Elio Gaspari: Moro no governo dos ‘humanos direitos’

Sergio Moro lustrou a biografia de Jair Bolsonaro e de seu futuro governo ao aceitar o superministério da Justiça. Foi um tiro na mosca, pois seu trabalho à frente da Lava-Jato tornou-se um marco na História da política nacional, faxinando a corrupção do andar de cima.

Ao se sentar na cadeira, será apresentado a outro tipo de corrupção sistêmica, aquela que ofende os direitos dos cidadãos. Ele entrará num governo em que o futuro ministro da Defesa, general da reserva Augusto Heleno, disse que “direitos humanos são basicamente para humanos direitos”. Desfolhando as mazelas da criminalidade nacional, acrescentou: “É um absurdo tratar isso como uma situação normal. É situação de exceção que merece tratamento de exceção”.

Quais tratamentos de exceção Moro sancionará, ninguém sabe.

O futuro governador do Rio de Janeiro, oficial da reserva da Marinha, singra um discurso apocalíptico e anuncia que “não vai faltar lugar para colocar bandido, cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto-mar.” Pura demagogia, e Witzel conhece a história dessas cadeias flutuantes. Elas se chamavam “presigangas” e eram usadas na Colônia e no Império. A última “presiganga” de que se tem notícia funcionou no navio Raul Soares, onde puseram presos políticos em 1964.

Os discursos repressivos de hoje têm amplo apoio popular, o que os torna mais perigosos, pois quando ficar demonstrada a vacuidade do palavrório, os demagogos mudarão de assunto.

Sergio Moro diz que a sua prioridade será o combate à corrupção e ao crime organizado. Por falta de experiência na área criminal do andar de baixo, descobrirá isso quando cair sobre sua mesa o caso de alguma roubalheira que usava um posto de gasolina da Baixada Fluminense para lavar dinheiro da corrupção e do tráfico. Puxando os fios, como ele fez em Curitiba, será fácil descobrir poderes que se instalaram no século passado, sobreviveram à ditadura, aninhados nos desvãos dos DOI e ressurgiram com a redemocratização, sambando na avenida e negociando nos palácios.

Hoje, como sempre, os ferrabrás ganham desenvoltura quando sentem-se amparados pela opinião pública. Alguns ministros da Justiça, como Seabra Fagundes e Milton Campos, sentiram o cheiro de queimado e foram-se embora. Outros, como o professor Luís Antônio da Gama e Silva, redator do AI-5, inebriaram-se. Cada um escolhe seu caminho, e Moro escolherá o seu.

Pode-lhe ser útil a lembrança do que ocorreu com Carlos Medeiros Silva quando se sentou naquela cadeira, em 1966. Um coronel que servia no gabinete apresentou-se:

— Ministro, vim conhecê-lo. Sou o representante da linha dura aqui no ministério.

Medeiros era um mineiro miúdo e discreto. Cioso da autoridade, sobretudo da sua, respondeu:

— Coronel, agradeço muito seus relevantes serviços, mas o senhor está dispensado. Agora, o representante da linha dura aqui sou eu.

O ‘Posto Ipiranga’ contatou Moro
“Isso já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, disse o general da reserva Hamilton Mourão na última quarta-feira.

O vice-presidente eleito referia-se à primeira sondagem da equipe do candidato Jair Bolsonaro para atrair o juiz Sergio Moro. O intermediário, segundo o general, foi Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do capitão.

Segundo Moro, “isso não tem uma semana”. Portanto, teria acontecido depois do dia 27 de outubro. Mourão falou em “semanas”. Quantas?

Moro e Guedes prestariam um grande serviço à moralidade pública se esclarecessem a data precisa desse contato, até porque o próprio presidente eleito mostrou-se confuso ao tratar do episódio.

O esclarecimento seria desnecessário para qualquer outra pessoa, mas Moro interferiu no processo eleitoral no dia 1º de outubro, quando liberou um trecho da colaboração do ex-ministro petista Antonio Palocci. Foram 11 páginas de parolagem que ganharam a previsível repercussão, pois faltavam seis dias para o primeiro turno.

O “contato” teria ocorrido “durante a campanha”, o que é esquisito, mas seria jogo limpo. Se ele aconteceu antes da liberação do depoimento de Palocci, teriam sujado o jogo, e a conduta de Moro deveria ser analisada pelo Ministério Público e pelo Conselho Nacional de Justiça.

A ação do Judiciário está contaminada pela onipotência. Felizmente o Supremo Tribunal Federal derrubou todos os atos relacionados com o arrastão realizado em 17 universidades de nove estados nas últimas semanas. Todas as ações foram determinadas por juízes.

No início de outubro completou-se um ano do suicídio de Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina mandado para a cadeia por uma magistrada e proibido de entrar na instituição.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, pretendia votar em Bolsonaro, mas digitou 13. Resolveu fazer uma assinatura da “Folha de S. Paulo”, para entender como o presidente eleito acabará com o jornal de Octávio Frias de Oliveira e de seus filhos.

Lendo o que disseram Jair Bolsonaro e seus oráculos, o governo pretende cortar a publicidade oficial de jornais e emissoras que mentem. Por cretino, Eremildo teme que acabem aqueles que recebem publicidade oficial para mentir.

Mercado e ‘mercado’
Paul Volcker acaba de publicar nos Estados Unidos um livro de memórias. Nele conta a sua épica batalha para derrubar a inflação de dois dígitos no final do século passado. É uma ode ao serviço público, escrita por um funcionário que, aos 91 anos, ainda usa o roupão que comprou em 1953.

Com 2,01 metros, Volcker foi para a direção do Fed em 1979. Ganhava US$ 110 mil anuais e mudou-se para Washington com US$ 57.500. Alugou uma quitinete de estudante e, uma vez por semana, levava para a casa da filha suas roupas sujas. A mulher do homem mais poderoso da finança mundial, diabética e sofrendo de artrite reumática, ficou em Nova York, teve que arrumar um emprego e alugou um dos quartos do apartamento do casal.

Para a turma do papelório:

Volcker refere-se dezenas de vezes ao mercado. Num trecho, lidando com o que seria a credibilidade do presidente do Fed na praça, escreveu “mercado”, entre aspas. Quem vive no Brasil sabe como são diferentes o mercado e o “mercado”.

Para quem está de olho em um cargo na ekipekonômica de Bolsonaro:

Um dia Volcker foi chamado à Casa Branca e levado para a biblioteca (onde não haveria grampo, acredita). Lá, diante de um silencioso presidente Ronald Reagan, o chefe da Casa Civil, James Baker, disse-lhe: “O presidente ordena que você não suba os juros antes da eleição”.

