas. Sabem que Bolsonaro é homem de denunciar fraudes nas eleições que venceu, logo estará pronto para pegar em armas quando for derrotado adiante.

A origem positivista marcada pela aliança com a ciência foi jogada no lixo e um general se adianta para substituir médicos e inundar o Brasil com uma cloroquina que a OMS não aprova. Se as Forças Armadas resolveram encampar a política negacionista de Bolsonaro diante do vírus, se aceitam que milhares de mortes sejam debitadas na sua conta, é porque já decidiram mandar para o espaço o tipo de credibilidade que ganharam nos últimos anos.

Elas vêm pra cima com o mesmo ímpeto com que os militares venezuelanos defendem o seu governo autoritário. Por isso é preciso preparar a resistência.

A primeira lição é não ver essa luta, que para alguns se dá no final da vida, com os mesmos olhos da juventude. Mesmo porque só generais incompetentes veem uma nova batalha como se fosse a repetição da anterior.

Nada de armas. Num conflito moderno, a superioridade moral é decisiva. Eles vão se enrolar nas benesses do governo numa das crises mais profundas da História.

Olhar para o mundo. Não como no passado, exportando relatórios clandestinos e, com alguns contatos, denunciar desrespeito aos direitos humanos. Isso não é mais o principal. Agora existe a internet, uma infinidade de contatos possíveis com o planeta. Não precisamos comover apenas com corpos torturados, mas convencer os outros povos de que um governo cuja política destrói sistematicamente a Amazônia e favorece epidemias como a do coronavírus é ameaça também à existência deles.

Compreendo que ter o mundo a favor não basta para derrubar um regime autoritário. A Venezuela é um exemplo de que sem uma força coesa internamente não se chega a lugar nenhum. Aí está realmente o problema central: o instrumento. Ele precisa ser uma frente democrática ampla, madura, sem conflitos de egos, sem estúpidas lutas pela hegemonia, tão comuns na esquerda.

Chegamos perto disso no movimento pelas diretas. Candidatos a um mesmo posto conviviam harmonicamente no período de lutas e mais tarde buscavam caminho próprio nas eleições. Mas o próprio movimento das diretas é muito velho para o momento. Novas forças surgiram. Atores políticos menos experientes, mas com a capacidade de falar para milhões de pessoas, entraram em cena.

Na conversa que tive com o amigo disposto a lutar a última luta da vida, chegamos à conclusão de que é preciso apenas um núcleo que saiba contornar as bobagens dos que só pensam no poder e consiga estimular a criatividade social, diante dessa ideia de que a democracia não pode morrer no Brasil.

Não adianta ficar reclamando que o Congresso e o Supremo não conseguem frear a marcha totalitária. Isso depende de nós: é só querer. Na verdade, milhares hoje dão sua pequena contribuição, criticando, resistindo, às vezes até ridicularizando pelo humor.

Todo esse esforço molecular está, na verdade, ligado entre si. O que às vezes impede a consciência dessa união é o desprezo pela política, compreensível pelo que ela se tornou no Brasil.

Mas não se trata de aderir a um partido, militar no sentido clássico. A luta contra o coronavírus, por exemplo, é uma ampla frente pela vida que vai do carregador de maca ao cientista. As pessoas estão unidas pela urgência do presente, sem perguntar de quem é a culpa pelo vírus.

Da mesma forma, não interessa agora saber de quem é a culpa pela marcha do obscurantismo. É preciso detê-la.

  • Fernando Gabeira é jornalista

Fernando Gabeira: Vídeo, mentiras e palavrões

A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados

É raro ver um filme, depois de ler seu argumento e roteiro. Você sabe o que vai acontecer. No entanto, desconhece como os atores vão representar o texto, como reagirão às falas, como se movimentam no espaço cênico.

O famoso vídeo da reunião do Conselho de Ministros já foi vazado a ponto de termos uma ideia de como transcorreu. Sim, havia dúvidas sobre os palavrões. Como foram ditos, com que expressão facial, em que contexto, que tipo de olhar suscitaram.

Tenho impressão de que o vídeo veio na íntegra. O corte da fala de Weintraub é tão óbvio que todo mundo percebe o que disse: não queria ser escravo do PC chinês. Talvez seja uma das frases mais inocentes de todo o texto.

