Elio Gaspari: Militares na política produzem anarquia

Houve um tempo em que se sabia o nome dos ministros da Educação e da Saúde. Depois, as pessoas tiveram que aprender a composição do Supremo Tribunal Federal e conheceram também a péssima opinião que alguns deles têm de seus colegas. Agora começa-se a aprender nome de generais. Há o Villas Bôas, o Mourão e o Augusto Heleno, e o presidente do Supremo Tribunal levou um quatro estrelas da reserva para sua assessoria.

Mau sinal. Faz tempo, quando o presidente Ernesto Geisel decidiu promover Jorge de Sá Pinho a general de Exército, um curioso perguntou-lhe quem era ele.

— É um grande oficial, e a prova disso é que você não sabe quem é.

(Em 1984 Sá Pinho foi um dos generais do Alto Comando que impediram aventuras contra Tancredo Neves, mas pouca gente se deu conta.)

Quando se sabe o nome de generais, algo estranho está acontecendo. Felizmente dois dos notáveis de hoje estão na reserva. Nada a ver com o tempo em que comandantes de guarnições metiam-se em política. Em 2014 o general Hamilton Mourão comandava a poderosa tropa do Sul, meteu a colher onde não devia e perdeu o comando. Pouco se falou do episódio que em outros tempos abriria uma crise. Ele mesmo reconhece que “andei extrapolando o tamanho da minha cadeira, e a autoridade do comandante não pode deixar de ser exercida”. Quando a confusão é enorme, tende-se acreditar que a entrada dos militares na cena política é um remédio de última instância. Não é. Quando os militares ocupam a cena, acaba uma confusão e começa outra, a da anarquia militar.

Um golpe derrubou D. Pedro II em 1889 e, dois anos depois, o vice-presidente marechal Floriano Peixoto soprou o presidente marechal Deodoro da Fonseca para fora do palácio. Floriano governou até 1894, esmagou duas rebeliões militares e fuzilou um marechal.

Durante o tumultuado regime constitucional que foi de 1946 a 1964 ocorreram quatro revoltas de generais. O consulado militar outorgou-se o primado da ordem e, mesmo com censura e AI-5, as revoltas também foram quatro: 1965, 1968, 1969 e 1977. Noves fora o Riocentro, de 1981.

Por maior que seja a confusão existente, quando se chama os militares para botar ordem no circo, cria-se outra confusão, que nem eles são capazes de prever. O projeto de ordem de 1964, com o general Humberto Castelo Branco à frente do processo, durou exatamente 12 horas.

As 12 horas do general francês
No início da noite de 30 de março de 1964 nem o general Olímpio Mourão Filho sabia que derrubaria o presidente João Goulart. Só durante a madrugada de 31 é que ele disparou telefonemas anunciando que se rebelara. Havia diversas conspirações em curso, mas nenhuma delas estava associada a Mourão, cuja tropa era despicienda. Às oito da manhã o general Amaury Kruel, comandante das guarnições de São Paulo, recusou-se a entrar naquilo que chamou de a “quartelada do senhor Mourão”.

No fim da noite, Kruel entrou e decidiu a parada. Restava a João Goulart a tropa do Rio, mas ao longo da manhã ela derreteu. Às 13h do dia 1º de abril o general Castelo Branco telefonou a um amigo dizendo que o levante estava vitorioso. Castelo, um general de tintas francesas, prestígio militar e tradição legalista, comandava o Estado-Maior do Exército e parecia ser o chefe da nova ordem. Na juventude, Castelo e Kruel haviam sido amigos, mas desentenderam-se durante os combates de Monte Castelo, na Itália. Faltou pouco para que o “Alemão” encestasse “Tamanco”. Nunca voltaram às boas. Kruel tinha um inimigo no quartel-general, mas tinha também um amigo, o general Arthur da Costa e Silva, inexpressivo e mal falado, porém, audacioso. Nas horas em que tudo confluía para a sagração de Castelo, os dois entenderam-se.

Por volta das seis da tarde, Costa e Silva estava na sala de Castelo com o general Ernesto Geisel e saiu para dar um telefonema noutro lugar. O tenente-coronel Leônidas Pires Gonçalves, que saía de um banheiro, assistiu ao seguinte diálogo entre Geisel e Costa e Silva:

—Por que o senhor não vai assumir o I Exército (atual Comando Militar do Leste)? —Eu vou assumir essa coisa toda, respondeu Costa e Silva. (A “coisa” vai por conta do cavalheirismo de Leônidas.)

À 1h da madrugada do dia 2, 12 horas depois do telefonema comemorativo da vitória, Geisel redigiu uma nota informando que “o excelentíssimo senhor general Arthur da Costa e Silva” assumira o comando do Exército. Passados dois anos e uma revolta militar, ele emparedou Castelo e tornou-se presidente. Em 1968, emparedou-se noutra revolta e baixou o Ato Institucional nº 5. Em março de 1964 muita gente achava que era preciso tirar os militares dos quartéis, mas ninguém pensava que a República acabaria na mão de Costa e Silva, nem ele.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo está mostrando Pindorama a um cretino sueco que participa de um programa de intercâmbio internacional de idiotas. Até agora não conseguiu responder a uma pergunta do colega:

“—Por que no Brasil há filas de pacientes no sistema público de saúde e há filas de médicos oferecendo-se para cuidar de celebridades?”

AULA DE CONDUTA
Diante da frenética corrida dos médicos à cabeceira de Jair Bolsonaro (foram cinco), vale a lembrança de um episódio ocorrido em 2014.

O cirurgião americano Wayne Isom estava de férias quando recebeu um telefonema. Era um colega chamando-o para uma operação e deu-se o seguinte diálogo: —Estou de férias.

—Mas é uma pessoa muito importante. — Todos os pacientes são importantes, mas eu tenho que jogar golfe às 9h.

— Mas eles querem você. (Isom era o mais renomado cirurgião cardiovascular do país.) —Quem é?

—Não posso te dizer, é uma pessoa importante.

— Se você não pode me dizer, vou jogar meu golfe.

Isom indicou um nome e foi em frente. O ex-presidente Bill Clinton foi operado com sucesso.

RAQUEL DODGE SALVOU TEMER
Deixando Brasília, Michel Temer deveria construir um pequeno oratório para agradecer uma graça recebida da procuradora-geral Raquel Dodge.

Os çabios do Planalto decidiram prorrogar por 30 anos cinco concessões de 13 mil quilômetros de ferrovias. Verdadeira girafa, pois os contratos só venceriam em 2026 e a prorrogação iria até 2056.

O Ministério Público Federal sentiu cheiro de queimado, e em agosto Raquel Dodge entrou comum a Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal. Além disso, apedido do Ministério dos Transportes, o Tribunal de Contas da União pegou o caso. A iniciativa da procuradora empalhou a girafa. Se o bicho andasse, Temer teria outro fardo para carregar. Para quem não lembra, sua encrenca no Porto de Santos nasceu de uma prorrogação de uma concessão até 2035.

A girafa da prorrogação das concessões move-se no escurinho de Brasília. Está longe do debate eleitoral.


Elio Gaspari: Haddad põe o pé na estrada

O PT entrará na campanha com sua história e sua incapacidade de reconhecer erros

Fernando Haddad tem pouco mais de um mês para mostrar que não é o “Andrade”. Sua unção aconteceu aos 45 minutos do segundo tempo, quando a vitimização de Lula já tinha rendido tudo o que podia render. É até provável que o PT tenha perdido uma semana de propaganda ao esticar desnecessariamente a corda.