Volcker conta: “O que fazer? O que dizer? Fui-me embora, sem abrir a boca.”

Reagan já morreu, mas o chefe da Casa Civil, Baker, que está vivo, contestou apenas o fraseado e a palavra “ordena”. De qualquer forma, os juros ficaram onde estavam.


Elio Gaspari: Os recuos de Bolsonaro foram um aviso

O candidato acreditava que óleo de pirarucu curava reumatismo ou queria que os outros acreditassem?

Jair Bolsonaro disse que fundiria os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Agora diz que pode mudar de ideia. Juntar a Fazenda com o da Indústria? Pensou melhor e vai desistir. Abandonar o acordo climático de Paris? Ameaçou, mas vai ficar. Encrencar com a China? Nem pensar. Formar uma base parlamentar baseada em princípios programáticos? Tudo bem, mas está catando ministros na cesta onde o eleitorado jogou candidatos do DEM.

Bolsonaro encantou o mercado ao reconhecer que não entende de economia e por isso faria do doutor Paulo Guedes o seu "Posto Ipiranga". Como ele nunca produziu um prego, os papeleiros passaram a cultivar a ideia de que Guedes também precisaria de seus "Postos Ipiranga". De posto em posto, quem quiser comprar um prego acabará procurando uma velha e boa loja de ferragens, onde os pregos nacionais custam mais caro que os chineses.

A sabedoria convencional ensina que promessa de candidato é uma coisa, realidade de governante é outra. Mesmo assim, Bolsonaro ficou fora da curva. Quando ele falou numa reconstrução da base parlamentar a partir de princípios, sabia que estava vendendo óleo de pirarucu como cura de reumatismo.

No caso das fusões de ministérios, do vale-tudo ambiental e das relações com a China, exercitava o próprio primarismo. Ele pode querer agradar ruralistas interessados na expansão da área de cultivo da soja no Cerrado, mas precisa combinar com as grandes empresas internacionais que comercializam o grão e precisam defender suas marcas.

Matar gente na periferia das grandes cidades causa constrangimentos pelo mundo afora, mas esse sentimento é difuso. Agredir o meio ambiente compromete a reputação dessas grandes empresas.

Não se pode dizer que Bolsonaro recuou. Fernando Haddad recuou na sua ideia de forçar uma Assembleia Constituinte. Já sua autocrítica em relação às roubalheiras petistas é apenas um truque. Só se recua de uma posição onde se esteve, e Bolsonaro nunca esteve de fato nas posições que defendia há meses, ou há anos, quando defendia o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso. Eram truques, como o de Donald Trump garantindo que Barack Obama tinha nascido no Quênia.


Elio Gaspari: ‘Não quero ter parte nisso’

Na noite de domingo o Brasil terá escolhido um novo presidente da República. O resultado virá da vontade dos eleitores e, seja qual for o voto que se tenha dado, cada um deles terá parte no que vier a acontecer. Milhões de pessoas que votaram em Dilma Rousseff ou em Aécio Neves tiveram motivos para se arrepender mas, como hoje, era um ou outro. O arrependimento acompanhou também os eleitores de Fernando Collor em 1989 e de Jânio Quadros em 1960. Nenhum deles elegeu-se sugerindo medidas que pudessem prenunciar uma ameaça às instituições democráticas.

O caso agora é outro. O deputado Eduardo Bolsonaro tratou de uma situação hipotética de conflito com o Supremo Tribunal Federal e disse que bastariam um cabo e um soldado para fechá-lo. Um general da reserva, eleito deputado federal pelo PSL depois de ocupar a Secretaria de Segurança de Natal, defendeu o impeachment e a prisão de ministros do Supremo: “Não tem negociação com quem se vendeu.” Antes dele, um general da reserva que disputaria sem sucesso um cargo eletivo disse que “Corte que muda de decisão para beneficiar criminoso não é Corte, é quadrilha”.

O general Hamilton Mourão, também da reserva e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, elaborou sobre o mecanismo do “autogolpe”. Noutra digressão, mencionou as virtudes de uma Constituição redigida por sábios e ratificada num plebiscito. Jair Bolsonaro prometeu o fim do “ativismo” e anunciou que “os marginais vermelhos serão banidos da nossa pátria”. Como?

Essas foram afirmações de candidatos, feitas em diferentes contextos, às vezes partindo de situações hipotéticas. Não se deve esquecer que o deputado petista Wadih Damous, numa argumentação que nada teve a ver com a retórica bolsonarista, já sugeriu “fechar o Supremo Tribunal Federal” para criar uma Corte Constitucional. O doutor foi um dos marqueses da OAB.

Bolsonaro já prometeu mais de uma dezena de providências que dependem de reformas constitucionais. Elas precisam do voto de três quintos da Câmara e do Senado. Serão necessários 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores. Mesmo tendo formado a segunda maior bancada da Câmara, o PSL não os tem. Como pretende consegui-los, é outra história. Admitindo que os consiga, será o jogo jogado, e a vida seguirá. Se não conseguir, vem aí uma crise anunciada.

O eleitor ficou entre a cruz e a caldeirinha. Até o dia da posse, tudo será encanto e sedução. Como ensinou Marco Maciel, “as consequências vêm depois”. A essência da questão está na parte que caberá a cada um quando elas chegarem.

Há casos em que o cidadão tem que traçar a linha que não atravessará. No dia 29 de maio de 1966, o marechal Cordeiro de Farias entrou no gabinete do presidente Castelo Branco. Ele acabara de capitular diante da candidatura do ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva, e Cordeiro era o seu ministro do Interior. Aos 65 anos, estivera em todas as encrencas militares da primeira metade do século, da Coluna Prestes à deposição de João Goulart. Como general, comandou a Artilharia Divisionária da FEB na Itália.

No encontro, Cordeiro disse ao presidente: “Você é generoso com o Costa e Silva, eu sou justo. Você sabe que ele vai afundar o país, pois é incapaz, e eu não quero ter parte nisso.”

Cordeiro deixou o ministério e foi para casa. Costa e Silva assumiu em 1967 e afundou o país em 1968, baixando o Ato Institucional nº 5.

Numa manhã de agosto de 1976, em cena emocionante, o velho marechal entrou, de bengala, no saguão onde se velava o corpo de Juscelino Kubitschek. Doze anos antes, havia votado pela sua cassação, mas não teve parte na ascensão de Costa e Silva.