Não foi uma reunião de Conselho de Ministros tal como a supomos. Foi mais parecido com uma pajelança, uma tentativa de Bolsonaro de animar seu Ministério. O debate mesmo era sobre o plano Pró-Brasil.

O trecho básico, que interessa ao processo nascido com a queda de Moro, é o que afirma que não vai deixar sua família se foder, nem seus amigos. Por isso, mudaria até o ministro se necessário. Mudou o superintendente da Polícia Federal, e Moro caiu em seguida.

O nível das intervenções de Bolsonaro é bastante singular se cotejado com os documentos de reuniões presidenciais. Um dos momentos mais dramáticos foi afirmar que, se a esquerda vencesse, todos estariam cortando cana e ganhando 20 dólares por mês.

Como escritor, o que mais me impressionou foi a maneira como figurou a perda da liberdade: “Eles querem nossa hemorroida”, disse. Da primeira vez, hesitei. Seria isso mesmo? De onde tirou a hemorroida para expressar a perda da liberdade, não tenho a mínima ideia. Os analistas talvez nos ajudem.

A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados. Não apenas pelas palavras escolhidas, mas pela falta de conexão, de uma liderança que tivesse a agenda na cabeça e tentasse trabalhar o Ministério no conjunto como o maestro que rege uma orquestra afinada.

A perversidade ficou evidente na fala do ministro Ricardo Salles. Ele sabe que a Amazônia está sendo destruída num ritmo alucinante: de agosto de 2019 a abril de 2020 o desmatamento cresceu 94,4 % em relação ao período de agosto de 2018 a abril de 2019.

A tática explícita de Salles é aproveitar a grande preocupação com a pandemia e passar todas as agendas que significam enfraquecer a legislação ambiental e acelerar o processo destrutivo em curso.

Eu já intuía isso. O Human Rights Watch publicou um relatório semana passada, mostrando como as multas na Amazônia deixaram de ser devidamente cobradas desde outubro e como os funcionários sentem-se desamparados na execução da lei.

Consegui passar essa mensagem no meio de uma notícia sobre Covid. É preciso usar todas as brechas para neutralizar a tática perversa.

O general Heleno escreveu uma nota ameaçadora antes da divulgação do vídeo. Não entendeu que o ministro Celso de Mello apenas submeteu ao procurador-geral a hipótese de periciar o telefone de Bolsonaro e seu filho Carlos.

A ameaça é clara: intervenção militar. Heleno é um militar com experiência internacional. Creio que ele e as Forças Armadas sabem que existe uma pandemia e que ela é um tema decisivo para a Humanidade.

Creio também, caso leiam os jornais, que sabem o papel de Bolsonaro no imaginário internacional: o de um negacionista, cada vez mais perigoso na medida em que o Brasil torna-se o epicentro da pandemia mundial.

Um golpe militar no Brasil vai colocar o país em choque com o mundo. Dois temas vão se entrelaçar: a pandemia e a destruição da Amazônia.

Não creio que depois de tanta reflexão histórica, estudos, seminários, palestras, cursos no exterior, as Forças Armadas queiram participar dessa aventura. Já associaram sua imagem à cloroquina. Será que ouviriam o general Heleno e os defensores de uma intervenção militar?

Desta vez, não cairemos no erro de resistir com armas. Será uma luta longa e pacífica, alavancada pelo próprio mundo. Da primeira vez foi uma tragédia; agora, será uma farsa com consequências profundas. Se é possível dar um conselho, ai está: por favor, não tentem.


Fernando Gabeira: Gente em tempos sombrios

Tanto na guerra quanto na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos

Dizem que vivemos a maior crise depois da Segunda Guerra. Não conheci a Segunda Guerra: ela é tão antiga que me colheu nos primeiros anos de vida.

Isso não me impede de comparar. Para o Brasil, creio, a Segunda Guerra foi menos devastadora que a pandemia do coronavírus. Perdemos 471 homens e tivemos 12 mil feridos. Nesta semana, a pandemia já alcança 200 mil casos e ultrapassa as 15 mil mortes.

Na Segunda Guerra, Vargas demorou mas acabou encontrando o rumo, e o Brasil se colocou do lado certo no conflito. Bolsonaro subestimou a importância do vírus e, infelizmente, não alterou sua posição diante dos fatos, recusando-se a desenvolver uma política nacional e solidária.

