Elio Gaspari: As tungas dos sindicalismos

Como a bolsa da Viúva deu sopa, maganos que se dizem representantes de patrões e de empregados fazem a festa

Quem leu a reportagem de Philipe Guedes constrangeu-se. O Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência e Educação à Criança e ao Adolescente cobrava uma “taxa negocial” aos seus 40 mil filiados, e quem não quisesse pagá-la deveria ir à sua sede para carimbar um documento. As vítimas tiveram três dias para cumprir a exigência, e o resultado foi a formação de uma fila de quase um quilômetro nas ruas vizinhas à sede do Sitraemfa.

Esse truque está sendo usado por inúmeros sindicatos desde que a reforma trabalhista desmamou-os, tirando-lhes o dinheiro do imposto sindical. (Um dia de suor de cada empregado formal, gerando uma caixa de R$ 3 bilhões em 2017.) Os sindicatos poderiam receber os documentos pela internet, mas criam uma burocracia intimidatória que supera, de muito, o tempo que um trabalhador perde para tirar uma carteira de identidade no Poupatempo de São Paulo.

É razoável que um sindicato cobre taxas por ter negociado o dissídio de uma categoria, desde que o tenha negociado. Milhares de sindicatos nada mais fazem do que cuidar da vida de seus dirigentes. Os mandarins dizem que as taxas foram aprovadas em assembleias dos associados, mas ganha uma visita ao sítio de Atibaia frequentado por Lula quem já foi a uma assembleia de sindicato. (“Nosso Guia” entrou na política combatendo o imposto sindical.)

A questão acabaria se fosse aberto o cadeado que blinda o peleguismo sindical de empregados e patrões. Bastaria abolir o dispositivo que obriga todos os trabalhadores e empresários de uma categoria a serem filiados a um só sindicato. Uma profissão ou atividade poderia ter inúmeros sindicatos, e o trabalhador escolheria o que lhe presta melhores serviços. Poderia até não se filiar a nenhum.

O sujeito que leu a reportagem de Guedes pode ter pensado que a praga é coisa do andar de baixo. Engano, a repórter Raquel Landim mostrou que no andar de cima a coisa é pior. Enquanto os trabalhadores eram tungados em um dia de salário, as empresas são mordidas num percentual de suas folhas de pagamento. O chamado Sistema S arrecadou R$ 16,4 bilhões em 2017. Uma parte desse dinheiro vai para atividades meritórias, outra financia a máquina sindical dos patrões.

Uma beleza de máquina. Os presidentes de 42 federações patronais estão no cargo há mais de nove anos; cinco, há mais de 40; Fábio Meirelles, presidente da Federação da Agricultura de São Paulo, há 43.

Em tese, essa liderança corporativa seria representativa da elite empresarial. Não é. O atual presidente da Federação da Agricultura do Acre já foi condenado a seis anos de reclusão por participar de uma rede de exploração de menores. Clésio Andrade, que está há 25 anos à frente da Confederação Nacional do Transporte, teve uma condenação a cinco anos. No Rio, pegaram na rede das roubalheiras de Sérgio Cabral o presidente da Fecomércio e seu colega da Fetranspor, doutor Lélis Teixeira. O presidente da Fiesp, Paulo Skaf, foi acusado de operar um caixa 2 em suas campanhas políticas.

A trama das “taxas negociais” e o coronelato patronal nada têm a ver com classes sociais, o que aproxima e encanta sindicalistas do andar de cima e do andar de baixo é o acesso à Bolsa da Viúva.

 


Elio Gaspari: A cadeia de Lula virou seu melhor palanque

Lula não pode dar entrevistas, mas sua voz estará na campanha, como a do aiatolá Khomeini nos anos 70

A juíza da Vara de Execuções Penais de Curitiba decidiu que Lula não pode receber jornalistas. Ela informou também que ele está em “situação de inelegibilidade”. Seja lá o que for o que isso signifique, a essência da decisão faz sentido. O que lhe falta é eficácia.

No início dos anos 70, quando começaram a aparecer cassetes com os áudios de sermões do aiatolá Khomeini, o Xá do Irã mal ligou. Afinal, ele era um islamita radical exilado na Turquia, Iraque e França. A liderança religiosa desprezava-o, e os poderes do mundo acreditavam que era apenas um excêntrico. O sujeito de barbas brancas tomou o poder e criou uma ditadura muito mais intolerante e repressiva. A ilusão foi favorecida pelo romantismo da voz do ausente. Isso aconteceu no tempo em que não havia internet.

Lula é um “apenado” na carceragem da Federal de Curitiba, e, proibindo-o de dar entrevistas, cumpre-se a lei, mas não se impede que ele seja ouvido. Mais: limita-se a sua capacidade de dizer tolices, como a louvação dos pneus queimados ou as ocupações de propriedades, cometidas na sua última fala.

A decisão judicial não tem eficácia porque Lula recebe advogados, e eles podem gravar o que ele lhes diz, com direito a divulgar o áudio. Por ser um preso, ele não pode montar palanques na cadeia. Por ser um cidadão, pode falar.

Em situações malucas, até os doidos acabam mostrando que são sábios. No século passado, quando o frenesi anticomunista tomou conta dos Estados Unidos, o compositor Woody Guthrie acabou num hospício, seus amigos preocuparam-se, e ele acalmou-os:

“Eu é que estou preocupado com vocês. Lá fora, se você diz que é comunista, vai para a cadeia. Aqui, eu digo que sou comunista, e eles dizem que sou maluco.”