Elio Gaspari: Breve tratado dos chatos de eleição

Conversar sobre política exige um mínimo de intimidade, alguma educação e, acima de tudo, um propósito

Faltando pouco para o segundo turno, está à solta o chato eleitoral. É um personagem que tenta transformar qualquer conversa em discussão política para defender seu candidato. Assim como sempre haverá gente que enfia o dedo no nariz, não há como evitar que ele exista. Pode-se limitar o alcance de sua chateação cortando-se polidamente o assunto. O general Alfredo Malan tinha uma fórmula: “Política e jogo de cartas me dão sono”. (Não era verdade, mas funcionava.)

Há dois tipos de chatos eleitorais.

O primeiro, benigno, é o militante. Ele supõe que sua palavra iluminada pode conseguir um voto para seu candidato. Esse chato pode ser neutralizado com uma simples mudança de assunto. O melhor remédio é deixá-lo falar o tempo que quiser. Interrompê-lo será estimulá-lo.

O segundo chato eleitoral, maligno, quer vender seu candidato, mas há nele algum tipo de insegurança. Fez sua escolha mas busca apoio, cumplicidade.

Esse é o tipo mais desagradável e perigoso, porque precisa de uma discussão. Afinal, só assim poderá se convencer que fará o certo, pois mais gente decidiu como ele. Quanto mais corda recebe, mas enfático ou radical se torna. Nesse caso o culpado pela chateação será quem lhe deu corda. (Trocar ideias com um eleitor de Bolsonaro tem uma complicação exclusiva, pois o candidato não quer debater as suas.

Se nenhum recurso der certo, pode-se recorrer ao truque do deputado Temperani Pereira. Depois de ouvir uma exposição de um colega ele lhe disse: “Sua opinião me deixa incorrobúvel e imbafefe”.

Depois comentou: “Quero ver ele achar essas palavras no dicionário”.

MEDO MÚTUO
O pior sinal do tamanho do ódio e do medo que se espalharam pela política pode ser comprovado nas ruas. Não há carros com adesivos dos candidatos.

OLGA BENÁRIO
Chegou ao mercado um lote de uma centena de cartas de Olga Benário, a mulher de Luís Carlos Prestes. Há algumas fechadas, outras lhe eram endereçadas e muitas que teriam sido manuscritas por ela.

Olga foi presa com Prestes em 1936. Meses depois Getúlio Vargas deportou-a para a Alemanha. Grávida, ela teve um pedido de habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal. Em 1942, Olga foi mandada para a câmara de gás no campo de Bernburg.

RETROVISOR
Diante do desempenho do empresário Romeu Zema na disputa do pelo governo de Minas fica uma pergunta inútil para quem está assustado com a situação do Rio de Janeiro.

O que aconteceria se o partido Novo tivesse lançado o economista Gustavo Franco e se ele topasse disputar o palácio Guanabara?

O ex-presidente do Banco Central deixou o PSDB e filiou-se ao Novo quando ele era apenas uma ideia.

GENERALÔMETRO
Como os generais voltaram ao noticiário, vale a pena usar um filtro para medir o peso de suas opiniões junto à tropa.

As posições de generais que estão na reserva geralmente valem pouco. Muitas vezes, nada.

Generais da ativa, quando falam, é bom prestar atenção. É difícil, mas deve-se ouvir sobretudo o silêncio dos generais da ativa que não falam.

1968, 1978
Faltou sorte a Jair Bolsonaro na quinta-feira, dia 11, quando ele disse numa entrevista que seu objetivo é trabalhar para criar um “Brasil semelhante àquele que tínhamos 40, 50 anos atrás”.

Há 50 anos, no mesmo dia 11 de outubro, no Superior Tribunal Militar, o general Pery Bevilaqua votou pela concessão de um habeas corpus para o estudante Honestino Guimarães. Ele sustentava que juízes militares não deviam julgar atos políticos de civis e disse o seguinte: “Quando a política entra por uma porta do quartel, a disciplina sai pela outra —tal desvirtuamento da finalidade das Forças Armadas (...) está comprometendo seriamente a disciplina”.

A anarquia militar prevaleceu em 1968, e o general Pery foi tirado do STM. Honestino desapareceu em 1971. Em 1978, o general lançou o Comitê Brasileiro pela Anistia.

MORO SE EXPLICA
Pode-se fazer tudo pelo juiz Sergio Moro, menos papel de bobo.

Explicando ao Conselho Nacional de Justiça por que divulgou um petisco da colaboração do ex-comissário Antônio Palocci seis dias antes do primeiro turno, ele ofereceu três pérolas.
Numa disse que “o conteúdo do depoimento sequer se revestiu de grande novidade”. Tem toda a razão.

Noutra informou que “caso fosse intenção influenciar nas eleições teria divulgado a gravação o vídeo do depoimento, muito mais contundente do que as declarações escritas e que seria muito mais amplamente aproveitada para divulgação na imprensa televisiva ou na rede mundial de computadores”. Se não havia o propósito, resta saber qual a intenção dessa frase a esta altura do campeonato, mesmo sabendo-se que as malfeitorias do detento Palocci são notórias.

Na terceira, informou: “Não foi, ademais, o Juízo quem inventou o depoimento de Antônio Palocci Filho ou os fatos nele descritos”. Ainda bem.

DUAS JOIAS
Chegaram à livrarias americanas dois grandes livros. Um é “Capitalism in America”, de Alan Greenspan, o famoso ex-presidente do Fed, em parceria com o jornalista Adrian Wooldridge. O outro é “These Truths” (“Essas Verdades”), da professora Jill Lepore, de Harvard.

Ambos contam a história dos Estados Unidos, de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Greenspan e Wooldridge produziram uma monumental descrição do que vem a ser a “destruição criadora” do capitalismo americano. Lidam com estatísticas com a clareza dos santos. Uma frase que só Greenspan poderia assinar, vale o livro. Referindo-se a Alexander Hamilton, o formulador das bases da economia americana diz seguinte: “Ele era um gênio nato do calibre de Mozart e Bach”.

“Capitalism in America” é uma cantata à construção (e destruição) do andar de cima. “These Truths”, da professora Lepore, conta a mesma história, olhando para o andar de baixo, com os pobres, os negros, os índios e as mulheres.

Os dois livros têm desfechos semelhantes.

Greenspan e Wooldridge: “Donald Trump é a coisa mais próxima de um populista latino-americano produzida nos Estados Unidos”.

Lepore: “A eleição de Trump trouxe uma onda. Vários comentaristas anunciaram o fim da República. A retórica de Trump foi apocalíptica e absoluta”.

Muita gente do “mercado” deveria ler pelo menos o livro de Greenspan. Ele diz: “No Brasil neofeudal, o governo deu imensos pedaços de terra aos grandes proprietários. Na América capitalista, ele deu terras às pessoas comuns, com a condição de que irrigassem o solo com seu trabalho”.