Haddad entra em campo com o patrimônio dos bons tempos de Lula e com a bola de ferro das malfeitorias do petismo. Seus adversários negam que ele tenha presidido um país com emprego, crescimento e olho na redução das desigualdades sociais. Perdem tempo, pois o sujeito que perdeu o emprego lembra da vida que teve. Já os petistas, inclusive Haddad, embrulham o mensalão e as petrorroubalheiras numa delirante teoria da conspiração. Também perdem tempo, pois o resultado está aí e chama-se Jair Bolsonaro.

A cenografia que o PT armou em Curitiba foi exemplar. O comissariado, reunido num hotel, anunciou que sua Executiva Nacional decidiu, por unanimidade, colocar Haddad na cabeça da chapa. Teriam feito melhor se dissessem que carimbaram uma decisão de Lula, coisa que até as grades da carceragem da Federal já sabiam. Há dias Haddad fez-se fotografar sorrindo atrás de uma máscara de Lula. A partir de hoje começa a ser testada a cena real, com Lula sorrindo atrás de uma máscara de Haddad.

O PT e Bolsonaro têm o mesmo sonho: chegar ao segundo turno tendo o outro como adversário. Talvez esse seja o único projeto comum à senadora Gleisi Hoffmann e ao general Hamilton Mourão.

Todas as projeções feitas com base nas pesquisas desembocam na mesma pergunta: qual será a transferência de Lula? Certo mesmo é que enquanto se espera por um crescimento de Haddad capaz de levá-lo a um segundo turno contra Bolsonaro, algo que se poderia chamar de eleitorado de centro espalhou seus votos entre três candidatos: Ciro Gomes, Marina Silva e Geraldo Alckmin. Eles têm, somados, 34% das preferências. Bolsonaro tem 24%.

Com o pé na estrada, Haddad oferece um projeto, goste-se ou não dele. Seus adversários do suposto centro estão perdidos numa busca de estratégias marqueteiras. Candidato a vice na chapa de Marina Silva, Eduardo Jorge viu num indesejável dilema Haddad-Bolsonaro uma oportunidade para ferir o petista: “Bolsonaro é o candidato do Lula no segundo turno para, junto com candidato terceirizado que ele quer colocar na outra vaga da finalíssima, pavimentar a volta do Lula”.

Com anos de atraso, Marina usa a palavra “corrupto” para classificar Lula. Alckmin decide atacar Bolsonaro, freia e dá marcha a ré. Já Ciro Gomes, que negociava uma chapa com Haddad, lembrou que na eleição de 2016 ele perdeu a Prefeitura de São Paulo no primeiro turno, tendo conseguido menos votos que a soma dos nulos e em branco.

Esse clima de barata-voa dificilmente construirá candidaturas que possam ser associadas a políticas públicas. Pode-se atribuir o leve crescimento de Ciro Gomes à sua proposta de renegociação das dívidas dos inadimplentes do sistema de crédito. Ganha uma viagem à Venezuela quem for capaz de citar uma proposta de Geraldo Alckmin. Outro dia ele quis contar que pretende reforçar a Força Nacional com a contratação de conscritos que deixam as Forças Armadas, mas perdeu-se com reminiscências.

Haddad tira o tom de fantasia em que o PT envolveu sua participação na disputa. É tão pesado quanto o foi Dilma Rousseff na sua primeira campanha. Se o poste de 2010 tinha a alavanca do poder e do sucesso lulista, o ex-prefeito de São Paulo depende do prédio da carceragem de Curitiba.


Elio Gaspari: De: A.Carnegie@edu para: Milionários@eco

Daqui onde estou, desde 1919, fiquei chocado com o incêndio do Museu Nacional

Colegas,

Daqui onde estou, desde 1919, fiquei chocado com o incêndio do Museu Nacional. Chocou-me muito mais a reunião teatral montada em Brasília para pedir dinheiro aos plutocratas nacionais prometendo recuperar a instituição e outros monumentos do patrimônio histórico. Não abram suas bolsas. Digo isso porque eu, Andrew Carnegie, fui o homem mais rico do mundo na entrada do século XX e fui também o magnata que mais dinheiro distribuiu. Coisa como US$ 10 bilhões em dinheiro de hoje.

Conversei ontem com D. Pedro II, que morou toda sua vida no palácio que ardeu. Nós nos conhecemos em 1876, na exposição de Filadélfia. Pedro me contou que o Banco Mundial acenou com uma doação para o museu e as conversas não prosperaram. Graças a ele, conheci uma poderosa senhora, Eufrásia Teixeira Leite. Na casa dela vive um bonitão metido a inglês. Chama-se Joaquim Nabuco.

Eufrásia morreu em 1930 e deixou tudo o que tinha para os pobres de Vassouras (RJ). Era uma fortuna equivalente a duas toneladas de ouro. Numa conta grosseira, ela deu o equivalente à cerca da metade do que eu distribuí. As benfeitorias de Eufrásia viraram uma lembrança municipal, pois entregou o dinheiro a instituições beneméritas, semioficiais. Do meu cofre, quem cuida são os funcionários de fundações que sabem doar e, sobretudo, aplicá-lo.

Reunido com uma comitiva onde havia cinco banqueiros privados, o presidente Michel Temer falou em criar um fundo privado para financiar a recuperação do patrimônio cultural. Não faz sentido. Quem entende de fundo privado é a banca. O governo, como se viu, entende de ruína. (Se os bancos americanos cobrassem nos Estados Unidos os juros que vocês cobram, eu teria levado minhas siderúrgicas para o México.)

Eufrásia acha que em vez de fazer seu apelo teatral, o presidente deveria ter sentado com os diretores do Instituto Moreira Salles e do Itaú Cultural para saber como funcionam essas instituições à prova de fogo. Podendo aprender, o governo faz o que gosta: pediu.

Eu comecei do nada. Corrompi gente, mandei abrir fogo em grevistas. Na velhice, vivi angustiado porque, sem fazer nada, ganhava mais do que conseguia doar. Eufrásia achou que filantropia é tirar o dinheiro da bolsa e entregá-lo aos outros.

Do vosso humilde e atencioso admirador,

Andrew Carnegie

O risco de se eleger um ‘não’
O atentado contra a vida de Jair Bolsonaro cristaliza o risco de que a eleição de outubro venha a produzir um vencedor sem escolher um presidente. Num eventual segundo turno entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, ambos terão o voto de pessoas que pensam como eles, mas serão reforçados por eleitores que não votam de jeito nenhum num ou noutro.
Nas sete últimas eleições presidenciais já existia o voto antipetista, mas prevalecia, em graus variáveis, uma preferência pelos tucanos. Isso mudou. Muita gente poderá votar em Fernando Haddad só para não ver Bolsonaro no Planalto, ou votar no ex-capitão só para impedir a volta do PT ao poder. No meio, ficará o nada.
Preferência é uma coisa, exclusão é outra. Quando o voto de exclusão supera o de preferência consegue-se barrar aquilo que não se quer, mas não se elege um presidente.

A vítima
Com o atentado de quinta-feira a bem sucedida estratégia de vitimização de Lula virou pó.

Bispo e Oswald
Todos aqueles que entraram no processo de histeria que associou o atentado contra Jair Bolsonaro à filiação de Adélio Bispo ao PSOL entre 2007 e 2014 deveriam calibrar seus apocalipses. Em 1963 o presidente John Kennedy foi assassinado com um tiro na cabeça. No mesmo dia capturaram o atirador, o ex-fuzileiro naval Lee Oswald. Logo depois soube-se que ele emigrara para a União Soviética, onde viveu por três anos, casando-se com uma russa. Se a manipulação da histeria tivesse funcionado naqueles dias, o mundo teria acabado.