Elio Gaspari: 26 de junho de 1968, a alvorada da treva

A Passeata dos Cem Mil ficou como boa lembrança, mas não impediu a longa noite da ditadura escancarada

Daqui a duas semanas serão lembrados os 50 anos da "Passeata dos Cem Mil", a bonita jornada durante a qual o Centro do Rio foi tomado por milhares de pessoas que defendiam as liberdades públicas. No chão, marchava-se ao lado de intelectuais e artistas. Do alto dos edifícios choviam papéis picados. Será um momento de doce nostalgia para os septuagenários que viveram aquela tarde.

Numa época em que a democracia brasileira vive a tensão dos radicalismos do século XXI, convém que se revisite aquele dia, embebido nos radicalismos da ditadura. A passeata tomou conta da história de 1968, mas ela foi um crepúsculo. A treva amanhecera horas antes, durante a madrugada, quando um caminhão com 50 quilos de dinamite explodiu diante do portão do QG do II Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho e ferindo cinco outros militares.

O atentado foi obra da Vanguarda Popular Revolucionária e nele estiveram dez terroristas. Dias antes, a VPR havia roubado fuzis num hospital militar e o general que comandava a tropa do Exército em São Paulo lançara um desafio infantil: “Atacaram um hospital, que venham atacar meu quartel". Vieram. O motorista do caminhão saltou, o veículo bateu num muro, Kozel foi ver se havia alguém na boleia e a dinamite explodiu.

Oito horas depois, no Rio, a passeata saiu da Cinelândia e percorreu a Avenida Rio Branco. No dia seguinte, todos os grandes jornais noticiaram com destaque os dois fatos. Aos poucos, porém, a lembrança do atentado evaporou, abafada pelo romantismo da manifestação do Rio e pelo silêncio que protege o radicalismo esquerdista da época.

Na passeata, enquanto uma parte dos manifestantes dizia que "o povo unido jamais será vencido", outra, menor, proclamava que "o povo armado jamais será vencido". Seis meses depois, o presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5, e começou a longa noite da ditadura escancarada.

Passados 50 anos, é mais agradável lembrar a passeata do que o atentado. Nas palavras da militante que estava num carro de apoio, a bomba “não serviu para nada, a não ser para matar o rapazinho". O atentado serviu para estimular radicalismos, influenciando a vida do país, enquanto a passeata ficou como uma boa lembrança, nada além disso. Nada a ver com os comícios de 1984 pedindo eleições diretas. Elas não vieram, mas o povo unido levou o colégio eleitoral a eleger indiretamente o oposicionista Tancredo Neves.

O atentado e a facilidade com que se assaltavam bancos no final da década de 60 deram aos grupos radicais de esquerda uma enganosa sensação de invulnerabilidade. Quatro meses depois, dois dos terroristas que estiveram no ataque ao QG participaram do assassinato de um capitão americano que vivia em São Paulo.

A ditadura respondeu ao surto radical com torturas e mortes. Dos treze militantes que participaram dos ataques ao hospital militar e ao QG, dois foram executados, sete foram presos e três deixaram o país. Só um ficou livre no Brasil, com outro nome.

A VPR e suas congêneres nunca defenderam a ordem democrática. Já os ministros que participaram da reunião do Conselho de Segurança Nacional que baixou o AI-5 exaltaram a democracia em dezenove ocasiões. Ao final, fecharam o Congresso e suspenderam o habeas corpus.

Cármen fechou a roleta do STF

Advogados espertos criaram um sistema de roleta para conseguir habeas corpus no Supremo Tribunal. Quando veem negada sua petição por um ministro, começam tudo de novo, esperando contornar o ministro que os desatendeu. Confiam no sorteio, até que o caso caia nas mãos de um voto amigo.<SW>

Em outubro do ano passado, um pedido foi para o ministro Luís Roberto Barroso e ele negou o habeas. Com a mesma documentação, pediram de novo em novembro e o caso foi para o ministro Dias Toffoli. Nova negativa e nova tentativa. Por sorteio, o pedido voltou a Barroso e ele voltou a negar o habeas. Tentaram de novo em fevereiro deste ano. Na mão do ministro Edson Fachin, tiveram a quarta negativa. Em março, insistiram. Na quinta investida o caso <SW>caiu de novo na mesa de Toffoli e ele voltou a negar. Na sexta tentativa, sempre por sorteio, o processo voltou para Barroso. Falta de sorte.

Noutro caso, o habeas corpus foi negado pelo ministro Alexandre Moraes. Na segunda tentativa, o ministro Fachin também negou-o. Novo sorteio mandou o processo para a ministra Rosa Weber, terceira negativa. A cada pedido os advogados colocavam os ministros que os desatenderam como autoridades coatoras. Desse jeito, aumentavam suas chances de levar o processo a um ministro simpático. Num terceiro caso, a manobra gerou o circuito Luiz Fux-Alexandre Moraes-Celso de Mello, sempre com negativas.

A presidente Cármen Lúcia fechou a roleta e determinou que o primeiro caso deve ficar com Barroso, o segundo, com Rosa Weber e o terceiro, com Fux.

Fez mais. Mostrou que o joguinho “configura abuso do direito e defesa" e mandou que as espertezas fossem comunicadas à Ordem dos Advogados do Brasil.

Trumpistão

Um nova-iorquino cosmopolita, que nunca votou em republicanos e tem horror a Donald Trump desde que o conheceu, há cerca de 30 anos, informa:

"Ele poderá ser reeleito em 2020. A economia vai bem e o partido Democrata está sem rumo. A eleição de novembro deverá manter a maioria republicana no Senado e, com alguma chance, manterá também sua maioria na Câmara”.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, mas acha que a Agência Nacional do Petróleo e a Petrobras estão abusando de sua cretinice quando dizem que a política de preços de combustíveis será revista depois de uma consulta pública.

Se essa modalidade de avaliação tivesse valor, Michel Temer deveria ter saído do Planalto depois das primeiras pesquisas do Datafolha e do Ibope. Felizmente, esse jogo acabará em outubro, com a consulta eleitoral.