Isso configura uma tempestade perfeita. Tanto na guerra como na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos.

Mas não adianta chorar. Sempre me interroguei sobre como sobreviver no pior dos mundos. Não tive respostas definitivas.

Lembro-me de que estava cobrindo a chegada dos refugiados albaneses numa praia italiana, no fim do regime. Na multidão que saía do navio, vi um casal vestido modestamente, mas com muita elegância. Pareciam tranquilos e felizes. Imaginei que eram ligados por um profundo laço amoroso, e isto os ajudou a atravessar o pesadelo do regime autoritário de Enver Hoxha.

Mais tarde li “Homens em tempos sombrios”, de Hannah Arendt. Ali era a coragem intelectual diante do stalinismo e do fascismo que despontava como elemento essencial na sobrevivência.

Finalmente, quando li os escritores cubanos dissidentes, muitos perseguidos e aniquilados, outros resistindo através de sua literatura, cheguei a uma nova conclusão.

Creio que a expressei numa introdução ao livro do poeta Raúl Rivero, cuja saída de Cuba para a Espanha acompanhei, tentando apoiá-lo também do Brasil. Nesse caso, a sensualidade inspirada no cotidiano do próprio povo pareceu-me um fator de sobrevivência e de recusa à mediocridade burocrática.

Apesar de tantas indicações na experiência de vida, a tempestade perfeita me colhe numa situação singular. Será necessário inventar porque, apesar das experiências terríveis dos outros, nenhuma das outras tempestades perfeitas apresenta os ventos, trovões e raios como a nossa. A água que aqui transborda, não transborda como lá.

Estamos diante de um inimigo invisível. Muitos de nós somos do grupo de risco. A energia popular está distante porque fomos confinados. No passado, ouvia bater de panelas. Agora, nem isso. De vez em quando, alguns gritos ao longe, ou mesmo a voz de crianças empinando pipas no sol de outono.

O governo é de extrema direita. Ainda há liberdade de criticá-lo, mas na solidão virtual. Nos anos 60, fervilhavam as assembleias, uma corrente fraternal eletrizava os opositores, amores brotavam no asfalto como as flores do poeta.

Na semana passada, preparando-me para uma live com o embaixador Marcos Azambuja, escrevi um artigo sobre as características gerais dessa tempestade: ecologia, política externa, experiências históricas de negação da realidade.

Ao concluir o artigo preparatório, cheguei à conclusão de que era preciso aos poucos responder para esta época a pergunta que me intrigava em outras épocas e lugares.

Não sou adepto da ideia do novo homem. Fico com Shakespeare e acho que a humanidade com suas misérias e grandezas não muda essencialmente através do tempo. No entanto, não há dúvida de que a pandemia nos coloca a questão da solidariedade. Por menos que seja nosso gesto, sentimos que a resposta específica para esse tempo sombrio passa por aí.

Da mesma forma, a luta pela democracia, o esforço para manter nossos valores culturais e espirituais diante do impulso destruidor da extrema direita e sua política de morte.

Só está faltando talvez a superação dos ressentimentos, a certeza de que é possível formar uma ampla unidade de diferentes, sem veleidades hegemônicas, algo que em outras épocas foi o instrumento decisivo para combater governos extremistas.

Evidentemente, não tenho a fórmula acabada para esta união. Parece-me apenas que discutir, neste momento, quem tem mais culpa na ascensão de Bolsonaro é continuar no pântano.


Fernando Gabeira: A vida numa ‘live’ sobre coronavírus

Política de negação da extrema direita encontrou no Brasil sua face mais rude

Nem sempre tenho chance de falar sobre tudo isso que está acontecendo. Quero dizer, limito-me a comentar todos os dias apenas alguns aspectos de uma realidade que me desafia, ou, se quiserem, me atropela.

Nesta semana tive a chance de conversar com o embaixador Marcos Azambuja, num encontro promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Além da amizade, partilhamos um certo senso de humor, que sobrevive mesmo nestas horas sombrias.

Trabalho com a questão ambiental desde a década de 1970. Sei que as pessoas têm certa dificuldade em reconhecer um perigo invisível. Foi assim no desastre de Chernobyl. Muitos europeus não acreditavam que o próprio leite que consumiam poderia estar contaminado. Em Goiânia não era tanto a invisibilidade, mas a sedução de uma pedra brilhante (césio-137) que enganava as pessoas na Rua 57.