A voz de Palocci
Pelo cheiro da brilhantina, muita gente espera que o texto da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci venha a ser conhecido durante a campanha eleitoral.
Será golpe baixo.

PT congelado
A eficácia da estratégia de vitimização de Lula foi eterna enquanto durou. A partir de agora o comissariado tem três dificuldades.
A primeira é o cansaço que resultou dos recursos sucessivos, porém inúteis junto aos tribunais.
A segunda é o peso das falas de Fernando Haddad, uma versão petista da monotonia de Geraldo Alckmin.
A terceira será a entrada de Manuela D’Ávila do PCdoB na vice, estreitando a chapa.

A lição do SUS
Seja quem for o novo presidente, recebeu uma lição de saúde pública.
Jair Bolsonaro deve a vida à equipe que o atendeu na Santa Casa de Juiz de Fora (MG), onde foi atendido como um paciente do SUS, esse sistema de medicina pública historicamente sucateado.

Ótima notícia
As coisas boas também acontecem: está na Amazon a versão eletrônica do livro “Trilhos do desenvolvimento”, do professor americano William Summerhill. É um magistral estudo sobre a política de construção de ferrovias do Império e dos primeiros anos da República. Vira de cabeça para baixo tudo o que se escreveu e se ensina.
As concessões funcionaram e a economia foi impulsionada muito além do simples transporte de café.
A edição foi uma vitória da luz, graças ao empresário Guilherme Quintella, que cacifou a iniciativa. O primeiro artigo de Summerhill foi publicado em 1998 e o livro, com título de “Order without progress” (Ordem sem Progresso), saiu em 2003. Não haviam sido traduzidos.

O tiro de Temer
Michel Temer é frio como cobra, mas há momentos em que se move com a fúria de um orangotango, sempre em voz baixa. O tiro que ele deu na candidatura de Geraldo Alckmin pareceu sair do orangotango. A menos que a ideia tenha sido detonar a candidatura tucana de João Doria ao governo de São Paulo, favorecendo seu velho amigo Paulo Skaf, do MDB.

Palpite real
A encrenca em que uma parte da Cúria romana meteu o Papa Francisco poderá ter um saudável reflexo na Coroa inglesa.
Aos 92 anos a rainha Elizabeth II pode ter cogitado abdicar em favor de seu filho Charles, de 69. A ideia parecia boa depois que o imperador japonês Akihito anunciou que abdicaria em abril de 2019. A iniciativa foi recebida com naturalidade, e assumirá o príncipe Naruhito.

Do Vaticano saiu o outro lado da moeda. Como Francisco sucedeu ao Papa Bento XVI, que renunciou e vive na Cidade do Vaticano, abriu-se o precedente do pontífice que vai embora antes de morrer.

Resultado: os adversários de Francisco querem que ele também vá para casa.

No caso inglês, uma coisa é certa: Charles seria um rei impopular, com o filho William nos calcanhares.

 


Elio Gaspari: Só uma greve salva os museus

Existem centenas de instituições condenadas ou inúteis, que servem apenas para publicidade e empreguismo

Aqui vai uma sugestão para os milhares de servidores públicos que trabalham em museus federais, estaduais e municipais: a partir de hoje, organizem comissões e peçam aos seus diretores que lhes mostrem o alvará do Corpo de Bombeiros que autoriza o funcionamento da instituição. Não tem? Venceu? Tudo bem, declarem-se em greve e só voltem ao trabalho quando vier o alvará. O Museu Nacional havia sido inspecionado pelo Corpo de Bombeiros há dez anos. Diante do fogo, dos hidrantes não saía água.

É isso ou, infelizmente, todos os servidores serão cúmplices do próximo incêndio. O Museu Nacional estava vendido há mais de uma década. Pegou fogo no ano do 40º aniversário do incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mantido pela elite carioca. Em 1972, a ditadura desfilou os restos mortais de Dom Pedro I pelo país, até que os colocou numa cripta no Museu do Ipiranga, em São Paulo; 20 anos depois, ela era mictório de mendigos. A instituição está fechada porque o prédio ameaçava desabar, e a Universidade de São Paulo liberou apenas 3,2% da verba destinada à sua recuperação.

Quem viu as primeiras reações dos hierarcas da burocracia cultural diante da tragédia da Quinta da Boa Vista teve o sofrimento adicional de ser tratado como cretino. O incêndio foi um acidente previsível, mas ainda assim foi um acidente. A estupidificação oferecida pelos hierarcas foi empulhação deliberada. Foram muitos os que seguiram uma linha de argumentação parecida com a do ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, queixando-se da falta de atenção “do conjunto da sociedade” para defender a cultura nacional. Outro hierarca disse que “faz parte da cultura brasileira um certo desprestígio” pela memória nacional.

Como diria a Baronesa Thatcher, esse negócio de sociedade não existe. Existem homens, mulheres e famílias. A “sociedade” nada teve a ver com o desastre. Também não existe uma vaga “cultura brasileira”. Transferir a responsabilidade para a choldra que paga impostos é pura empulhação. Os responsáveis pela grandeza e a ruína do Museu Nacional foram seus diretores e os reitores da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Podiam ter tomado uma atitude: pedir demissão denunciando os responsáveis pelo estrangulamento das instituições. Foi isso que o médico Adib Jatene fez quando viu que negavam recursos para o Ministério da Saúde.

Nos últimos anos, o Rio de Janeiro inaugurou dois novos museus, o do Amanhã e o de Arte. Ambos foram festejados por servidores que sabiam o grau de degradação do Museu Nacional. Numa conta feita em 2003, no triângulo Rio-Niterói-Petrópolis existiam 108 museus. Roma tinha 104. Nova York e Washington, juntas, não somavam cem. Por quê? Porque quando se cria um museu, mesmo que ele não tenha acervo, nomeia-se um diretor. No século passado um ilustre romancista e acadêmico visitou o Museu Nacional de Belas Artes antes de assumir sua direção. Ao saber que não ganharia um carro oficial, desistiu do cargo.

Inaugurar museu dá prestígio e cria cargos. Conservá-los é outra história. O Brasil não tem dinheiro para sustentar milhares de museus, e centenas deles funcionam em horários que afugentam visitantes.

No caso do Museu Nacional, construiu-se uma ladainha, segundo a qual um patrocínio de R$ 21,6 milhões do BNDES poderia ter salvo o Museu Nacional. Lorota. Parte desse dinheiro, a ser ser liberado ao longo de anos, seria usado para um projeto de proteção contra incêndio. Projeto, nada a ver com obra.

 


Elio Gaspari: Gilmar Mendes expôs o tamanho do desastre

Ministro do supremo qualificou "prende e solta" do ex-presidente Lula de modo preciso

Poucas vezes um magistrado foi tão autocrítico e preciso como o ministro Gilmar Mendes quando disse o seguinte:

“Nós já produzimos esse desastre que aí está. Ou as pessoas não percebem que nós contribuímos com a vitimização do Lula? Estamos produzindo esse resultado que está aí”.

Sem o “prende-solta” de julho e o “pode-não-pode” da Justiça Eleitoral, dificilmente Lula estaria com pelo menos 39% das preferências nas pesquisas do Datafolha. Mais que isso: pode-se garantir que aumentou a sua capacidade de transferir eleitores para Fernando Haddad, tornando-o um provável candidato no segundo turno da eleição. Quem acha que um confronto Haddad x Bolsonaro ajuda a eleger um ou outro não quer um processo eleitoral, mas um daqueles espetáculos sanguinários que aconteciam no Coliseu de Roma.