16 anos em dois

A marquetagem do governo inventou o slogan “O Brasil voltou, vinte anos em dois".

Gente bem humorada suprimiu a vírgula e os çábios arquivaram a peça.

Com o dólar encostando nos R$ 4, Temer pode ser orgulhar de ter voltado 16 anos em dois. Em 2002, nos dias de medo diante da possibilidade de uma vitória de Lula, ele chegou a R$ 3,99.

Excelsos viajantes

Os onze ministros do Pretório Excelso já tinham uma sala exclusiva no aeroporto de Brasília. Agora o Supremo Tribunal Federal tem outra área especial, que custará à Viúva R$ 374 mil anuais, ervanário superior a um ano de salário do presidente da República.

Cada doutor dispõe de um servidor para puxar a cadeira quando senta ou levanta no plenário.

Ócio

Nos quatro próximos domingos o signatário exercitará o ócio.

 


Elio Gaspari: A Petrobras corre real perigo

Desde a crise dos caminhoneiros, nada aconteceu de bom com a Petrobras e ela tomou o caminho da empulhação

A Petrobras arruinou-se no mandarinato petista por diversos motivos. Deles, o mais pueril foi a retórica da arrogância. Infelizmente, dela e do governo têm partido declarações destinadas a iludir a boa-fé do público fingindo desconhecer a barafunda criada pela política de preços dos combustíveis. Podiam ficar só nisso.

A retórica da arrogância foi exercitada à exaustão pelos petrocomissários. Basta que se recapitule um caso. Em 2012, um funcionário da companhia holandesa SBM denunciou suas maracutaias internacionais. Elas foram confirmadas por uma investigação interna que resultou numa indenização milionária ao governo holandês. Sabia-se, pela denúncia, que a SBM teria distribuído pelo menos US$ 139 milhões a intermediários e hierarcas da estatal brasileira para azeitar contratos de aluguel de plataformas.

Dois anos depois, uma equipe da Petrobras foi à Holanda verificar o caso e anunciou-se que nada acontecera de anormal. Engano, pois a SBM começaria a negociar um acordo de leniência com a Controladoria-Geral da União. Até hoje ele não foi concluído.

Entre 2012 e 2015 foram para a cadeia os ex-diretores Pedro Barusco e Renato Duque, ambos mimados pela SBM. O representante da empresa no Brasil, Julio Faerman, passou a colaborar com a Justiça e repatriou US$ 54 milhões.

Varrida pela Lava-Jato, a doutora Dilma colocou na Petrobras Aldemir Bendine, que estava no Banco do Brasil. Ele levou consigo para uma diretoria Ivan Monteiro. Num dos lances grotescos do período, Bendine chegou a anunciar que a Petrobras “talvez” voltasse a contratar serviços e equipamentos da SBM, “uma importante fornecedora". Como, não explicou.

A retórica da arrogância era um pastel de vento. Não havia como esconder a roubalheira denunciada em 2012 e, em 2015, não era possível contratar a SBM para coisa alguma.

Na segunda-feira, o repórter Rubens Valente revelou que em 2016 o diretor Ivan Monteiro foi investigado pela Comissão de Valores Mobiliários. Tratava-se de um caso de omissão de comunicado de fato relevante ao mercado. Monteiro propôs pagar R$ 200 mil à CVM e em setembro passado fechou-se o caso. O ervanário não saiu do seu bolso, mas da seguradora que ampara a diretoria da empresa. (O ex-diretor financeiro da Petrobras durante o mandarinato petista fez pelo menos quatro acordos desse tipo, somando R$ 1,75 milhão.)

Exposto o caso de Monteiro com a CVM, a Petrobras tocou o velho realejo: “não houve qualquer condenação da CVM ou reconhecimento de culpa de parte do senhor Ivan Monteiro, tendo a autarquia concordado com celebração de termo de compromisso, procedimento utilizado e previsto em nome, aplicável ao caso".

Noves fora o mau português, ninguém havia dito que Monteiro foi condenado, nem que reconheceu culpa. Apenas deixou de fazer o que devia. Tanto foi assim que propôs pagar R$ 200 mil à CVM, com dinheiro da seguradora. Ninguém dá R$ 200 mil à Viúva a troco de nada.

O escritor mexicano Octavio Paz ensinou, faz tempo: “Quando uma sociedade se corrompe, a primeira coisa que se decompõe é a linguagem.” Nas próximas quatro quartas-feiras o signatário exercitará o ócio.


Elio Gaspari: Chegou a hora de cobrar a conta do locaute

Demorou uma semana, mas saiu a primeira prisão. A Polícia Federal trancou Vinicius Pellenz, da empresa Irapuru, de Caxias do Sul (RS). Ele é acusado de intimidar motoristas de outras empresas: “Ô nego, para teu caminhão. (...) Não leva milho, não faz nada para a Agrosul”.

Desde o primeiro momento, sabia-se que por trás do movimento dos caminhoneiros havia um locaute de empresas transportadoras. O que não se sabia era que havia mais que isso. Havia intimidações, como a de Pellenz, agromilícias, golpistas e jagunços infiltrados nas obstruções de rodovias. Em apenas 12 horas, o aplicativo “SOS Caminhoneiros”, do governo federal, recebeu dois mil pedidos de ajuda de motoristas. A PF abriu 54 investigações.

O pitoresco empresário Emílio Dalçoquio Neto, de Itajaí (SC), subiu num carro de som e pediu que se incendiassem os caminhões de sua transportadora que tentassem trafegar. Como a transportadora é dele, vá lá. Como a Dalçoquio já teve as finanças incendiadas e entrou em recuperação judicial, entende-se.