PISQUE PARA NEIL
Está nos cinemas e nas livrarias “O Primeiro Homem”, com a história do piloto Neil Armstrong, o americano que pisou na Lua em 1969. Grande sujeito, exemplo das virtudes do homem simples. Foi uma celebridade modesta e fria. Pouco antes de seguir viagem, um jornalista perguntou-lhe o que gostaria de levar para a Lua. “Mais combustível”, respondeu.

Quando ele morreu, em 2012 aos 82 anos, sua família pediu: “Quando você sair à noite, vendo a Lua sorrir, pense em Neil Armstrong e mande-lhe uma piscadela”.


Elio Gaspari: Caveira!

Comparar Jair Bolsonaro a Donald Trump pode ser até chique, mas é o mesmo que viver na Barra da Tijuca pensando que se está em Miami. A alma da retórica do capitão está bem mais longe, nas Filipinas. Seu presidente chama-se Rodrigo Duterte, prometeu reformas econômicas e celebrizou-se pela política de combate à criminalidade, sobretudo ao tráfico de drogas.

Visitando o quartel do Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio, Bolsonaro disse à tropa que “podem ter certeza, chegando (à Presidência), teremos um dos nossos lá em Brasília”. Em seguida, deu o grito de guerra da corporação: “Caveira!”

Comparado com Duterte, Bolsonaro é uma freira, pois o presidente filipino vai além: “Hitler matou três milhões de judeus. Temos três milhões de viciados, eu gostaria de matá-los.” Está cumprindo. Em dois anos de governo, morreram 4.500 pessoas, segundo as estatísticas oficiais, e 12 mil, segundo organizações da sociedade civil.

Como Bolsonaro e Donald Trump, Duterte manipula sua incontinência verbal. Põe na roda a mãe de quem lhe desagrada, do Papa ao presidente Barack Obama. Quando uma missionária australiana foi morta e estuprada, ele disse que lastimava o crime porque ela “era tão bonita, foi um desperdício”. Em alguns casos, desculpou-se.

Aos 75 anos, tem o cabelo curto e negro de tintura, gosta de andar de motocicleta, teve um divórcio agreste, propala sua virilidade e as virtudes da pílula azul. Ele diz que “meu único pecado são os assassinatos extrajudiciais”.

O nome desse jogo é “Esquadrão da Morte”, coisa conhecida nas Filipinas e no Brasil. O de cá brilhou durante o governo de Juscelino Kubitschek, glamourizado pela imprensa com o nome de “Homens de Ouro”. Chefiava a polícia do Rio de Janeiro o general Amaury Kruel. Anos depois, seus colegas de tropa disseminavam histórias comprometedoras sobre sua honorabilidade. Mais tarde, surgiu a Scuderie Le Cocq, cujo símbolo era uma caveira. Seu presidente era o detetive Euclides Nascimento. Em 1971, ele comandava também uma quadrilha de contrabandistas à qual anexou-se o capitão Ailton Guimarães Jorge, com subalternos que estiveram lotados no DOI do I Exército. Em São Paulo, a estrela do “Esquadrão” era o delegado Sérgio Fleury, o matador de Carlos Marighella. As patrulhas de Fleury, como as de Duterte, penduravam cartazes em traficantes mortos. Faltava dizer que eram bandidos de quadrilhas rivais.

Se “execuções extrajudiciais” fossem remédio, o Brasil seria uma Dinamarca. Em 1970, uma pesquisa realizada no Rio e em São Paulo mostrou que 46% dos entrevistados estavam a favor do “Esquadrão”.

Há uns 20 anos, quando surgiram as primeiras milícias nas cidades brasileiras, houve quem achasse que elas eram remédio contra o crime. Passou o tempo, e os problemas agora são dois: o crime e as milícias. A ideia do combate aos bandidos partindo da suposição de que “direitos humanos” não devem ser confundidos com “direitos dos manos” (palavras de Jair Bolsonaro) pode estatizar algumas “boas” milícias.

Em dezembro de 1993, quando a polícia colombiana botou para quebrar no combate aos bandidos e conseguiu matar o traficante Pablo Escobar, símbolo do narcotráfico latino-americano, os louros da vitória foram para o presidente César Gaviria. Conhecendo a questão da violência e do tráfico, no ano passado ele escreveu um artigo intitulado “O presidente Duterte está repetindo meus erros”.

O filipino respondeu: “Isso só seria possível se eu fosse um idiota, como você”.

A popularidade de Duterte está em 75%. Vive-se melhor na Colômbia.


Elio Gaspari: O delegado viu paz e amor na suástica

Quem marcou a barriga da jovem inverteu a perna do S, mas sabia muito bem o que estava fazendo

Uma jovem de 19 anos contou na terça-feira à polícia de Porto Alegre que na noite anterior vestia uma camiseta com o slogan “Ele Não”, desceu de um ônibus e foi agredida por três pessoas. Contou ainda que, imobilizada, fizeram-lhe seis talhos na barriga, marcando-a com uma suástica.

Ainda não se conhecem as circunstâncias do episódio, e na quinta-feira a jovem, que não teve o nome revelado, desistiu da denúncia. A investigação prossegue. Um dia antes da desistência, o delegado Paulo César Jardim, tendo visto uma fotografia dos ferimentos, deu uma entrevista aos repórteres Kelly Matos e Pedro Quintana com suas observações preliminares.

Ele repetiu seis vezes que ali não havia uma suástica. Informando que é um “especialista nesta área”, revelou que a cruz gamada do nazismo não tem aquele formato, pois a perna do “S” estava invertida. Segundo Jardim, “o que temos é um símbolo milenar religioso budista, símbolo de amor, paz e harmonia”. (A fotografia está na rede, bem como os 16 minutos do áudio da entrevista.)

Quando lhe perguntaram se havia sentido em uma pessoa marcar a canivete um “símbolo de amor, paz e harmonia”, ele respondeu o seguinte: “Quem fez, foi, sei lá (...) Papai Noel, enfim, o que a gente tem é isto”. Categórico, acrescentou: “Não é uma suástica, isso eu afirmo com absoluta convicção”.

O delegado foi didático: “O movimento neonazista, quando ele iniciou, a partir de 1930, ele precisava ser representado por símbolo, um lado esotérico, (...) O que é que aquelas pessoas que circundavam Hitler decidiram? Decidiram que buscariam um símbolo que trouxesse confusão e trouxesse harmonia para o povo alemão. Então o que é que eles pegaram? Pegaram o símbolo budista de paz, amor e fraternidade e inverteram ele”.