O desastre está aí, mas Lula pode ser acusado de tudo, menos de ter sido o causador da barafunda criada pelo Judiciário. Sua vitimização entra agora na última fase, fabricando-se uma eleição presidencial influenciada por um ectoplasma político. Em outro tempo, Juscelino Kubitschek também foi transformado em fantasma. Era um ex-presidente cujo candidato foi derrotado pelo doidivanas Jânio Quadros, que tinha como símbolo eleitoral uma vassoura. Vale lembrar que o apartamento de JK ficava na Avenida Vieira Souto e nele cabiam vários “tríplexes do Guarujá”. Algo do mito de Juscelino deriva da cena do seu embarque para o exílio com um coronel de arma na mão e de sua figura sorridente entrando num quartel para depôr num inquérito policial-militar. Isso e mais a mobilização financeira do governo para impedir sua eleição na Academia Brasileira de Letras, onde sentava-se o general Aurélio de Lyra Tavares, o poeta Adelita e um dos três patetas da Junta Militar de 1969. (Numa carta ele escreveu “acessoramento” e “encorage”.)

A discussão em torno da presença de Lula na propaganda eleitoral é despicienda. Ele estará lá, em áudios e vídeos. Não como o chefe do PT dos escândalos, mas como vítima.

Sem comparar as sentenças que condenaram Lula com a campanha que se fez contra Getulio Vargas, imagine-se o que seria de sua memória em duas situações:
1) Matou-se sem deixar a carta-testamento.
2) Não se matou, deixou o Catete e foi para São Borja.

EM 1973, TIRARAM ULYSSES DO AR
A situação em que Lula está hoje, nada tem a ver com aquela em que foi colocado Ulysses Guimarães em 1973, quando lançou-se como anticandidato à Presidência. Hoje vive-se num estado de direito, e em 1973 vivia-se numa ditadura. Àquela época a eleição era indireta e estava perdida para o MDB. Hoje, os eleitores decidem. Se tudo isso fosse pouco, Ulysses estava no pleno uso de sua liberdade e Lula está preso, condenado por corrupção. As duas situações, contudo, têm uma ponto em comum: deseja-se calar alguém ou, pelo menos, limitar sua fala.

Em 1973 a Justiça negou ao MDB o acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito de propaganda. Argumentou-se que eleição indireta não comportava propaganda gratuita.

A anticandidatura de Ulysses serviu à oposição como um fator de mobilização, pois a aritmética garantia a vitória do general Ernesto Geisel. Garantia mas, como seguro morreu de velho, no dia da eleição o general Orlando Geisel, ministro do Exército e irmão do candidato do governo, colocou duas companhias de prontidão para fechar o Congresso caso alguém tentasse fazer alguma surpresa.

Geisel foi eleito e tomou posse em março. Cortar o acess6o de Ulysses ao horário gratuito até que foi fácil. A conta chegou na eleição parlamentar de novembro, quando o MDB elegeu 16 senadores em 22 estados e mudou o curso da política brasileira.

ELEIÇÃO É BUFÊ
De uma pessoa que viu 11 eleições presidenciais e está incomodada com o desencanto da disputa de outubro: “Eleição presidencial é bufê. Você tem de escolher entre os pratos que estão na mesa. Não pedir uma omelete.”

MADAME NATASHA
Madame Natasha quer votar em Geraldo Alckmin mas, sempre que decide ouvi-lo, pega no sono.
Depois de muito pensar, resolveu mandar algumas sugestões aos assessores do doutor:
1) Impeçam-no de falar por mais de 40 segundos.
2) Proíbam-no de citar mais de uma estatística em cada fala.
3) Proíbam-no de dizer que “vamos chegar lá” quando alguém lhe faz uma pergunta e ele começa a falar de Pindamonhangaba. Essa proibição é necessária porque ele não chega a lugar algum.

TRUMPISTÃO
Diante das novas trapalhadas de Donald Trump, vale a pena recordar o que disse a seu repeito Michael Bloomberg, o bilionário que governou por 11 anos a maior cidade dos Estados Unidos:
“Como nova-iorquino, eu reconheço um vigarista quando o vejo”.

Ao contrário de Trump, Bloomberg nasceu pobre e nunca quebrou. Sua fortuna está estimada em 50 bilhões de dólares e ele se comprometeu a doar a metade desse ervanário.<SW>

EXEMPLO
A Vinci, concessionária do aeroporto de Salvador, oferece serviço ilimitado e gratuito de conexão com a internet.

Faz tempo, a Infraero anunciou que a internet seria gratuita em 12 aeroportos. Ouviu outras vozes e voltou atrás.

VIGANÒ X FRANCISCO
Cada denúncia de pedofilia de sacerdotes que vier a aparecer será mais uma ferida no pontificado do Papa Francisco.
Não faz sentido que num só estado americano 300 padres tenham abusado de mil fiéis, enquanto em um país do tamanho do Brasil os casos conhecidos podem ser contados nos dedos das mãos.

(De 1839 a 1840 o Brasil foi governado pelo padre Diogo Feijó. Ele combatia o celibato dos sacerdotes.)

ANARQUIA
Dia 15 completam-se dois meses do dia em que o ministro Raul Jungmann anunciou que foram abertos 35 inquéritos em 25 estados para apurar a participação de empresários de transportes na greve dos caminhoneiros. Infelizmente, nada se sabe deles.

No dia 18 completa-se um mês da violência de Pacaraima, quando brasileiros queimaram as coisas de famílias venezuelanas, obrigando mais de mil refugiados a fugir de volta.
Existem alguns vídeos que permitem a identificação dos delinquentes e de um carro com alto-falantes, incitando-os. Investigação, nem pensar.

FUGA
Já funcionam no Brasil, com sucesso, empresas que oferecem a “Bolsa Vou-me Embora” para abonados do andar de cima. Portugal virou arroz de festa, e os Estados Unidos estão na concorrência.

A legislação americana exige um investimento de US$ 500 mil, com diversas condicionantes.

Numa conta de padaria, o pulo pode acabar custando algo como US$ 100 mil.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e convenceu-se de que o doutor Armínio Fraga teve razão quando disse que o Brasil “adora um atalho”.

O cretino chegou a essa conclusão ao perceber que muitos çábios do mercado torcem por Jair Bolsonaro acreditando que o economista Paulo Guedes é o dono do urso. Seguem esse atalho mesmo sabendo que o Partido Novo tem como candidato João Amoedo, um ex-vice-presidente do Unibanco.

 

 


Elio Gaspari: A falta de memória de Dirceu

As memórias de José Dirceu, que estão chegando às livrarias, pararam em 2006, depois de sua saída da Casa Civil de Lula e da cassação do seu mandato. É um depoimento banal, mais preocupado com a discussão das facções petistas do que com o governo que pretendeu comandar. Aos 72 anos, cumpriu a promessa de que só falaria do seu tempo de militante da ALN e do Molipo quando completasse 80 anos. Poderia ter detalhado seu momento de esplendor, como chefe da Casa Civil de Lula entre 2003 e 2005. Sua memória ficou burocrática, cansativa.

Dirceu anunciou que publicará o próximo volume no ano que vem. Tomara que elabore uma curta frase deixada quase a esmo: “Lula e o petismo são a mesma coisa e não o mesmo destino”.

Dirceu fala em nome do petismo que ajudou a levar Lula ao poder. Aqui e ali o ex-ministro conta ursadas de seu chefe, mas, quando ele se juntou ao companheiro, sabia que era um urso que comia os donos. Foi comido. Ao contrário de Antonio Palocci, seu rival no governo e companheiro de cárcere, não mordeu o urso. Deixou seu silêncio no ar.