Com Chernobyl acentuou-se o declínio das classes dirigentes soviéticas. A epidemia de coronavírus não trouxe desgaste do mesmo nível para o PC chinês. Há um vácuo da presença americana, uma vez que o país abandonou suas pretensões de liderança e refugiou-se no lema America first. Coube a uma potência média, a Austrália, com apenas 25 milhões de habitantes, lançar uma iniciativa internacional para apurar a responsabilidade da China.

Quem gostava muito de comparar a Austrália com o Brasil era Lionel Brizola. Não é minha intenção. A Austrália tem um governo conservador e a China como seu maior parceiro comercial. No entanto, encarou o problema e ainda por cima unificou as forças políticas internas, num esforço comum.

O governo brasileiro censura a China nos bastidores e nas redes sociais, algo bastante imaturo. Nesse caso, o melhor seria ficar calado.

Mas o pior foi a incapacidade de encontrar uma resposta nacional e solidária no combate ao coronavírus. A política de negação da extrema direita internacional acabou encontrando no Brasil sua face mais rude.

Bolsonaro negou a importância da pandemia, afirmando que não passava de uma gripezinha. Consequentemente, negou toda a política de isolamento social, estimulando seus seguidores a combatê-la.

Quando surgiram as primeiras mortes e depois elas foram se acumulando, o processo de negação estendeu-se aos próprios mortos. Seria mesmo tanta gente ou estava havendo uma superestimação?

Com as imagens dos caixões vieram novas dúvidas: existe gente dentro ou são caixões cheios de pedras? Em Minas foi divulgado o vídeo de uma testemunha vendo pedras em caixão. Certamente, uma militante paga. Uma deputada federal chegou a afirmar que um caixão no Ceará estava vazio.

Assim como nega o coronavírus em todas as etapas, Bolsonaro quer passar para a nova fase, como se ele não tivesse devastado a saúde dos brasileiros, sem planos de transição. O Brasil tornou-se um caso internacional. Reportagens, memes, comentários escandalizados na TV estrangeira, Bolsonaro aos poucos se transforma em vilão mundial. Essa é uma das razões por que o título da nossa conversa é a tempestade perfeita. O vírus no Brasil metamorfoseou-se em molécula política.

Muitos dizem que a pandemia é o grande drama que vivemos desde a 2.ª Guerra Mundial. Mas, se observamos aquele período, a situação do Brasil é pior. Vargas custou, mas encontrou seu rumo. Bolsonaro simplesmente não consegue sintonia com o esforço nacional na luta contra o coronavírus. O Brasil não era um dos principais protagonistas da guerra, mas está se tornando uma das principais vítimas da pandemia.

Estamos, como todo mundo, sepultando sonhos. Não importa que tipo de futuro o coronavírus nos permitirá, também ficaremos mais pobres.

Pela minha experiência, a pobreza não é tão terrível quando mantemos nossa vida amorosa e intelectual em bom nível. O problema será viver num país em que a pobreza material inevitável é seguida de um debate político desolador, uma permanente troca de insultos. De qualquer maneira, a alegria de se descobrir vivo quando atravessarmos este túnel talvez compense todo o susto e a tristeza.

A ideia de que o coronavírus nos tornaria a todos melhores pessoas é uma ilusão. Todos os grandes problemas do Brasil, incluída a corrupção, estão em vigor neste período. Ao lado de um louvável movimento de solidariedade, é bom lembrar.

O que pode acontecer, entretanto, é uma chance de negociarmos prioridades, uma vez que a pandemia revelou não apenas a profunda desigualdade social, mas como ela bloqueia o futuro. Quem sabe, também, no final do processo, será possível restabelecer o papel da ciência e do esforço intelectual, ambos tão estigmatizados pelo populismo de direita.

Quando digo papel da ciência não estou pensando em mitificá-la ou transformá-la em nova religião, apenas reconhecer sua importância e continuar trabalhando nas esferas em que atuamos, cheias de incertezas e imprecisões.

Somos uma geração de risco, em todos os sentidos. Espero que possamos sair de casa bem rápido, pois ainda há muito que fazer. Sobretudo depois que nos apegamos tanto à vida, “à vida apenas, sem mistificação”, como dizia o poeta.

Dito isso, creio que, por algum tempo, posso voltar aos detalhes cotidianos.