Tudo errado. O nazismo (nada a ver com “neo”) bem como a suástica surgiram em 1920, e ela não chegou à Alemanha pelo caminho da cultura indiana. Até sua apropriação pelo Partido Nacional Socialista, tinha vários significados, inclusive o de trazer sorte. Para Hitler, tratava-se de um símbolo do arianismo e da pureza racial.

Sejam quais forem as circunstâncias do episódio, quando aparece uma pessoa com uma suástica na barriga e um delegado como o doutor Jardim diz o que ele disse, algo de muito ruim está acontecendo.

Paris, 8 de junho de 1942
Hélène Berr tinha um diário. Tinha 21 anos, era judia e rica. Passava os dias na Sorbonne estudando literatura inglesa, tocava violino e estava apaixonada, de bem com a vida. Ela escreveu:

“Hoje é o primeiro dia em que me sinto num feriado. O tempo está glorioso e a chuva de ontem trouxe ar fresco. Os pássaros estão cantando. É também o primeiro dia em que vou usar a estrela amarela. Esses são os dois lados da vida de hoje: juventude, beleza e ar puro, tudo numa só linda manhã: a barbaridade e o mal, representados nesta estrela amarela.”

Enquanto Anne Frank escreveu seu diário no sótão de Amsterdã onde vivia escondida com a família, Hélène vivia o ocaso da paz dos judeus franceses. Deportada para a Alemanha, três meses antes da libertação de Paris, ela morreu em 1945 no campo de concentração de Bergen-Belsen, pouco antes da chegada das tropas inglesas.

Quem marcou a barriga da jovem gaúcha inverteu o traço da suástica, mas sabia o que estava fazendo.

Caos jurídico
Juízes e procuradores estragaram o equilíbrio da eleição, comprometeram a neutralidade dos poderes constituídos e afetaram a qualidade de suas próprias posturas.

O juiz Sergio Moro liberou um pedaço desconexo e inconclusivo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci, atual hóspede da Federal de Curitiba. Fez isso seis dias antes da eleição.

O juiz Marcelo Bretas, a quem se deve o encarceramento de Sérgio Cabral, felicitou publicamente os dois senadores eleitos pelo Rio de Janeiro.

Já o Ministério Público Federal de Brasília soltou a informação de que o economista Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” de Jair Bolsonaro, está sendo investigado porque encontraram-se “indícios relevantes” de malfeitos nas suas transações financeiras com fundos de pensão estatais. Fez isso dias antes do segundo turno da eleição.

Moro e o MP de Brasília não precisavam permitir que suas ações fossem confundidas com o calendário eleitoral. Bretas não precisava botar suas preferências eleitorais na vitrine.

Os doutores atiraram para todos os lados. Falta de sorte para quem os paga acreditando que são servidores neutros ou, pelo menos, discretos.

Já o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, diz que a deposição de João Goulart, em 1964, não foi “golpe” nem “revolução”, mas “movimento”. Faltou encaixar o “movimento” no Ato Institucional nº 5, que suspendeu o habeas corpus e fechou o Congresso.

As palavras de Toffoli ofendem a memória de Francisco Campos, um tremendo jurista, encantado por ditaduras. Foi ele quem construiu o conceito de “revolução” ao redigir o preâmbulo do Ato Institucional de abril de 1964. Campos não se incomodaria com o descarte da palavra que usou. Como zelava pelo vernáculo e pelo direito, sofreria ao saber que um regime teria virado um “movimento”.

Recordar é viver
Quem estudou o maremoto da eleição acha que sua origem está nas manifestações de 2013, quando milhões de pessoas tomaram as ruas para reclamar de tudo.

Em abril já havia acontecido protestos contra os aumentos de tarifas de transportes em Porto Alegre e Goiás. Nas noites de 6 e 7 de junho, a PM paulista transformou o centro da cidade numa praça de guerra.

Na noite do dia 10, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad estavam em Paris, participando de um evento. À noite, num jantar, fizeram uma dupla interpartidária e cantaram “Trem das Onze”.

Abin
Está passando em branco na campanha presidencial o tema do fortalecimento da Abin. A Agência Brasileira de Inteligência seria um órgão capacitado a informar ao presidente da República quem são os colaboradores que pretende levar para o governo.

Como a Abin sucedeu ao falecido Serviço Nacional de Informações, herdou a urucubaca do ancestral. A documentação conhecida do SNI permite dizer que ele funcionava como guarda pretoriana, metia-se onde não devia e tinha uma competência pra lá de discutível. Hoje a Abin tem servidores concursados e deve ser capaz de informar que um gatuno, gatuno é.

Olhando-se para os prontuários de muitas autoridades nomeadas nas últimas décadas, percebe-se que os presidentes ignoram fatos básicos, como se não soubessem que a avenida Atlântica é paralela à Nossa Senhora de Copacabana.

Utilizando-se o filtro consultivo da Abin, fica registrado que ela mostrou o que havia de podre na biografia do escolhido e retira-se de quem nomeia o álibi do “eu não sabia”.


Elio Gaspari: Jaques Wagner entra em campo

Fernando Haddad e o comissariado petista querem costurar uma “frente democrática” para derrotar Jair Bolsonaro e puseram em campo o ex-ministro e ex-governador da Bahia Jaques Wagner. Se conseguirem, no mínimo, levantam o nível da campanha.

Wagner é competente, e seu desempenho na Bahia comprova isso. Governou o estado de 2007 a 2015, elegeu o sucessor que, por sua vez, acaba de se reeleger. Se lhe faltasse credencial, no início do ano defendia uma chapa com Ciro Gomes e Haddad na vice. Foi atropelado pelo oráculo de Curitiba, recolheu-se e foi tratar de sua campanha para o Senado.

As duas principais pontas dessa costura são Ciro Gomes e Fernando Henrique Cardoso. Ciro tem um capital eleitoral e já disse que “ele não”. Ainda falta para que entre na campanha de Haddad. Ele seria um corpo estranho no estilo que Haddad apresentou no primeiro turno. A questão será saber em que tipo de campanha e de propostas cabem os dois.

Só o tempo dirá onde o PT estava com a cabeça quando atropelou-o e, sobretudo, quando Dilma Rousseff descumpriu a palavra dada ao irmão de Ciro, que lhe oferecia uma cadeira de senadora pelo Ceará. Roberto Mangabeira Unger, velho amigo dos Gomes, já conversou com Haddad.

A ponta de Fernando Henrique Cardoso é mais delicada. Ele está fechado em copas, numa dupla negativa: “Não concordo com o reacionarismo cultural e o descompromisso institucional de uns vitoriosos e tampouco com a corrupção sistêmica e com o apoio ao arbítrio na Venezuela e em outros países.” Para tirá-lo dessa posição, será necessária muita conversa. Mesmo assim, FHC sabe o peso biográfico de um eventual silêncio. São duas costuras possíveis para Jaques Wagner.