O comissário arrependeu-se de poucas coisas, sempre pontuais. Às vésperas da eleição de outubro, um trecho de seu livro enuncia uma questão capaz de assombrar quem gostaria de votar em Lula ou no seu poste:

“Aqueles que no nosso campo aceitam discutir a partir da cruzada anticorrupção, mas exigem Lula como alternativa para o PT e a esquerda em 2018, são hipócritas e se rebaixam, ao usar as armas do inimigo para um ajuste de contas interno ‘histórico’ contra os que ‘conciliaram com a burguesia e sua ideologia’.”

É uma formulação confusa. Pode-se dizer que há uma cruzada, mas não se pode negar a corrupção. Dirceu açoita seus adversários dentro do partido mas, na essência, segue a linha geral de denunciar as denúncias. Ao tempo do escândalo do “mensalão”, o comissário sonhava com o povo na rua defendendo-o e ao governo. Agora, explica as manifestações contra Dilma e sua deposição como consequência da desmobilização da militância, entregando as avenidas ao conservadorismo.

Dirceu e Lula acreditavam que as ruas seriam tomadas pelos seus defensores. Enganaram-se. O urso percebeu o engano e hoje, blindado pela cadeia, espera uma vitória eleitoral, atropelando o que seria a “cruzada anticorrupção”.

O militante sonhador dos anos 60, organizador do PT e capitão do time no primeiro governo de Lula, continua capturado pela brilhante conclusão de sua biografia, escrita pelo repórter Otávio Cabral: “José Dirceu de Oliveira e Silva jamais chegou a lugar nenhum”.

Percebe-se isso quando ele se refere com malícia e crueldade a Fernando Gabeira, um dos sequestradores do embaixador americano em 1969. Graças a essa aventura, Dirceu foi libertado e viveu em Cuba. Gabeira deixou o PT, condenando o poder imperial de Dirceu e dele mereceu um semiepitáfio:

“Acabou sua carreira política de forma apagada, fugindo de supostas irregularidades praticadas em seu mandato. Anos mais tarde, engajar-se-ia entusiasticamente nas conspirações golpistas.”

Gabeira deixou a política, voltou ao jornalismo e rala com sucesso percorrendo o Brasil para mostrar a vida de seu povo. Dirceu foi condenado a 11 anos de prisão e está em liberdade por decisão judicial.

No século passado o livro “O que é isso, companheiro?”, com as memórias lúdicas de Gabeira, foi a apologia de um sonho. José Dirceu trouxe as memórias do pesadelo.


Elio Gaspari: No filme de Tancredo, uma aula para hoje

Vem aí uma aula de política. É o filme "O Paciente", de Sérgio Rezende. Conta a agonia e morte de Tancredo Neves, em 1985. Na véspera de sua posse, o presidente eleito foi internado às pressas para o que seria uma cirurgia banal, talvez de apendicite. Os médicos e os hierarcas de Brasília informaram que ele sairia do hospital em poucos dias, e os principais jornais do país noticiaram sua alta iminente em dez ocasiões. Tancredo entrou no Palácio do Planalto 36 dias depois, para o velório.

O filme conta uma história dramática de erros médicos, dissimulações e mentiras que hoje soam como uma narrativa concatenada. Para quem tem menos de 40 anos, o drama faz sentido e seu desfecho é minuciosamente exposto, mas, à época, tudo o que hoje se vê no filme era segredo.

"O Paciente" é uma aula. Mostra como se mentiu e como se manipulou a opinião pública. Horas depois da primeira cirurgia, oficialmente bem-sucedida, Tancredo teve uma parada respiratória e quase morreu, mas isso foi escondido. Daí em diante, tudo o que podia dar errado, errado deu.

Othon Bastos, o Corisco de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", é um Tancredo impecável, apesar dos muitos quilos a mais. Suas expressões ressuscitam o memorável mineiro. Paulo Betti como o "professor doutor" Henrique Pinotti é um primor na exposição de um intrujão megalomaníaco e exibicionista. O egocentrismo das equipes médicas não tem exageros e é coisa de dar medo a quem entra hoje num hospital.

Quem matou Tancredo? Todos os personagens do filme, inclusive ele, que escondia seus padecimentos. Suas dores abdominais haviam começado em janeiro e ele se iludia tomando antibióticos. Deixou que os médicos falassem em apendicite, mas sabia que extraíra o apêndice havia 50 anos. (Essa é a única imprecisão do filme, pois informa que o apêndice estava lá.)

A morte de Tancredo mutilou a base da redemocratização do país, pois colocou na Presidência o vice José Sarney, assombrado pela contestação de sua legitimidade. As pessoas foram dormir esperando que na manhã seguinte veriam Tancredo com a faixa e acordaram com Sarney vestindo-a. A posse do ex-presidente do partido da ditadura era constitucional, mas não fazia sentido. Tudo bem, porque Tancredo ficaria bom.

Passaram-se 33 anos e hoje não há médicos na crise, mas algumas coisas também não fazem sentido. Assim como fingia-se que Tancredo reassumiria, finge-se que Lula preso, com 39% das preferências na pesquisa do Datafolha, é apenas um detalhe. Lula foi condenado em duas instâncias e garante que nunca ouviu falar das roubalheiras petistas. Ainda assim, em vez de cair nas pesquisas, sobe.

Em 1985, fez-se o que a lei mandava. Em 2018, faz-se o que a lei manda, mas pode-se intuir o tamanho da próxima crise. Felizmente, agora pode-se escolher o próximo presidente.

UMA GRANDE VIAGEM À RÚSSIA DE TODOS OS TEMPOS
Está chegando às livrarias "A Lanterna Mágica de Molotov - Uma viagem pela história da Rússia", um dos melhores retratos da terra do czarismo, do comunismo e do putinismo. A autora, Rachel Polonsky, é professora da Universidade de Cambridge e chegou a Moscou com um projeto de pesquisa literária. O acaso levou-a a alugar um apartamento no edifício onde vivera a nata da elite soviética. Outro acaso levou-a a encontrar um vizinho banqueiro que ocupava o apartamento de Molotov, o ministro das Relações Exteriores de Stálin. Mais um, e ela viu que a família do hierarca deixara por lá muitos livros e objetos. O banqueiro franqueou-lhe o tesouro. Molotov tinha uma volume de poemas de Anna Akhmatova ("a freira prostituta", segundo Stálin), de Marina Tsvetáieva (matou-se na Sibéria) e de Osip Mandelstam (morto a caminho do Gulag, chamava Molotov de "meia pessoa").

A viagem de Polonsky pela Rússia foi de Moscou ao Ártico, até Vladivostok, no mar do Japão. "A Lanterna de Molotov" não tem cronologia e seu roteiro é irrelevante. É o livro de uma autora erudita, que busca significados, misturando lugares e poetas, "uma barafunda do passado, causada por livros e lugares".

É na barafunda que está a mágica do livro, que mostra sem querer ensinar. A rua onde viviam os hierarcas era fechada por milicianos e hoje é povoada por agentes de empresas de segurança privada, com coletes a prova de balas. Ela vai da casa de banho de uma protegida de Catarina, a Grande, às casas de campo da elite cultural soviética, onde viveu um charlatão que prometia plantar trigo para colher cevada. Com a ajuda de Dostoievsky, Polonsky visitou em Novgorod a semente da Rússia de outrora, recuperada por Vladimir Putin.

O apartamento de Molotov foi vendido a um produtor de TV que já comprara outro, o último lar de Leon Trótski em Moscou. Sua mulher tinha uma galeria de fotos. Uma delas, com Miuccia Prada, a dos sapatos.