A Federação das Empresas de Transporte de Carga de São Paulo divulgou no seu site um vídeo mostrando a progressão do colapso que ocorreria se “os caminhões sumissem por cinco dias”. Acertou, mas poderá explicar a essência da profecia.

O general Sérgio Etchegoyen disse, com toda razão, que “quem apoiava a greve e apoiava as soluções teria a sua cota de responsabilidade com participação no financiamento disso”. Noves fora que quem não apoiava a greve terá que financiar a solução, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional tem um problema sobre a mesa: cobrar nos tribunais a cota de responsabilidade de quem fez locaute e formou piquetes de jagunços.


Elio Gaspari: De Tancredo@pol para Todo.Mundo

Eu ajudei a segurar o Figueiredo, pois nada é pior do que saltar no escuro gritando slogans bonitos e inúteis

"Meus patrícios,

Quem viveu o meu tempo deve lembrar. Em 1981, o último dos generais presidentes perdeu a credibilidade com o atentado do Riocentro e a saúde com um enfarte. Um ano depois, ele perdeu o controle da economia, com a quebra do país. Em 1984, o general João Baptista Figueiredo perdeu o controle da rua com a campanha das Diretas. Seu sistema nervoso explodiu, e ele tentou criar crises institucionais, disse coisas que não faziam nexo e acabou indo embora do palácio por uma porta lateral, pedindo para ser esquecido. Teve tanto êxito nisso, que essas reminiscências parecem conversa de defunto.

Eu governava Minas, percebi que a campanha das Diretas naufragaria, e disso resultaria minha eleição, pelo sistema indireto criado para perpetuar o poder dos interesses que apoiavam a ditadura. Passei todo o tempo da campanha com o pé no freio. Nunca usei informações nem dei passos que agravariam a crise. Tirei as bandeiras vermelhas dos comícios. Acabei com o regime sem gritar “abaixo a ditadura”.

Digo isso porque a situação de Michel Temer ficou parecida com a de Figueiredo. Seus gestos e sua calma beduína não se assemelham aos do general cavalariano, mas seu palácio lembra o dele em 1984, o de Vargas em 1954, o de João Goulart em 1964 e o de Costa e Silva em 1968. Tudo o que podia dar errado, errado dava. E se nada de errado podia acontecer, o presidente e seus conselheiros criaram novas encrencas.

Temer teve aquela conversa desastrosa com Joesley Batista. Quando começou o movimento dos caminhoneiros e das transportadoras, foi para uma cerimônia banal no Rio. Lá atrás, Gregório Fortunato, chefe dos capangas de Getúlio, mandou matar Carlos Lacerda. Dezenove dias depois, matou-se Vargas. Em março de 1964, contra minha opinião, Jango foi à reunião com os sargentos no Automóvel Club, e seis dias depois estava asilado no Uruguai. Em julho de 1968, Costa e Silva repeliu o estado de sítio, que duraria, no máximo, quatro meses. Em dezembro, baixou o AI-5, que durou dez anos. Como não falo mal de senhoras, passo longe de Dilma Rousseff.

Nessa estranha crise dos caminhoneiros, os colaboradores de Temer deram entrevistas desconexas e inúteis. Nem ceder ele soube. Como diria o divertido jornalista Nertan Macedo, com quem almocei outro dia, o governo foi para a televisão com a imponência de senadores romanos e a inteligência de Mike Tyson.

Quem não gosta de Temer tem todos os motivos para se regozijar, mas não deve se esquecer de que o futuro está no próximo passo, e só nele. Em outubro será escolhido um novo presidente. Muita gente dirá que as escolhas disponíveis são pobres. Nada posso fazer, mas novamente peço-lhes que olhem para trás. Em janeiro de 1964 o Brasil tinha dois candidatos: Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek. No clima polarizado daqueles dias, uma parte da militância e da elite política não aceitava a ideia de empossar o algoz de Vargas ou o mineiro que chamava de corrupto. Três meses depois começou uma noite que durou 21 anos.

Durante a treva, o mais entusiasmado dos lacerdistas admitia que teria sido preferível uma vitória de JK. O mesmo se deu com o outro lado. Aliás, em 1967 os dois juntaram-se, mas já era tarde.

Saúdo meus compatriotas e despeço-me."

Tancredo Neves.

 

 


Elio Gaspari: O MP entrou na defesa dos maganos

O Supremo abriu a brecha, e a história do fim do foro arrisca se transformar em conversa para boi dormir

O Ministério Público precisa se olhar no espelho. No Supremo Tribunal Federal ele defendeu o fim do foro especial para deputados e senadores. Essa decisão pontual foi festejada como uma conquista genérica. Engano. Menos de um mês depois, no Superior Tribunal de Justiça, o MP sustenta exatamente o contrário, defendendo a manutenção do foro na parte que lhe cabe do latifúndio.

Com o apoio da Procuradoria-Geral da República, deputados e senadores que cometam crimes fora do período de seus mandatos serão julgados na primeira instância. No STJ, contudo, o Ministério Público pediu que se preserve o foro especial para governadores, desembargadores, conselheiros do Tribunal de Contas e procuradores que atuam junto à corte. Em poucas palavras, diante da brecha aberta pelo Supremo, o "Tribunal da Cidadania" defende a jurisprudência do "quem manda aqui sou eu". Aceita, ela haverá de se propagar pelos estados.

O pedido do MP foi endossado pelo ministro Mauro Campbell e estava sendo julgado pela corte especial do STJ, composta pelos 15 ministros mais antigos. Como o ministro Luis Felipe Salomão pediu vistas, o caso será apreciado em junho. (Salomão remeteu à primeira instância um processo em que é réu o governador da Paraíba.)