Fernando Gabeira: Bolsonaro perde bonde do corona

Ele apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump

Confesso que não fiquei tão perplexo com a ida de Bolsonaro ao STF levando um grupo de empresários. Acredito que, tanto quanto eu, ele não esperava nenhuma solução para o problema que levantava: a volta às atividades econômicas.

O objetivo de Bolsonaro era mostrar que estava trabalhando pela economia. Para isso, levou uma equipe de TV e transmitiu o encontro ao vivo, para surpresa do próprio STF. Um golpe de propaganda, nada mais. Interessante como Bolsonaro consegue perder os bondes nessa luta contra o coronavírus.

Perdeu o primeiro, quando se isolou, negando a importância da pandemia, criticando o trabalho de governadores e prefeitos. Uma nova oportunidade de liderança e alinhamento se abriria para ele, no processo de volta às atividades. Compete ao presidente unir governadores e prefeitos em torno de um detalhado plano de retomada.

Dois dias antes de Bolsonaro ir ao Congresso, Angela Merkel reuniu as lideranças regionais para definir e modular um plano de volta.

Esses planos são complexos. Não adianta pedir ao Tofolli, porque ele não tem. Implicam a definição dos dados necessários, como número de casos, disponibilidade de hospitais, capacidade de testar.

Implicam também um redesenho das escolas, das fábricas, dos escritórios. Na Alemanha, técnicos foram às escolas para redefinir o espaço, inclusive determinar o novo lugar dos professores na sala.

Em alguns países, houve escalonamento de turmas escolares; em algumas regiões, normas para restaurantes ao ar livre.

Normas para o funcionamento de teatros e casas de espetáculo também estão sendo trabalhadas nos detalhes. Os intervalos, por exemplo, serão suprimidos para evitar aglomeração. O próprio futebol na Alemanha volta no dia 16, mas com portões fechados, sem plateia.

Bolsonaro até o momento apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump.

Essa pressa acaba se estendendo a outros setores. O governador de Brasília queria que a final do campeonato carioca fosse jogada no Estádio Mané Garrincha mesmo com um hospital de campanha instalado ali.

Não sei a que atribuir esta loucura. Nós temos uma singularidade cultural, que é a improvisação. É inegável que ela tem qualidades, no compositor que escreve seus versos num botequim, nos profissionais que driblam a falta de recursos para alcançar um certo resultado.

Na formulação de uma política nacional e solidária contra o coronavírus, é preciso liderança e capacidade de planejamento. Bolsonaro trabalha por espasmos, acorda pensando na briga nossa de cada dia, a quem vai combater e orientar sua galera a chamar de lixo.

O ministro da Saúde tem dito que o Brasil é um país diverso. Todos concordam. Mas é precisamente por ser diverso que necessita de um plano com modulações.

Basta olhar no mapa para ver quantas cidades brasileiras não tiveram casos de contaminação. Até elas precisam ser orientadas a rastrear com rigor caso apareça alguém contaminado por lá.

Na verdade, é um projeto que se enquadra nessa expressão muito usada de nova normalidade. Os Estados Unidos viveram algo parecido de longe com isso, depois do atentado de 11 de setembro.

As circunstâncias agora são diferentes. O redesenho da sociedade não se faz diante de inimigos humanos, mas ameaças biológicas que podem nos dizimar. A etapa final do planejamento seria concluída com a existência de uma vacina, acessível a toda a população.

Mas, no entanto, a existência de uma pandemia como essa abriu os olhos de muita gente para a possibilidade de outras. Algumas delas podem ser favorecidas pelo desmatamento.

Tive a oportunidade de sentir isso quando cobri a volta da febre amarela. Aparentemente, a destruição de algumas áreas de mata acabou expondo os trabalhadores agrícolas e algumas populações rurais.

Estamos trabalhando com algo muito sério para o futuro das crianças. Se não houver uma transformação cultural que nos faça pensar coletivamente e nos convença da necessidade de planos cientificamente adequados, vamos ser uma presa fácil.

Nos anos de política, lamentava que o Brasil era um país onde o principio de prevenção não pegou. Não esperava um governo que, além de imprevidente, desprezasse a ciência. Tudo do que o coronavírus gosta.


Fernando Gabeira: Pergunte ao coronavírus

O Brasil politizou o vírus. O governo mergulhou na cegueira ideológica

Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.

Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.

Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.

Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.

Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.

Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.

Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.

Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.

Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.

Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.

É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.

Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.

Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.

Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.

O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.

Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.

Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.

*Jornalista


Fernando Gabeira: Viver na incerteza

O que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar

Simone de Beauvoir escreveu no célebre livro “O segundo sexo” que era difícil se sentir uma princesa, em tempos de menstruação, com um incômodo pano entre as pernas.

É difícil se sentir o rei da cocada preta fechado em casa, com um medo de uma invisível partícula proteica que mata as pessoas e devasta a economia planetária. Sobretudo, é difícil sentir-se dono de grandes certezas, num mundo em que a normalidade foi para o espaço.

Edgard Morin merece admiração por isso. É quase centenário, e seu pensamento ao longo dos anos evoluiu para enfatizar a complexidade e a incerteza.

Apesar de ter escrito muitas vezes sobre segurança biológica e ter detectado o impacto desse vírus nos seus primórdios, confesso que, como quase todos os outros, o subestimei.

Ao sair de Fernando de Noronha, em 16 de março, ainda tinha esperanças de seguir viajando pelo Brasil, na presunção de que o vírus não chegaria aos lugares onde vou.

De fato, tenho tido contato permanente com pontos remotos do Brasil e, à exceção de Fernando de Noronha e grandes cidades, o vírus ainda não chegou lá.

Esqueci-me das estradas, dos postos de gasolina, dos restaurantes e hotéis no caminho, dos perigosos aeroportos e aviões. E esqueci que estava bem próximo dos 80 anos.

Interessante nesse mundo de grandes incertezas como as pequenas certezas nos mobilizam. As redes estão cheias de conselhos sobre o que ler, como se exercitar, rezar, o que comer, a que filmes assistir, como organizar toda a rotina.

Essa enxurrada de conselhos às vezes confunde. Por isso, achei engraçado um áudio que caiu na rede. Era de um homem que lamentava com a amiga: todos dizem que tenho de lavar as mãos, lavar as mãos, não se esqueça de lavar as mãos, mas eu queria também tomar um banho, será que pode?

Da mesma forma, achei interessante o desabafo de uma jovem diante de um certo otimismo exagerado, do gênero “o coronavírus veio para melhorar nossos sentimentos, aumentar a solidariedade, mudar o mundo”.

O vírus veio para nos destruir e devastar a economia. Essa é a verdade inicial. Ele não é revolucionário. Tudo vai depender de nossas escolhas daqui para a frente.

Sem dúvida, bons sentimentos afloraram, milhares de profissionais de saúde arriscam suas vidas pelas nossas, mas houve também quem tentasse aplicar golpe nas pessoas que precisam dos R$ 600 emergenciais, gente que hostilizou enfermeiros em transporte público, países que confiscam carregamento de máscaras ou especulam com o preço de equipamentos médicos.

O mundo continua um espaço onde bem e mal coexistem, assim como a grandeza e a miséria dos seres humanos não desapareceram com o vírus.

Certamente, ficaremos materialmente mais pobres, com movimentos mais limitados e sempre sujeitos a um novo recolhimento forçado, enquanto não aparecer uma vacina.

Certamente, sairemos mais humildes e não pronunciaremos o termo civilização com arrogância. Mas o que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar às novas situações, e encontrar uma centelha de felicidade mesmo nos lugares e momentos mais difíceis.

Às vezes, à noite, depois de uma torrente de notícias pesadas, acordo sobressaltado, qualquer tosse noturna traz sempre a pergunta: será ele, o vírus, será essa a hora?

Tomei todas as precauções. Se ele entrou pelo vão da porta, se veio navegando pelo suave vento que entra pela janela, o que fazer?

Nessas horas, respira-se fundo e se reafirma o compromisso com a vida. No mais é como dizem nos países hispânicos: que vengan los toros, let it be, na linguagem dos 60.

Assim como as viagens, segundo o poeta, nos lembram que estamos sós ao nascer, o vírus pelo menos tem a utilidade de nos lembrar que somos mortais. Com ou sem ele, temos de usar bem esse tesouro: o tempo que nos resta.

Não quero adicionar mais uma avalanche de conselhos que nos soterra desde o início da crise.

Mas já parou para sentir como é bom respirar?