Uma parte do fenômeno Bolsonaro saiu do rancor petista, da eternizada adoração oracular a Lula e, sobretudo, da resistência dos comissários à autocrítica. Muitas pessoas podem até votar em Haddad, mas se o preço for defender a moralidade petista no balcão de uma lanchonete, acabam votando no capitão. O rancor produzido pela onipotência virou veneno e ainda está lá.

Mesmo depois do massacre de domingo, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse o seguinte: “Nós vamos fazer um chamamento a todos os democratas. (...) Não temos restrição, se as pessoas tiverem noção do que está em jogo no Brasil e defenderem a democracia, têm que estar nessa caminhada.”

Quem a ouvisse acreditaria que falava a uma plateia de militantes. “Têm que estar”, por que, cara pálida? A causa democrática não precisa do toque de clarim do PT, é justo o contrário.

A ideia segundo a qual o programa do PT precisa apenas de ajustes é suicida. Quem propõe uma frente democrática não fala essa língua, até porque, felizmente, os comissários já jogaram no mar a proposta de uma Constituinte. A maior frente já construída na política brasileira foi a das Diretas Já, de 1984. Nela entrou até Tancredo Neves, que, com fina percepção, a considerava “necessária, porém lírica”.

Na sua fala ao “Jornal Nacional”, Jair Bolsonaro desautorizou a sugestão de Constituinte de sábios e a referência ao “autogolpe” de seu vice Hamilton (e não Augusto) Mourão. Fica combinado assim. Faltou esclarecer o significado de uma frase na sua saudação de domingo: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil.”

Sem ativistas, não há democracia. Não existiriam o PT, nem o PRTB de Levy Fidelix com seu Aerotrem. Bolsonaro também precisa de um filtro moderador, mas talvez a banda golpista de seu eleitorado nem o queira.


Elio Gaspari: A utilidade do fator arrependimento

Numa eleição influenciada pelo voto contra, talvez seja melhor pensar no risco embutido nessa decisão

Hoje o eleitor poderá escolher entre 13 candidatos. Nos últimos 29 anos, os brasileiros elegeram quatro pessoas para a Presidência: Fernando Collor, FHC, Lula e Dilma. Pode-se dizer que uma boa parte dos eleitores de Collor e Dilma se arrependeram do voto. Muita gente que preferiu Aécio Neves também deve ter se arrependido, e essa história mostra o risco embutido em eleições que desembocam em votos contra.

Quem já votou para presidente terá mais facilidade em lidar com o fator arrependimento, quer pelos candidatos em quem votou, quer por aqueles em que se orgulha de não ter votado.

Em todos os casos, pode-se ir à seção eleitoral movido pelo voto contra A ou B. No caminho, vale a pena pensar no fator arrependimento. No dia da eleição, o voto contra pode ser glorioso como uma vitória no futebol. Ao contrário das disputas esportivas, eleição elege e o candidato assumirá a Presidência em janeiro. Daí em diante o eleitor recebe a parte que lhe cabe desse latifúndio.

Muitos eleitores de Dilma, Collor e, lá atrás, Jânio Quadros arrependeram-se ou arrumaram justificativas fúteis para suas escolhas. Muitos colloridos votaram contra Lula, sabendo quem era a turma do “Caçador de Marajás”.

Os janistas votaram contra a turma de Juscelino Kubitschek, mas sabiam que Jânio era, no mínimo, “a UDN de porre” (palavras de Afonso Arinos, referindo-se à União Democrática Nacional, o partido que se ajoelhou para Jânio).

Eleições embebidas em votos contra produzem vencedores, mas a experiência mostra que, em pelo menos dois casos, entregaram o Brasil a presidentes desastrosos.

Receita para um autogolpe
Numa digressão genérica, o general Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, referiu-se ao mecanismo do “autogolpe”, a que um governo recorreria, numa situação de grave crise política. “Já houve em outros países. Aqui nunca houve.”

Houve em 1965, 1968, 1969 e 1977, mas deixa pra lá, porque foram autogolpes dentro de um regime ditatorial. Vale a pena revisitar o autogolpe tentado, sem sucesso, por Jânio Quadros.

Jânio assumiu a Presidência em janeiro de 1961, teve uma relação hostil com o Congresso e com as lideranças de sua própria base. Na manhã de 25 de agosto, sem ter falado com ninguém, renunciou ao cargo.

No dia seguinte, ele disse ao jornalista Carlos Castello Branco, seu assessor de imprensa: “Nada farei por voltar, entrementes considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo”. Muita gente achava boa a ideia e havia antecedentes na cena internacional. Um mês depois da posse de Jango, a CIA informava ao presidente John Kennedy que a ideia da volta de Jânio ganhava força.
O autogolpe de Jânio fez água porque foi um lance solitário, amalucado. Além disso, o vice era João Goulart, mal visto nas Forças Armadas e seu adversário.

Num exercício de passadologia misturada com o presente, se o vice de Jânio fosse um parceiro fiel como o general Mourão e os dois renunciassem juntos, a Constituição de 1988 diz que “far-se-á eleição 90 dias depois”. Ambos poderiam se candidatar, pois se tivessem continuado no cargo estariam habilitados para disputar a reeleição.


Elio Gaspari: A ‘bala de prata’ feriu Moro

Se era “bala de prata”, o teor da colaboração do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci tornou-se um atentado à neutralidade do Poder Judiciário, à desejada exposição das roubalheiras do comissariado petista e à boa-fé do público.

Foi uma ofensa à neutralidade da Justiça porque o juiz Sergio Moro deu o tiro seis dias antes do primeiro turno da eleição presidencial. Trata-se de um depoimento tomado em abril que não revela o conjunto da colaboração do poderoso detento-comissário. Podia ter esperado o fim do processo eleitoral, até mesmo porque o doutor Moro é pessoa cuidadosa com o calendário. Com toda a razão, ele suspendeu dois depoimentos de Lula porque o ex-presidente transforma “seus interrogatórios em eventos partidários”.

Foi uma ofensa para quem espera mais detalhes sobres as roubalheiras petistas, porque a peça de dez páginas tem apenas uma revelação factual comprovável, a reunião de 2010 no Alvorada, na qual combinou-se um processo de extorsão, cabendo a Palocci “gerenciar os recursos ilícitos que seriam gerados e seu devido emprego na campanha de Dilma Rousseff para a Presidência da República”. Traduzindo: Palocci foi nomeado operador da caixinha das empresas contratadas para construir 40 sondas para a Petrobras. Só a divulgação de outras peças da confissão do comissário poderá mostrar como o dinheiro foi recebido, a quem foi entregue e como foi lavado. O juiz Sergio Moro fica devendo essa.