FARRA FINAL
Na sua farra de fim de governo, nomeando diretores de agências reguladoras com mandatos de vários anos, o governo se superou. Foi reanimado o Conselho de Saúde Suplementar, inativo desde 2000, quando suas atribuições passaram para a Agência Nacional de Saúde. Até aí, mais uma boquinha, mas a medida incluiu um jabuti, criando uma câmara técnica "destinada à análise técnica de resoluções pretéritas". Rever decisões tomadas há 18 anos seria coisa inútil, a menos que elas ricocheteiem, mexendo em normas criadas pela ANS.

Seria mais fácil fechar a ANS, entregando suas funções às operadoras amigas.

MARIN E SEU GATO
A sorte, essa trapaceira, fez com que num mesmo dia a Mesa da Câmara cassasse o mandato de Paulo Maluf e a Justiça americana condenasse o detento José Maria Marin a quatro anos de prisão.

Maluf foi governador de São Paulo de 1979 a 1982, quando deixou o cargo para disputar a eleição presidencial indireta. (Ele foi derrotado por Tancredo Neves.) Marin, seu vice, governou o Estado por quase um ano.

Estranho personagem o doutor Marin. Vivia num apartamento de abonados e um de seus vizinhos, o empresário Paulo Cunha, percebeu que sua conta de luz estava absurdamente alta. Foi atrás e descobriu que Marin tinha um "gato" roubando energia de sua rede. Até aí, golpe velho, mas a fé de Marin na própria impunidade era tamanha que, quando o repórter Juca Kfouri contou o caso, ele processou-o. O juiz que derrubou a queixa reconheceu que o cartola teria todos os motivos para processá-lo, salvo pelo fato de que a informação era verdadeira.

Maluf está em prisão domiciliar no seu palacete paulista e Marin rala na carceragem de Nova York.

ETIQUETA
Michel Temer é um homem formal. Dá a impressão de que dorme de paletó e gravata. Por isso, bem que podia pedir aos ministros Moreira Franco e Raul Jungmann para calçarem meias quando forem a uma reunião pública no Jaburu, mesmo que ela aconteça num domingo.


Elio Gaspari: A dissimulação do general Mourão

Vice de Bolsonaro disse que sua teoria da maldição das raças deriva do seu orgulho pela miscigenação. Falso

O general Hamilton Mourão expôs em Caxias do Sul sua teoria da formação da identidade nacional a partir do gosto dos portugueses pelas sinecuras, da indolência do índio e da malandragem dos africanos. Pegou mal e no dia seguinte ele se explicou:

"Não sou racista, muito pelo contrário. Tenho orgulho da nossa raça brasileira. O que eu fiz foi nada mais nada menos que mostrar que nós, brasileiros, somos uma amálgama de três raças, a junção do branco europeu com o indígena que habitava as Américas e os negros africanos que foram trazidos para cá. (...) Somos a junção desses três povos, com as coisas boas e ruins que eles têm, sem colocar estigma em nenhum deles."

Teria sido mal-interpretado: "O que acontece é que as pessoas pinçam determinadas frases e querem retirar do contexto em que foram colocadas."

Coisa desses malditos jornalistas.

Mourão não é a única pessoa que atribui a uma mítica herança do passado as desgraças do presente. Cada um tem direito de achar o que quiser, mas a explicação do general, atribuindo o mal-estar a uma pinçagem foi um exercício pueril de dissimulação.

Em dezembro do ano passado, durante uma palestra, o general Mourão expôs a sua teoria das raças com mais precisão. O vídeo está na rede. Foi uma fala articulada, o general estava fardado e seguiu um roteiro ilustrado por transparências. No 43º minuto, ao concluir, anunciou:

"E aqui, minha gente, existe a maior de todas as reformas, que é a reforma moral, em cima dos valores da sociedade, a reforma cultural. Nós carregamos dentro de cada um, uma herança cultural tripla. Nós temos a herança cultural ibérica, que é a do privilégio e da sinecura. Todo mundo quer se dar bem. Temos a herança cultural indígena, que é a da indolência. É o índio deitado na rede e a mulher cavando lá, carregando filho. E temos a herança cultural africana que é a da magia. Vai dar certo, vai dar tudo certo. A malemolência, o samba. Nós somos melhores. A embaixadinha. Nós temos que romper esse ciclo. Essa é a realidade."

A realidade é que o general não se orgulha de coisa alguma. Pelo contrário, seriam vícios que exigem uma "reforma moral".

Gilberto Freyre orgulhava-se do amálgama da formação do brasileiro, já o conde Gobineau, o embaixador francês no Brasil durante o Segundo Império, previa que a miscigenação provocaria o colapso da sociedade brasileira ainda na primeira metade do século 20. Mourão está mais para Gobineau do que para Gilberto Freyre.

Entre os defeitos que Mourão atribuiu a portugueses, índios e negros, ele não incluiu a dissimulação. Certamente há portugueses, índios e negros dissimulados, mas isso não caracteriza os conjuntos. O dissimulador é apenas um dissimulador, quer seja português, índio, negro, chinês ou ucraniano.

ALCKMIN E CIRO SE DERAM BEM NA BAND
Quem viu as entrevistas de Jair Bolsonaro no Roda Viva e na GloboNews achou que no debate da Band ele teria uma oportunidade preciosa. Sem tempo no horário gratuito de televisão, Bolsonaro estaria em igualdade de condições com os rivais. Perdeu-a, não pelo que disse, mas porque disse o mesmo de sempre.

Quando foi colocada a questão da segurança pública, Geraldo Alckmin expôs as estatísticas do seu governo em São Paulo (a queda dos homicídios anuais de 13 mil para 3.000), Bolsonaro sacou a conveniência de armar os cidadãos e condenou as leis que protegem os direitos humanos.

Pela primeira vez Bolsonaro esteve diante de interlocutores que não queriam alvejá-lo com uma bala de prata. Com sua monotonia, Alckmin, amarrado às limitações do tempo, acabou sendo favorecido. Afinal, em um minuto não cabem dez estatísticas embutidas em platitudes.

Diante de uma pergunta sobre educação, Bolsonaro louvou os êxitos das escolas militarizadas. Ciro Gomes respondeu com a eficácia do sistema educacional do seu estado. A cordialidade de Ciro levou Bolsonaro a uma tréplica gentil, mas tudo o que ele tinha a oferecer era a construção de uma megaescola militar em São Paulo, no Campo de Marte. E o pessoal do seu Vale do Ribeira, que fica a 358 km, vai para onde?

Ciro e Alckmin foram a um debate, Bolsonaro foi a mais uma entrevista.

TUNGA
Um brasileiro que sabe fazer contas jura que queria trocar US$ 100 no guichê do banco Safra da área de desembarque do aeroporto de Guarulhos e disseram-lhe que receberia R$ 250.

O dólar estava cotado a R$ 3,70.

A turma do Safra informa que nada tem a declarar. Talvez o Banco Central tenha.

Eremildo, o idiota, aceita ficar ao lado do guichê do Safra oferecendo R$ 3 por cada dólar, mas se fizer isso, vai preso.

CHAPA ESTREITA
Lula estreitou o alcance da chapa do PT ao colocar Manuela D'Ávila, do Partido Comunista do Brasil, na chapa encabeçada por Fernando Haddad.

Ele sabe que prevaleceu em duas eleições quando ampliou-a, colocando na sua vice o empresário José Alencar.