Fernando Gabeira: Cloroquina sem paixão

Na Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio era bala de prata. Os remédios eram combinados num coquetel

Não sou médico, nem cientista. É uma temeridade escrever sobre a cloroquina agora que sua composição química ganhou componentes ideológicos. Abordo o tema com minha experiência da campanha contra a Aids, que pude seguir ativamente, com mandato e sem estar preso em casa.

Desconfio também da experiência do general que vê na batalha de hoje uma repetição da batalha do ano passado, do político que vê na campanha atual uma réplica da campanha anterior.

Ainda assim, vou tateando. No combate à Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio em si era uma espécie de bala de prata contra o vírus. Os remédios eram combinados num coquetel.

Imagino que alguma coisa assim esteja acontecendo no combate ao coronavírus. Quando surgiram os rumores da pesquisa francesa liderada por Didier Raoult, Trump ainda não havia anunciado sua predileção pela cloroquina.

Os rumores na internet eram de que a hidroxicloroquina estava associada à azitromicina e que estava sendo usada no Hospital do Coração.

Liguei para confirmar, e o hospital desmentiu, dizendo que aquilo era fake news. Não noticiei nada, porque achava que, mesmo com desmentido, haveria corrida.

Nos EUA, Anthony Fauci, o homem que comanda a luta contra o coronavírus, fez também uma advertência sobre o perigo da notícia, pois os estoques poderiam ser esgotados.

Em seguida, li a história de um médico chinês de pouco mais de 30 anos, imigrante nos EUA. Ele foi contaminado pelo coronavírus e esteve entre a vida e a morte. A colônia chinesa estabeleceu os contatos com Wuhan, cujos médicos tinham já uma grande experiência. Recomendaram hidroxicloroquina com Kaletra, um remédio usado também contra a Aids. Isso fortaleceu para mim a ideia de que a cloroquina estava associada a um outro remédio, uma tática combinada como foi, guardadas as proporções, no caso da Aids.

Continuei atento ao movimento dos chineses, com os poucos recursos que tenho para segui-los. Li que a China pirateou outro remédio experimental contra o coronavírus, o Remdesivir.

A patente é da empresa americana Gilead, que deve faturar mais de US$ 2,5 bilhões com ele, apesar do avanço chinês sobre sua fórmula.

O Remdesivir é um antiviral mas não pode também ser considerado uma bala de prata. Seu uso foi aconselhado pela Agência Europeia de Medicina em casos muito graves, como um tratamento compassivo.

De novo, apesar de serem batalhas diferentes, a experiência da luta contra a Aids ilumina o caminho, até que uma outra luz mais forte e direta me conduza.

O Brasil resolveu inicialmente o problema da cloroquina comprando-a da Índia. Esse país vende remédios assim como a China vende equipamentos médicos. O Ocidente se aproveita dos preços baixos de ambos até que descobre sua dependência.

Mas em breve poderemos chegar à possibilidade de um coquetel ou uma simples associação de remédios. Nesse momento, veremos a possibilidade de distribuí-los gratuitamente.

Foi assim com o coquetel da Aids. Muita discussão com a equipe econômica por causa dos custos. O problema seguiu adiante mesmo depois da vitória da gratuidade.

Apareceu então, com intensidade, o problema das patentes. Até que ponto um respeito religioso pelos direitos dos laboratórios multinacionais não era um obstáculo para a salvação das vidas?

Felizmente, na época, tínhamos um ministro da Saúde, José Serra, que compreendeu bem o dilema e soube defender o que me parece uma posição correta no debate planetário sobre patentes.

A cloroquina, graças ao empenho de Trump e Bolsonaro, ganhou destaque na cena, mas o Remdesivir, a julgar pela apropriação chinesa, também merece um exame.

Na verdade, há pelo menos oito atores, remédios em teste, que foram ofuscados pela cloroquina e mereciam mais atenção. Nenhum deles é de direita ou de esquerda. São fórmulas químicas, e sinto-me meio acaciano a formular essa frase.

No entanto, o vírus já foi politizado, os remédios são politizados de uma forma equivocada. A questão que nos espera é testá-los adequadamente e garantir que cheguem às pessoas e discutir os direitos de patente num mundo devastado pela pandemia.