Num exemplo hipotético, que poderá ocorrer em alguns estados:

Se um senador e um vereador (ou procurador) forem casados com duas irmãs e ambos matarem as mulheres, o senador será julgado na primeira instância e o vereador (ou o procurador) irá para o Tribunal de Justiça do seu estado. O senador não tem foro especial, mas os outros dois têm.

Expandida, a festa preservará o foro de todos os desembargadores, juízes de tribunais federais regionais, conselheiros de contas estaduais e municipais. E mais, bingo: dos membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais.

O foro especial favorece 58 mil maganos com funções em 40 tipos de cargos. A decisão do Supremo Tribunal, restrita a parlamentares, alcança algo como mil pessoas, levando-se em conta que há casos de cidadãos cujo mandato acabou. Na ponta do lápis, o Supremo livrou-se de mais de 60 processos.

A corte especial do STJ deverá decidir a questão no dia 6 de junho. Aberta a brecha, ficará a lição do "poetinha" Vinicius de Moraes:

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do Carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira.

O INDULTO DE LULA ESTÁ NO FORNO
Ciro Gomes tem toda a razão quando diz que não se pode oferecer um indulto a Lula enquanto ele tiver recursos tramitando na Justiça. Seria o mesmo que considerá-lo culpado.

Isso não elimina o fato de que se Ciro vier a ser eleito presidente da República poderá indultar Lula no primeiro dia de governo. (O ministro Luís Roberto Barroso parece ter farejado essa carta ao restringir o indulto de fim de ano de Temer.)

Em princípio, há um famoso precedente histórico. Em 1974, um mês depois de ter assumido a Presidência dos Estados Unidos, Gerald Ford perdoou Richard Nixon, arrastado pelo caso Watergate.

Mas nem tudo é o que parece. Ford perdoou Nixon argumentando que seu julgamento demoraria pelo menos um ano, dividindo o país. Segundo Ford, ele já havia sido obrigado ao inédito constrangimento de deixar a Presidência dos Estados Unidos.

Lula não renunciou e já foi condenado em duas instâncias judiciais.


Elio Gaspari: A CIA achou que Geisel dominaria a ‘tigrada’

A História do Brasil continua a ser escrita pelos americanos. O documento da CIA que revelou o encontro do presidente Ernesto Geisel com três generais para discutir critérios para os assassinatos de dissidentes políticos avacalha os 40 anos de política de silêncio que os comandantes militares cultivam em relação às práticas da “tigrada” dirigida pelo Centro de Informações do Exército, o CIE.

O documento, mandado pelo diretor da CIA ao secretário de Estado Henry Kissinger, revelou que, duas semanas depois de sua posse, Geisel fez uma reunião com o chefe da Serviço Nacional de Informações, João Batista Figueiredo, e com os generais Milton Tavares de Souza, comandante do CIE e seu sucessor, Confúcio Avelino. Tavares de Souza, o “Miltinho”, era um asceta, radical, porém disciplinado. Confúcio, um medíocre.

Na reunião, “Miltinho” revelou que já haviam sido executadas 104 pessoas. Segundo a narrativa da CIA, a matança ficaria restrita aos “subversivos perigosos”, e cada proposta de execução deveria ser levada ao general Figueiredo, para que ele a referendasse. Esse projeto de controle do Planalto sobre o CIE ficou na teoria, ou na imaginação da CIA.

No dia 11 de abril, quando o telegrama foi transmitido a Washington, circulava no Planalto um documento desconhecido, do qual sabese apenas a reação do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel: “Estamos sofrendo uma ditadura dos órgãos de segurança. (...) toda vez que a cousa começa a acalmar, o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para permanecer, para mostrar serviço. (...) A verdade é que eles fazem o que querem.”

Depois de abril, pelo menos 15 guerrilheiros do Araguaia foram mortos, e tanto Geisel como Figueiredo, “Miltinho”, Confúcio e Golbery sabiam que essa matança estava em curso desde outubro de 1973. (Executavam-se inclusive os jovens que atendiam ao convite de rendição e colaboravam com a tropa.) Em janeiro de 1974, Geisel ouviu de um oficial do CIE uma narrativa das operações no Araguaia, onde haviam sido capturados 30 guerrilheiros. Geisel perguntou: “E esses 30, o que eles fizeram, liquidaram?”. Resposta do tenente-coronel: “Alguns na própria ação. E outros presos depois. Não tem jeito não.”

Semanas depois, ao convidar o general Dale Coutinho para o ministério do Exército, ouviu dele que “o negócio melhorou muito, agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar.” Geisel respondeu: “Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”

A metodologia narrada pelo serviço americano foi seguida no extermínio da direção do Partido Comunista Brasileiro. Antes de 1974, os comunistas eram perseguidos ou presos, mas não eram assassinados. Em abril, três dirigentes comunistas haviam sido capturados e mortos pelo CIE. No ano seguinte, outros sete.

Com a destruição das siglas metidas em terrorismo, o CIE neutralizou a única organização esquerdista que agia na esfera política. Para isso, dispunha de pelo menos uma preciosa infiltração, e conhecem-se casos de tentativas de recrutamento, pela CIA, de capas-pretas que viviam na clandestinidade. À falta de dirigentes, em 1975 a “tigrada” continuou matando militantes em sessões de tortura. A ideia de controlar o CIE colocando-o sob a supervisão do Planalto simplesmente não funcionou.

Em 1976, depois da morte do operário Manuel Fiel Filho no DOI de São Paulo, Geisel demitiu o comandante do II Exército, general Ednardo D'Avila Mello, e defenestrou Confúcio. Mesmo assim, só restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas em 1977, quando mandou embora o ministro do Exército, Sylvio Frota. (No dia da demissão de Frota, doidivanas do CIE pensaram em atacar o Palácio do Planalto.)