URUCUBACA
Numa malvadeza do calendário, o ministro José Antonio Dias Toffoli foi eleito para a presidência do Supremo Tribunal Federal no mesmo dia em que o pretório excelso decidiu por 7 x 4 pedir ao Congresso umaumento de 16,38%. Cada eminente ministro pretende receber R$ 39,3 mil mensais.
Toffoli votou a favor do mimo e disse o seguinte:

"Não se está encaminhando para o Congresso um acréscimo ao orçamento do Supremo. Está se encaminhando uma previsão para uma recomposição remuneratória parcial de 2009 a 2014. Não se está tirando de saúde, de educação. Está-se tirando das nossas despesas correntes, dos nossos custeios."

De duas uma, ou Toffoli não sabe que o aumento dos ministros do Supremo desencadeia um efeito cascata que pode custar entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões à Viúva, ou sabe e acha que a choldra é boba.

Tomara que ele acredite na segunda hipótese, pois se o novo presidente do Supremo não sabe como funciona o teto dos salários dos servidores, sua presença na cadeira é uma ameaça à ordem pública.

MADAME NATASHA
Madame Natasha criou uma operadora de plano de saúde vocabular para atender incorrigíveis malbaratadores do idioma. Seus primeiros clientes serão a Agência Nacional de Saúde e as empresas que lidam com ela.

A ANS chama de "expostos" os "beneficiários cujo risco está efetivamente coberto pelo plano".
Chamar os clientes das operadoras de "beneficiários" já é uma impropriedade. Eles são fregueses e, muitas vezes, vítimas. Chamá-los de "expostos" é um insulto. Durante o período colonial, "exposto" era o recém-nascido colocado na roda dos enjeitados, para abandoná-lo ao cuidado de instituições de caridade.

Em alguns casos, os "expostos" eram bebês que as mães não conseguiriam criar. Em outros, crianças cuja maternidade as mães queriam esconder. Esse foi o caso do futuro padre Diogo Feijó, que governou o Brasil de 1835 a 1837. Ele era filho de uma jovem solteira da poderosa família dos Camargo.


Elio Gaspari: Fux matou no peito e fez gol contra

O ministro Luiz Fux, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tinha diante de si um pedido para declarar a inelegibilidade de Lula. A petição era processualmente imprópria e ele rejeitou-a. Fez o mesmo que a ministra Rosa Weber há algumas semanas. A notícia foi divulgada pelo UOL. Fux deu-se conta de que rejeitando o pedido apenas por impróprio, poderia dar a impressão de que admitiria, em tese, a elegibilidade de Lula.

Deve-se ao repórter Reynaldo Turollo Jr. a narrativa do que aconteceu em seguida, nas palavras de Fux:

“Depois que saiu essa notícia, eu fui verificar se a decisão tinha sido publicada [no Diário da Justiça]. Então, peguei a decisão, para não deixar dúvida, e fiz questão de colocar nela (...) aquilo que tenho defendido publicamente, que é a inelegibilidade de candidatos que já incidiram em uma condenação em segunda instância”.

Fux deixará o TSE no próximo dia 14 e decidiu acrescentar um parágrafo ao despacho informando que vislumbrava a “inelegibilidade chapada” de Lula. Se o pedido tinha um vício processual, a questão estava resolvida, não havia porque acrescentar “aquilo que tenho defendido publicamente”, muito menos usando o termo “chapada”.

Lula sabe que será declarado inelegível, mas isso só poderá acontecer quando ele estiver na condição legal de candidato. Ademais, “chapado” não quer dizer nada.

Lula é candidato a vítima para eleger o “Poste”. Quanto mais o vitimizarem, maior será a sua capacidade de transferir simpatias e preferências. A barafunda provocada pelo drible do desembargador Rogério Favreto, abrindo uma temporada de bate-cabeças no Judiciário, premiou-o com as trapalhadas dos que não querem vê-lo como candidato ou mesmo em liberdade.

O complemento de Fux ao despacho foi um mimo para Lula. Primeiro, porque não é adequado que o presidente de um tribunal tenha “defendido publicamente” uma posição relacionada a um julgamento que ainda não aconteceu. Mesmo que o seja, foi despicienda a iniciativa de repeti-la num despacho que tratava de um pedido processualmente viciado.

Até a balbúrdia “prende-solta” dos desembargadores e do juiz Moro, podia-se achar que Lula era um apenado fingindo que era candidato. Depois dela, tornou-se uma vítima. Fux, como Moro, matou no peito e chutou contra o próprio gol.


Elio Gaspari: A diretoria da ANS deve pedir o boné

Desmoralizada pela tunga que tentou impor à vítimas dos planos de saúde, ela deve ir embora, mas não já

Os diretores da Agência Nacional de Saúde poderiam salvar suas biografias indo para casa. Basta que anunciem sua disposição de deixar os cargos no primeiro dia de mandato do novo presidente. Não devem fazê-lo agora porque seriam substituídos por farinha do mesmo saco. Na sua composição oficial, o presidente da ANS foi nomeado graças aos bons ofícios do senador Romero Jucá. Seu colega Eunício Oliveira nomeou três e Ciro Nogueira ficou com um.

Em junho passado, a ANS baixou uma norma que entraria em vigor em dezembro, aumentando em até 40% o valor da coparticipação de 24 milhões de vítimas no custeio de procedimentos médicos. Os diretores que aprovaram a medida e depois a revogaram devem ir embora antes do fim de seus mandatos porque expuseram o mafuá que orienta suas decisões.

A medida foi combatida, mas até aí seria o jogo jogado. Semanas depois, a presidente do Supremo Tribunal Federal bloqueou-a. Defendendo-se, Rodrigo Aguiar, um dos diretores da Agência, disse: “A ANS foi criada para proteger o sistema de saúde suplementar. Obviamente, na nossa regulação, a gente considera a vulnerabilidade do consumidor, mas a gente não é um órgão de defesa do consumidor.”

Em tese, “a gente” poderia até ter razão, mas um estudo do Ministério da Fazenda acertou na mosca quando viu a “possibilidade de formação de conluio entre as firmas para influenciar o resultado” e condenou a “dificuldade de acesso a informações de custos resultantes da competição dos agentes”. Em apenas 24 palavras, matou a charada.

Os custos hospitalares, viga mestra dos pedidos de reajuste das operadoras, são hoje uma grande caixa-preta. Felizmente, assustou grandes corporações que oferecem planos de saúde aos seus empregados, e disso resultou o surgimento de empresas que fiscalizam as contas hospitalares. A maior delas, infelizmente, mantém seus dados sob sigilo para o público. Mesmo assim, a repórter Cristiane Segatto pescou casos exemplares: em 18% de casos de diagnósticos de sinusite, coisa que pode ser resolvida com uma radiografia (R$ 33, na média), fizeram-se tomografias (R$ 240). Em 30 mil contas emitidas entre 2013 e 2017, acharam-se cobranças pelo uso de um equipamento hospitalar durante um período superior ao da internação do paciente. Valor do truque: R$ 24 milhões. Em 2015 alguns hospitais fizeram 100% de suas 364 cirurgias de quadril usando um material que encarecia em 64% o custo do procedimento. O uso do material seria razoável em 10% dos casos.

As operadoras acabam mal faladas porque vivem numa cultura de preguiça, sem discutir publicamente os custos hospitalares. Basta lembrar que há dezenas de hospitais onde os pedidos de ressonâncias magnéticas superam a taxa com que trabalha o Hospital Sírio-Libanês.

Os diretores da ANS devem ir para casa porque baixaram a norma e recuaram. Se a norma era sadia, como disseram por mais de um mês, não deveria ter sido revogada. Se o foi, não deveria ter sido baixada, muito menos defendida com argumentos de segunda classe.

Depois de ter dito que “a gente não é um órgão de defesa do consumidor”, o doutor Rodrigo Aguiar comandou o recuo reconhecendo que “a resolução causou grande apreensão na sociedade, que não a recepcionou da forma positiva.” Disse a coisa e seu contrário.