Afora esse episódio, o que não é pouca coisa, a colaboração de Palocci é uma palestra sobre roubalheiras que estão documentadas, disponíveis na rede, em áudios e vídeos, na voz de empresários e ex-diretores da Petrobras. Em julho passado, o procurador Carlos Fernando de Souza contou que a força-tarefa da Lava-Jato tratou com Palocci: “Demoramos meses negociando. Não tinha provas suficientes. Não tinha bons caminhos investigativos”. Se as confissões de Palocci à Polícia Federal quebraram a sua barreira de silêncio, só se vai saber quando o conjunto da papelada for conhecido.

Nessa parte da colaboração, Palocci, quindim da plutocracia que se aninhou no petismo, diz na página 2 que em 2003 o governo tinha duas bandas, a “programática” e a “pragmática”. Ao longo do tempo “a visão programática adotada pelo colaborador (ele) foi sendo derrotada”. Na página 6, o doutor conta que foi nomeado operador da caixinha das sondas. Isso é que é derrota. Em 2006, quando estava prestes a ser defenestrado do Ministério da Fazenda, uma pessoa presente a uma conversa no Alvorada ouviu Lula dizendo-lhe: “Pô, Palofi, você não para de mentir?”

Segundo Palocci, de cada R$ 5 gastos nas campanhas, R$ 4 vêm de propinas, e a candidatura de Dilma Rousseff recebeu algo como R$ 400 milhões de forma ilícita. Como gerente de uma parte dessa caixa, a palavra está com ele.

Até lá, o ex-ministro continuará na carceragem de Curitiba, onde teria um pequeno cultivo de alecrim e lavanda, ecoando o jardim do falsário Louis Dega na Ilha do Diabo. (Dustin Hoffman no filme “Papillon”)

Antes mesmo da “bala de prata”, Lula, Haddad e o comissariado tinham motivos para duvidar que a postura de soberba castidade do PT teria um preço. A conta chegou: a rejeição a Haddad subiu 11 pontos em uma semana, chegando a 38% na conta do Ibope. É rejeição ao PT e ao “Andrade” que percorre o Brasil blindando-o.

Faltam cinco dias para o primeiro turno, e amanhã os candidatos irão ao último debate. A ver.


Elio Gaspari: Haddad e sua teoria do parto

Numa manobra imprudente e desnecessária, o comissariado quer chegar ao segundo turno nos seus termos

Num encontro com artistas em São Paulo, Fernando Haddad, disse o seguinte:

"Não tem como se desenvolver do ponto de vista institucional sem passar por alguns partos. (...) As nações que chegaram ao desenvolvimento passaram por momentos tão dramáticos quanto o que nós estamos passando agora".

E acrescentou:

"Se a gente vencer essa etapa, nós vamos olhar para trás e, ao invés de acusar aqueles que querem votar no Bolsonaro e tudo o mais, vamos compreender que é uma parte de um sentimento que se expressou dessa maneira, como uma febre alta, mas que foi importante em determinado momento para a gente pensar que tem uma coisa errada com esse organismo aqui e vamos cuidar dele porque é muito importante para nós".

Trata-se de uma construção na qual a candidatura de Jair Bolsonaro seria uma febre alta, depois da qual nasceria um novo tempo, mas tudo gira em torno de seis palavras: "Se a gente vencer essa etapa". E se não vencer? Teria faltado combinar com Bolsonaro.

O comissariado deve refletir sobre o preço de ir para o segundo turno sem qualquer autocrítica. Afinal, no mesmo encontro, Haddad disse que "não quero repassar os erros de todos os envolvidos, porque são muitos".

Ele não quer, mas o eleitor que tem medo do que chama de "a volta do PT" gostaria que quisesse. Os comissários devem pesar os riscos da teoria do parto. Ela embute a ideia de que o PT irá para o segundo turno nos seus termos, e quem quiser que o siga. Milhões de pessoas votariam em Átila, mas não votam em Bolsonaro.

O que não se sabe é o tamanho do eleitorado que é capaz de votar até em Bolsonaro para evitar o retorno do PT ao Planalto nos termos do comissariado.

Em Minas Gerais e em São Paulo, boa parte do eleitorado tucano migrou para Bolsonaro. Querer levar o centro para o programa do PT e para a retórica de Haddad ameaça sua candidatura e contamina o governo que pode advir de sua vitória.

Em 1984, Tancredo Neves construiu a primeira conciliação da história saída da oposição. Se ele tivesse adotado a estratégia dos comissários de 2018, Paulo Maluf poderia ter sido eleito presidente.

A MARCHA DA INSENSATEZ
Em sua carta aos eleitores, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pediu que se busque um equilíbrio capaz de deter o que chamou de "marcha da insensatez".

Um segundo turno disputado por Jair Bolsonaro e Fernando Haddad parece inevitável, e os dois candidatos, avaliados a partir de suas posições públicas confirmam o receio de FHC.

Bolsonaro diz que nunca houve ditadura e seu vice pede uma reforma moral que livre o Brasil da preguiça do índio, da malandragem do negro e do 13º salário. Já Haddad nomeou para a tesouraria de sua campanha um companheiro, acusado pela marqueteira Monica Moura de ter negociado um mimo da Odebrecht para sua campanha à prefeitura em 2012. Como eleição é bufê, o freguês poderá ter que escolher entre os pratos da mesa: Bolsonaro ou Haddad.

A carta de FHC permite que se passeie pelas marchas da insensatez. A expressão ganhou popularidade em 1984, quando a historiadora americana Barbara Tuchman publicou o livro "The Age of Folly".

Ela contou quatro episódios da história nos quais a insensatez levou a desastres. Um deles leva a pensar no Brasil de hoje. Seu título é "Os Papas do Renascimento provocam a Secessão protestante - 1479-1530".

Os papas foram seis, alguns deles memoráveis, como Julio 2°, o protetor de Michelangelo, mas todos foram larápios, nepotistas, mais preocupados com o "centrão" dos cardeais do que com o futuro da Igreja.

Distribuíam prebendas, vendiam indulgências e bispados. Não prestaram atenção ao surgimento da imprensa (leia-se internet) e desprezavam as advertências vindas dos cleros da Alemanha e da França.

Um deles deu o barrete cardinalício a dois sobrinhos. Outro nomeou um cardeal de 14 anos. Alexandre 6º, o Borgia, teve sete filhos, elevou a depravação da Santa Sé a níveis nunca vistos e tornou-se o homem mais rico de Roma.