Para as vivandeiras e napoleões de hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na ditadura praticaram-se crimes e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça.


Elio Gaspari: Três cenas de ladroagens, sem PT

Em apenas cinco dias estouraram três denúncias, todas capazes de deixar a origem da Lava-Jato no chinelo

Desde 2014, quando uma pequena investigação bateu no doleiro Alberto Youssef e deu origem à Operação Lava-Jato, não se via coisa igual. Em menos de uma semana, explodiram três bombas no andar de cima. Diferentes entre si, deverão trazer consequências comparáveis às decisões do juiz Sergio Moro e ao povoamento das carceragens de Curitiba. Recapitulando-as:

Na quarta-feira passada a polícia prendeu a nata dos operadores de câmbio paralelo nacional, encarcerando 33 doleiros. Mesmo sabendo-se que o maior deles, Dario Messer, está foragido, pode-se especular que pelo menos 20 eram muito maiores que Youssef. Se apenas cinco vierem a colaborar com a Justiça, caberão várias Lava-Jatos na Operação Câmbio, Desligo. Ela está na vara do juiz Marcelo Bretas, que já botou na cadeia o ex-governador Sérgio Cabral e a cúpula da sua “gestão modernizadora” do Rio.

Por precaução, papeleiros ilustres já estão se afastando do mercado. Alguns deles sobreviveram às operações Satiagraha e Castelo de Areia. Nos dois casos, a falta de cuidado de investigadores e procuradores permitiu que fossem atropelados pela cegueira da Justiça das cortes superiores. A equipe da Lava-Jato tirou a venda da Justiça, e deu no que deu.

No domingo soube-se que, em março, o PM paulista Abel Queiroz, funcionário de uma empresa de carros-fortes, contou à Polícia Federal que foi pelo menos duas vezes entregar dinheiro no escritório do empresário José Yunes, bom amigo de Michel Temer, e seu assessor especial nos primeiros meses de governo. A PF acredita que esse ervanário valia R$ 1 milhão e saiu da Odebrecht.

No dia seguinte, outra novidade: autoridades suíças informaram que desde 2007 o engenheiro Paulo Vieira de Souza, o “Paulo Preto” do PSDB, transferiu US$ 34,4 milhões para bancos locais. O doutor abriu sua conta na Suíça 43 dias depois de ter sido nomeado diretor de engenharia da Dersa, a estatal de rodovias de São Paulo. Num episódio inusitado, a existência desse dinheiro foi revelada há meses pela própria defesa de “Paulo Preto”. Em 2010, quando seu nome foi associada a traficâncias no setor de transportes de São Paulo, ele disse que “não se larga um líder ferido na estrada a troco de nada, não cometam esse erro”. O estado é governado pelo tucanato desde 1995, e “Paulo Preto” está preso desde abril.

Uma eventual colaboração de doleiros ainda é matéria de especulação, mas os antecedentes permitem supor que algumas virão. Youssef foi uma peça vital para a Lava-Jato, e os irmãos Chebar fritaram Sérgio Cabral. O sinal mandado por “Paulo Preto” sugere que ele já não está a fim de ficar ferido na estrada.

A prisão dos doleiros terá efeitos multipartidários. De saída, ela bate em notáveis do PSDB e do PMDB. A revelação do PM que levava dinheiro ao escritório de Yunes flamba Temer e seu PMDB. Já a fortuna exportada por “Paulo Preto” vai ao coração do PSDB chique de São Paulo.

Nessa sucessão de novidades ainda há mais: pela primeira vez desde que a Lava-Jato entrou nas petrorroubalheiras do PT, a rede caiu em cima de doutores que nada têm a ver com o comissariado. Pelo contrário, eram ilustres defensores da deposição de Dilma Rousseff em nome da moralidade pública. Quem foi para as ruas em 2016 deve se lembrar dessa esperança.

* Elio Gaspari é jornalista

 


Elio Gaspari: O movimento pode ser uma milícia

O MLSM mostrou que o que parece ser defesa do andar de baixo às vezes é bandidagem

Condenado por corrupção, o maior líder popular surgido depois de Getúlio Vargas está na cadeia. Na madrugada de 1º de maio desabou em São Paulo um prédio de 24 andares onde viviam 92 famílias que o ocupavam em nome de um Movimento de Luta Social por Moradia, o MLSM. Seja o que for aquilo que se chama de “movimento”, o MLSM é uma milícia que domina oito prédios e barracas de comércio espalhados pela cidade. No edifício que desabou cobrava aluguéis de até R$ 400 mensais.

Diante da exposição dos métodos do MLSM, deu-se uma reação, mostrando que havia um risco de satanização dos “movimentos”. Quem defende os “movimentos” sem condenar as milícias sataniza aquilo que pretende proteger.

Não se pode dizer que o MLSM seja um ponto fora da curva. Em 1997 o estado de São Paulo era governado por Mário Covas, avô do atual prefeito, Bruno, e três pessoas haviam sido mortas pela PM num conjunto habitacional da Fazenda da Juta, invadido pelo “movimento” dos sem teto do ABC. Durante a ocupação, apartamentos de dois quartos e pequena sala eram negociados por atravessadores. Um dos invasores era um jovem de 19 anos, solteiro. No Nordeste já houve filas de fazendeiros pedindo ao MST que invadisse suas terras para que pudessem buscar indenização do governo.

A caminho da cadeia, Lula disse: “Não sou um ser humano, sou uma ideia”, e saudou uma plateia dos “movimentos” habituados a “queimar os pneus que vocês tanto queimam,” e a fazer “as ocupações no campo e na cidade”. Prometeu-lhes: “Amanhã vocês vão receber a notícia que vocês ganharam o terreno que vocês invadiram.”