Fernando Gabeira: O risco de não entender

Imagino uma crise econômica braba e me lembro da experiência de viver com pouco

O trabalho corre silencioso na quarentena. No princípio da noite, ouço o bater de panelas, e uma vizinha roda uma gravação do Hino Nacional. É hora de um pequeno descanso, esquecer a contagem de mortos nos EUA, Inglaterra, Espanha, Itália, o horror dos corpos insepultos nas ruas de Guaiaquil.

No meio da tarde, costumo ouvir a voz do prefeito numa gravação voltada aos moradores do Pavão-Pavaozinho: “Olá pessoal, aqui é o prefeito Marcelo Crivella.” Ele pede que fiquem em casa e que Deus proteja a todos. Que cena, o Crivella pedindo que fique em casa; logo eu, que tinha tanto o que fazer nessa pandemia.

Mas sou do grupo de risco. Há um grande debate sobre o que fazer com os velhos. Uma escritora amiga me disse pelo telefone: antes os velhos tinham valor porque concentravam a experiência; agora, com o Google, podem se livrar da gente com facilidade.

Mas, para cada um nós, há uma experiência que não se acha no Google. No meu caso, por exemplo, a quarentena é suave. Em primeiro lugar, porque os mais pobres estão em espaços menores e mais escuros; os brasileiros no exterior, encurralados em pequenos quartos de hotel, hostilizados pelos nativos.

O isolamento não me é estranho. Alguns meses de cadeia me ensinaram muito. Por isso, sempre estou buscando uma pequena fresta para o banho de sol. Durante a clandestinidade, ficávamos em casa de simpatizantes. Os mais procurados pela polícia iam para a “geladeira”. Não só éramos proibidos de sair. Quando o dono da casa estava fora, não podíamos fazer barulho, espirrar, tomar banho. Isso poderia chamar a atenção dos vizinhos. Era um ensaio de petrificação silenciosa.

Diante do que está por vir, acredito mais na experiência pessoal do que no Google. Imagino uma crise econômica braba e me lembro da experiência de viver com pouco, comer não mais que o essencial.

Em Cuba tínhamos a comida exata. Lembro-me que no final de um longo dia de estudos, caminhávamos algumas quadras para comprar um pão por la libre. A expressão não significa comprar quantos pães quiser, mas sim que a compra era feita por fora da caderneta de racionamento.

Aprendi ali que as fantasias sobre comida às vezes mobilizam o imaginário das pessoas mais que as próprias fantasias eróticas. Nos grandes desastres, nas guerras, a falta de comida e o desespero solapam a dignidade humana, provocam regressões assustadoras.

Ser velho significou ter tido uma chance de testemunhar tudo e uma oportunidade de morrer que nunca sabemos antecipadamente se vamos aproveitar. Certamente o Google não responde a esta questão de Montaigne: aquele que ensinar as pessoas a morrer vai ensiná-las a viver.

Quando tinha pouco mais de 18 anos, fiz uma reportagem para a revista “Alterosa” sobre doença de Chagas, transmitida pelo barbeiro. Era num povoado do interior de Minas. Assunto tão sério que atraiu uma dupla de repórteres do “Saturday Evening Post”, na época uma revista importante. Chegaram de avião, o fotógrafo gostou de mim e me ensinou a fazer um establishing shot, uma imagem que descrevesse a história a ser contada. Ele subiu no pequeno cemitério, usou as cruzes como primeiro plano e mostrou o povoado no fundo.

Na doença de Chagas o coração é atingido, e as pessoas morrem de repente. Ao concluir meu texto na volta, o editor Roberto Drummond escreveu o título: “Aqui se morre como passarinho”.

Nessas ruminações de quarentena, não é que de certa forma tenho de reconhecer que a morte naquele tempo era mais suave que agora e o barbeiro, um inimigo melhor que o coronavírus? O tempos mudaram, poucos sentiram. Noventa por cento dos equipamentos de proteção aos médicos são feitos na China. Isso não é um tópico estratégico para quem pensa apenas na guerra entre os homens.

Só que há algum tempo, a principal guerra é dos homens contra a natureza. A estratégia não acompanhou os fatos. Alguém come um bicho na China e instala-se o caos.

Alguns velhinhos de hoje já avisavam sobre os efeitos dessa guerra, antes de o Google nascer.

É irônico ver agora como se discute com tanta sem-cerimônia sobre quantos por cento deles devem desaparecer. Para quê? Para seguir na marcha suicida que alguns chamam de progresso?