O papado queimou numa fogueira de Florença o dominicano moralista Girolamo Savonarola e não deu ouvidos aos padres que pediam a reforma da Igreja. Naquele mundo de privilégios o fim da corrupção parecia a porta do inferno.

Dezenove anos depois da execução de Savonarola, o monge alemão Martinho Lutero abriu o maior cisma da história da igreja, e hoje o mundo tem 900 milhões de protestantes.


Elio Gaspari: A gestão Tabajara do ‘Posto Ipiranga’

Jair Bolsonaro diz que não entende de economia e que o doutor Paulo Guedes é seu “Posto Ipiranga”. Deve-se suspeitar que o sábio multiuso tenha terceirizado a gestão de seu estabelecimento para as “Organizações Tabajara”, imortal criação do humorista Bussunda.

Numa só reunião ele fez duas boas. Recusando entrevistas a canais de televisão, Guedes foi a uma reunião na GPS Investimentos, anunciou que pretendia propor a criação de um imposto sobre transações financeiras (leia-se CPMF) e declarou que em 2015 foi convidado pela presidente Dilma Rousseff para o Ministério da Fazenda. As pérolas foram reveladas pela repórter Mônica Bergamo.

A promessa iria melhor se tivesse sido anunciada publicamente, e não numa conversa fechada, promovida na banca. Trata-se de uma ideia que pode ser discutida como um mecanismo de política tributária, sem significar aumento nem redução de carga de impostos.

Na revelação de que Dilma o convidou é que entra o sistema Tabajara de gestão. Há algumas semanas a repórter Malu Gaspar publicou um perfil de Guedes no qual ele ligou sua metralhadora giratória e lançou uma acusação factualmente errada contra o banqueiro Persio Arida. Ele respondeu, chamando-o de “mitômano”.

Numa de suas conversas com Malu Gaspar, Guedes contou que foi chamado para um jantar com Dilma e que ela avisou que demitiria o então ministro Joaquim Levy, passando a perguntar o que ele achava que se devia fazer na economia. Nenhuma referência a convite.

Depois da divulgação de sua conversa na GPS e do desmentido de Dilma, Guedes explicou-se, em “tabajarês”:

“Ela está perfeitamente habilitada a dizer que não me convidou para ser ministro da Fazenda, e eu estou perfeitamente habilitado a me sentir sondado. Ninguém chama alguém para jantar e faz essas (...) perguntas se não está fazendo um convite.”

Foi mal o “Posto Ipiranga”. Não houve convite algum, nem sondagem. As perguntas revelavam curiosidade, talvez interesse. Doutor Guedes está perfeitamente habilitado a dizer apenas que Dilma quis saber suas opiniões, e só.

A cabeça do genial Steve Jobs operava com um campo de distorção da realidade, mas ele criou a Apple. Já os “fatos alternativos”, enunciados por uma assessora da Casa Branca, produziram a presidência de Donald Trump, de onde já saíram mais de duas mil mentiras.


Elio Gaspari: O rancor petista virou veneno

Para quem joga numa eleição radicalizada, Fernando Haddad foi um colaborador impecável ao deixar a carceragem de Curitiba depois de visitar Lula. Ele definiu o papel do ex-presidente no governo que pretende fazer:

“Temos total comunhão de propósitos em relação a ele e o diagnóstico de que o Brasil precisa do nosso governo e precisa do Lula orientando como um grande conselheiro. Ele é um interlocutor permanente de todos os dirigentes do partido e nunca deixará de ser. Não temos nenhum problema com isso. Enquanto os outros partidos escondem os seus dirigentes, nós temos muito orgulho de ter o Lula como dirigente.”

Essa declaração poderia ter sido planejada pelo estado-maior de Jair Bolsonaro ou pelos urubus golpistas que pretendem deslegitimar uma eventual vitória da chapa petista.
Horas antes, em São Paulo, durante a sabatina da Folha/SBT/UOL, Haddad dissera algo racional, sem a soberba do comissariado:

“O presidente Lula, sem sombra de dúvida, na opinião da maioria dos brasileiros, foi o maior presidente da história deste país. Ele é um grande conselheiro e terá um papel destacado em aconselhamento, em falar de sua experiência. Jamais dispensaria a experiência do presidente Lula.”

Uma coisa é elogiar Lula e seus oito anos de governo. Bem outra é dizer que “não temos problema com isso”. Deviam ter, pois Lula está na cadeia, condenado por corrupção.

Milhões de eleitores estão dispostos a votar em Haddad porque ele é o candidato de Lula, mas quando se dá a um detento a condição de pai da pátria, estimula-se a dúvida em quem espera de uma vitória de Haddad a volta dos “bons tempos”, mas também teme que ela traga de volta o que há de pior no comissariado.

O consulado petista teve duas faces, a do progresso com Lula, e a do regresso com Dilma Rousseff, a da atenção para o andar de baixo e a das roubalheiras com o andar de cima. Oferecer as duas ao eleitorado num combo rancoroso é soberba.

Não se pode saber de onde está saindo o rancor petista. Pode ser que venha da inconformidade de Lula, ou ainda do interesse radical de uma parte do PT. Venha de onde vier, tornou-se um veneno que produz dois efeitos. O primeiro é o estreitamento da base eleitoral de Haddad, mas sempre se poderá dizer que uma eventual vitória transformará esse erro em asterisco. No seu segundo efeito, o modelo do “conselheiro” reforça as ameaças à sobrevivência das instituições democráticas. Não é preciso ser um gênio para se perceber que há um farfalhar golpista no ar. Bolsonaro, como Donald Trump, diz que teme uma fraude na contagem eletrônica dos votos. (Trump ganhou e não tocou mais no assunto.) O general Hamilton Mourão sonha com uma nova Constituição, redigida por sábios e sagrada num plebiscito. Coisa parecida, recente e próxima, só em 2007, na Venezuela.

Se houver um segundo turno entre Haddad e Bolsonaro, e o capitão reformado vier a prevalecer, será o jogo jogado. Se Haddad sair vencedor, a tese da vitória sem legitimidade irá para a mesa. A teoria do “conselheiro” serve à sua retórica.

As vivandeiras civis associadas à anarquia militar contestaram a legitimidade eleitoral em 1889 e em 1930 (com sucesso), em 1950 (fracassando até 1954, quando Getúlio Vargas matou-se) e em 1955 (com a teoria da falta de maioria absoluta de Juscelino Kubitschek). Coisa do século passado? Em 2014, Aécio Neves contestou a vitória de Dilma Rousseff. Depois, contou que a iniciativa foi uma “molecagem”, para “encher o saco”. Vá lá.