Lula, o PT e muitas organizações de mobilização social nada têm a ver com o MLSM ou picaretagens semelhantes. O problema está no fato de que jamais denunciam o que é feito na suposta defesa do andar de baixo. Admitindo-se que invadir prédios seja uma forma de buscar a justiça social (o que não é), fazer de conta que não se vê a atuação de uma milícia é suicídio.

Pensa-se que, se o objetivo é social, o resto não importa. Isso vale tanto para as invasões como valeu para a manutenção de contubérnios com empresários e políticos profissionalmente corruptos. Foi assim que se abriu a trilha de malfeitorias que levou o maior líder popular à cadeia, por corrupção.


Elio Gaspari: Palocci foi o quindim do mercado

Antonio Palocci chegou ao Ministério da Fazenda em 2003 antecedido por denúncias de malfeitorias praticadas quando era prefeito de Ribeirão Preto, mas foi protegido pela simpatia do andar de cima, sobretudo da banca. Uma das maracutaias envolvia uma licitação de R$ 1,2 milhão para a compra de cestas básicas, grosseiramente manipulada para favorecer empresas amigas.

Como ministro da Fazenda de Lula e chefe da Casa Civil de Dilma Rousseff, Palocci tornou-se o comissário do andar de cima. A aliança de empreiteiros, empresários e papeleiros com Lula, Dilma e José Dirceu era essencialmente oportunista. Com Palocci havia mais que isso. O ex-ministro enriqueceu ao passar pelo governo.

Quando o juiz Sergio Moro bloqueou suas contas pessoais e empresariais, tinha R$ 30,8 milhões. Vivia num apartamento cinematográfico comprado por R$ 6,6 milhões. Uma parte contabilizada dessa receita veio de contratos de consultoria com grandes empresas.

A colaboração do ex-ministro poderá resultar na exibição de novas conexões da máquina de roubalheiras. Hoje, empreiteiros e fornecedores larápios tornaram-se arroz de festa. Palocci operava no lado oculto da Lua e pode mostrar como as propinas disfarçavam-se de caixa dois ou fingem ser contratos de consultoria. Um exemplo pitoresco dessas ligações perigosas circulou há poucos meses.
Palocci teria contado que, em 2002, antes do início do romance do PT com a banca, armou a transferência de US$ 1 milhão do ditador líbio Muammar Gaddafi para a campanha de Lula. Tomara que o comissário tenha mostrado à Polícia Federal a trilha bancária dessa transação.

A CHAPA CIRO-HADDAD ESTÁ NO BARALHO
Com nome e sobrenome, a ideia de uma chapa com Ciro Gomes (PDT) na cabeça e Fernando Haddad (PT) na vice veio de Luiz Carlos Bresser-Pereira e foi revelada pelo repórter Mario Sergio Conti, narrando uma conversa que juntou os dois, mais o ex-ministro de FHC e o professor Antonio Delfim Netto. Sem nome e sobrenome, a ideia está nos baralhos de muita gente, inclusive nos de Ciro e Haddad.

Exposta assim, a chapa parece uma especulação prematura. Mostrada de outro jeito, ela é quase inevitável. Basta que sejam aceitas duas pré-condições:

1 - Nos próximos meses Ciro e o PT convivem num pacto de não agressão, como vêm fazendo até agora.

2 - Até agosto as pesquisas indicam que Ciro e Haddad (admitindo-se que ele venha a ser o poste de Lula) têm algum fôlego, mas nenhum dos dois é forte o suficiente para ter certeza de que chegará ao segundo turno. Hoje Ciro tem 9% e Haddad, 2%.

Admitindo-se que as pesquisas mantenham Ciro em melhor posição que Haddad, o PT troca uma eleição perdida pela esperança de uma vice.

A maior resistência à chapa Ciro-Haddad virá do PT, onde suas facções sonham com cenários que vão da imortalidade política e eleitoral de Lula ao delírio de uma explosão popular, com gente nas ruas e pneus queimados.

O PT tem uma propensão suicida. No início da campanha eleitoral de 2014, a senadora Marta Suplicy lançou-se numa operação para substituir Dilma Rousseff, com um "Volta Lula". Tinha apoios e até mesmo a cumplicidade silenciosa de "Nosso Guia".

A manobra morreu porque Lula não disse a frase fatal: "Quero a cadeira". Meses depois, reeleita, Dilma colocou Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, mas deixou que ele fosse fritado pelo PT. Olhando-se pelo retrovisor, a história do PT teria sido outra com Lula candidato e Levy trabalhando em paz.

LULA SOLTO
Um sábio que já viu cinco eleições presidenciais avisa:

"Se Lula estiver em liberdade no dia da eleição, mesmo sem ser candidato, dobrará as chances do seu poste, seja ele quem for.

Os ministros do Supremo podem saber muito direito, mas não conseguiriam explicar na rua por que um homem libertado 'Excelso Pretório' pode ser culpado de alguma coisa."

LULA PRESO
As chances de Lula ser libertado antes da eleição de outubro pelo Judiciário, pelo Padre Eterno, ou por extraterrestres, são praticamente nulas.

POSTE 2.0
Está entendido que o ex-governador baiano Jaques Wagner não é candidato a poste de Lula. Hoje, o lugar é de Fernando Haddad. Como o PT não consegue viver sem uma briga interna, surgiu um novo nome, o do ex-chanceler Celso Amorim.

JANOT X RAQUEL
Mesmo tendo cumprido uma obsequiosa quarentena no exterior, o ex-procurador-geral Rodrigo Janot não conseguiu desencarnar.

AVANÇO E ATRASO
As montadoras brasileiras perderam a parada na qual pretendiam prorrogar a festa de incentivos fiscais que drenaram a bolsa da Viúva em R$ 28 bilhões desde 2006. Deverão se contentar com mimos menores.