Engana-se quem acredita que o jogo terminou. A ANS informou que fará uma nova rodada de audiências públicas para discutir a questão. As operadoras e suas guildas não trabalham com essa mercadoria. Elas gostam do escurinho de Brasília. Expor os custos hospitalares, nem pensar.

 


Elio Gaspari: Geraldo Alckmin, o besouro voador

Ele parece ter saído de uma galeria da República Velha, mas poderá ir para o segundo turno, contra o PT

Besouro não deveria voar, mas voa. Geraldo Alckmin também. Aquele ex-deputado eleito vice-governador em 1994 na chapa de Mário Covas era um tucano inexpressivo. Ademais, Covas era um touro. Tão decorativo era o cargo de vice-governador que Alckmin decidiu se licenciar e disputou a prefeitura de São Paulo. Perdeu, mas o touro teve um câncer, e ele assumiu. Tornou-se o cidadão que por mais tempo governou São Paulo desde os tempos coloniais, mas evita tocar nesse assunto. Disputou a Presidência da República em 2006 e conseguiu ter menos votos no segundo turno do que no primeiro.

Geraldo Alckmin é candidato de novo. Sua posição nas pesquisas é pífia. Já sua capacidade de agregação no mundo político-partidário marcha para a aliança com uma poderosa coligação de caciques em cuja ponta final está Michel Temer.

É possível que Alckmin vá ao segundo turno, beneficiado por previsíveis autocombustões de Ciro Gomes e Jair Bolsonaro. Uma disputa final entre ele e o candidato de Lula espanta a banca que passou os últimos meses achando que a campanha eleitoral aconteceria num cenário de debates parecido com o dos seminários de universidades americanas. O susto da banca não vem de eventuais defeitos de Alckmin, mas da possibilidade de vitória do candidato de Lula, o temível “Poste”.

Geraldo Alckmin dispõe de um razoável patrimônio administrativo. Basta contrapor as administrações tucanas de São Paulo desde 2001, quando ele se sentou na cadeira de governador, com as do Rio de Janeiro. Naquele tempo estava lá o governador Anthony Garotinho, sucedido por um ano pela petista Benedita da Silva, e em seguida por Rosinha Garotinho (mulher de Anthony), Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão. De um lado, cinco pragas, do outro, o picolé de chuchu tentando ser sorvete italiano.

Pelo estilo pessoal, Alckmin parece-se com um personagem da galeria de governadores da República Velha que adornam paredes do Palácio dos Bandeirantes. Pelo estilo político, também. Estacionado nas pesquisas, tornou-se uma potência televisiva costurando alianças por cima sem enunciar uma só ideia.

Num cenário de sonho ele teria ao seu lado as multidões que foram para a rua pedindo a deposição de Dilma Rousseff. Já no cenário do pesadelo ele encarna a maioria político-partidária que colocou Temer no Planalto. Trocou-se uma presidente impopular pelo campeão de impopularidade.

O andar de cima já flertou com a candidatura do apresentador Luciano Huck, e sua banda golpista sonhou com a alternativa apocalíptica de Jair Bolsonaro. Restaram-lhe Alckmin e o medo do “Poste”.

Lula na carceragem de Curitiba vem se transformando num Getúlio Vargas recluso em sua fazenda de São Borja. Consegue isso muito mais pela soberba e inépcia de seus adversários do que por suas qualidades. Noutra comparação, Lula encarna no Brasil o fantasma argentino de Juan Perón. Por mais de duas décadas, los hermanos cantaram: “Se siente, se siente, Perón está presente”.

Com o “centrão” aninhado na candidatura de Alckmin, resta-lhe a necessidade de fazer uma campanha capaz de ser ouvida no andar de baixo. Até agora, nada.


Elio Gaspari: O PT e Ciro no golpe do plebiscito

Plebiscito logo após a eleição é golpe demagógico. Ciro Gomes e Rui Falcão, ex-presidente do PT, avisaram que em suas plataformas está a convocação de um plebiscito ou de um referendo para ratificar suas propostas caso vençam as eleições de outubro.

Ciro defendeu a convocação desse mecanismo para decidir o destino de um projeto de reforma da Previdência. Dias depois, Falcão falou em “reverter as reformas desastradas do Temer por plebiscito ou referendo”. (Num plebiscito os cidadãos escolhem uma entre várias alternativas. Num referendo, aprova-se ou rejeita-se uma proposta.)

Quando deputado, o petista José Dirceu apresentou um projeto propondo que os acordos para o pagamento da dívida externa fossem submetidos a um referendo popular. Diante da perspectiva de poder, o comissariado fez a “Carta aos Brasileiros” e mudou de assunto. Desde 2001 Ciro Gomes defende a realização de plebiscitos, inclusive para decidir a questão previdenciária. Ele chamava essa girafa de “terceiro turno”.

A ideia de uma consulta popular direta logo depois de uma eleição presidencial é um golpe demagógico. Seu objetivo é o emparedamento do Congresso. Esse truque fez o gosto de Hugo Chávez na Venezuela e deu no que deu. No Brasil de 2018 o pescoço da girafa cresce quando se vê que os candidatos estão costurando alianças com partidos devastados pela Lava-Jato.

Trata-se de um jogo de “perde-perde” para o regime democrático, pois ao seu final haverá um presidente imperial esmagando um Parlamento cuja “caciquia” Ciro Gomes cortejou em busca de tempo de televisão. Uma pessoa disposta a votar em Ciro pode achar a ideia boa. E se o poste de Lula ganhar a eleição?

Se um candidato tem o que oferecer, poderá fazê-lo durante a campanha que começa daqui a pouco. Se der, deu. Se não der, não deu.

As vivandeiras querem Bolsonaro
Um pedaço do andar de cima que desfila na tropa de Jair Bolsonaro não quer escolher um presidente da República. Quer um golpe parecido com o de 1964, aquele que colocou cinco generais na Presidência da República. Em 1984, quando a ditadura agonizava, quase todas as vivandeiras que aplaudiram as extravagâncias do poder militar aderiram à campanha de Tancredo Neves e varreram para os quartéis o entulho do regime.

A plateia que ouviu Bolsonaro na Confederação Nacional da Indústria durante uma hora viu que estava diante de um candidato compreensivelmente nervoso e incompreensivelmente desconexo. Vago ao expor sua plataforma econômica, o candidato citou o evangelista João — “conhecereis a verdade e ela vos guiará” — e, em seguida, guiou a audiência para a questão ambiental de Roraima. Adiante, informou: “Estamos entregando a mina de nióbio ao chinês.” Referia-se à mina da Anglo American de Catalão (GO). (Em fevereiro, em Hamamatsu, Bolsonaro prometeu trabalhar em parceria com japoneses para a exploração do nióbio brasileiro.)

Reforma trabalhista? “É remendo novo em calça velha”. Não se pode saber o que isso significa, mas a plateia não reagiu.

Num breve momento o candidato deu uma pista. Mencionando que ele temeu um eventual crescimento da esquerda, disse: “Aí acabou qualquer esperança de mudarmos o Brasil pelas vias democráticas, que tem que ser.”

Desde 1985 o Brasil está numa via democrática e Bolsonaro, com seus sete mandatos, é uma prova disso. O candidato de hoje não repete o deputado que há dez anos, diante de uma manifestação hostil, disse que o “grande erro” da ditadura “foi torturar e não matar”. O Brasil deve ao marechal Castelo Branco a exposição das “vivandeiras alvoroçadas” que, desde 1930, rondam quartéis. Elas ainda estão por aí.