As empresas querem benefícios e prometem investir em tecnologia, mas suas reivindicações acontecem num momento em que a China se arma para liderar o mercado de carros elétricos, coisa que em Pindorama não existe nem em sonho.

Piorando o quadro, os chineses da XEV acabam de apresentar um modelo de veículo popular elétrico cujas peças, salvo o chassi, os vidros e as baterias, são impressas em 3D.

TEMER CANDIDATO
Deve-se retificar a informação segundo a qual Temer não pode deixar que o balão de sua candidatura à reeleição murche, pois se o fizer, não conseguirá que o seu café venha quente.
Dizendo que não é candidato, nem água da pia receberá.

TERCEIRA DENÚNCIA
Há fortes indícios de que, havendo uma terceira denúncia contra Temer, ela não será votada pela Câmara antes da eleição de 7 de outubro. Disso resultará uma situação girafa, pois no dia seguinte existirão novos deputados, a serem empossados em 2019.

A Câmara de hoje, com um mandato caduco, não deveria abrir um processo que poderia afastar um presidente com poucos meses de mandato.

Nessa confusão, a denúncia poderia ficar nas nuvens, perdendo seu efeito letal no dia 1º de janeiro, quando Temer deixará a Presidência.

Pelas regras de hoje, no dia seguinte, ele perde o foro especial.

RECORDAR É VIVER
Os padecimentos do general Eduardo Villas Bôas, que sofre de uma doença degenerativa, parecem ter criado uma situação original. Ela é inédita num regime democrático, mas na ditadura o ministro do Exército, Orlando Geisel, comandou a tropa debilitado por um tifo. Homem magro, perdeu 12 quilos e passou alguns períodos em casa, obrigado a manter repouso absoluto.

A saúde de Orlando Geisel começou a ratear em 1972, com uma sucessão de gripes. Ele tinha um enfisema pulmonar, não se tratava e evitava médicos. No ano seguinte houve dias em que mal tinha forças para comparecer a uma cerimônia militar.

Naquela época ninguém sabia da doença do ministro e quem sabia fingia ignorância.


Elio Gaspari: O PSDB está desunido e desorientado

Nas mãos de Geraldo Alckmin, o partido fundado por Mário Covas virou um PT chique, e FHC fez que não notou

O PT teve dois presidentes denunciados por corrupção (José Dirceu e José Genoino), o PSDB também (Aécio Neves e Eduardo Azeredo). Quando estourou o escândalo do mensalão, o PT decidiu peitar a investigação e o processo, o PSDB também. Veio a Lava Jato, e o PT resolveu continuar na tática da negativa da autoria e no enfrentamento político. O PSDB também.

Em 2007, quando estourou o escândalo do mensalão mineiro, Ruth Cardoso, mulher de FHC e sua consciência social, sustentou que o ex-governador Eduardo Azeredo deveria ser afastado da presidência do PSDB. Não foi ouvida.

Esse precedente deu a Aécio Neves razões para permanecer na presidência do partido. Só quando sua situação tornou-se insustentável, deu uma carteirada em Tasso Jereissati e apoiou a escolha de Geraldo Alckmin para o lugar.

Se essa onipotência fosse pouca, o partido de Mário Covas e Franco Montoro foi dominado pela mentalidade provinciana de Alckmin. Primeiro ele fritou a liderança do PSDB de São Paulo inventando o "gestor" João Doria.

Se tudo desse certo, ele fritaria os tucanos pela segunda vez elegendo para seu lugar o vice Márcio França, do PSB. Deu errado porque o "gestor" escapuliu da prefeitura paulistana e arrebatou a candidatura ao governo.

Ganha uma viagem a Pindamonhangaba quem for capaz de citar cinco realizações de França em sua carreira política e outras cinco de Doria na prefeitura.

As denúncias contra Azeredo e Aécio ameaçam explodir o PSDB, mas as articulações de Alckmin estão implodindo-o. Sua candidatura à Presidência poderá significar o coroamento do extermínio.

Em 2004, quando o juiz Sergio Moro escreveu um artigo comparando a Lava Jato à Operação Mãos Limpas italiana, lembrou que dela resultou a destruição do sistema partidário italiano. Petistas e tucanos não lhe deram atenção e hoje os dois principais partidos brasileiros estão feridos.

E o MDB? Numa repetição do que aconteceu na França do Setecentos, arrisca-se assistir a um triunfo do pântano.

O colapso das propostas dos tucanos e dos petistas não faz bem ao país. Se os dois partidos decidiram enfrentar o problema da corrupção protegendo corruptos, isso não invalida as ideias que defendem, até porque do pântano saem sapos, não ideias.

Montoro e Mário Covas já se foram. Do time de fundadores do PSDB resta Fernando Henrique Cardoso. Tem passado e, aos 86 anos, seu futuro está numa encruzilhada. Nela, se olhar para trás, poderá desempenhar um papel político relevante.

Infelizmente, seu último livro "Crise e Reinvenção da Política no Brasil"é um bufê de autoelogios, onde se alternam boas causas e platitudes.

Em alguns momentos, FHC parece-se com um Jean de Léry do século 21. Olha para o Brasil com o distanciamento do seminarista francês observando os tupinambás que o mantiveram cativo na baía da Guanabara no século 16. Lendo-o, percebe-se o que está faltando ao PSDB: um segundo volume do "Crise e Reinvenção" dizendo tudo o que FHC não quis dizer no primeiro.

O ex-presidente é um homem cordial e não gosta de confrontos, mas deve-se registrar que na sua "Reinvenção" faltou alguma coisa: em 238 páginas ele não precisou mencionar Geraldo Alckmin, candidato de seu partido à sucessão presidencial.