Cristovam Buarque: Um vírus duradouro

Mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty

Ao longo de nossa história, o Itamaraty é um exemplo de sucesso ininterrupto, até mesmo durante regimes autoritários. Na ditadura Vargas, em plena II Guerra, o Itamaraty desempenhou suas funções com seriedade e competência. Alguns de nossos diplomatas são considerados heróis por terem salvado vidas de judeus. Com Oswaldo Aranha, nossa política externa foi determinante na criação da ONU. Apesar da pressão contrária dos Estados Unidos, fomos o primeiro país a reconhecer o governo independente e marxista de Angola; fizemos acordo nuclear com a Alemanha; reconhecemos o governo Comunista da China. Não devemos esquecer a ruptura com Cuba em 1964, mas com exceção da demissão arbitrária de alguns diplomatas, é preciso reconhecer que os 21 anos de ditadura não enfraqueceram nossas relações exteriores, nem desestruturaram o Itamaraty.

A democracia a partir de 1958 foi o grande momento de nossa política externa. O restabelecimento de relações com Cuba foi um dos primeiros atos do governo democrático de Sarney. Ele construiu a aliança com a Argentina e, junto com Raúl Alfonsín e Julio Sanguinetti, fez o Mercosul. Collor colocou o Brasil na liderança mundial da defesa do meio ambiente, quando isto ainda não era um tema palpitante. Fernando Henrique e Lula solidificaram nossa presença no mundo. O primeiro formou um time com Lampreia; o segundo formou quase uma instituição com Celso Amorim, a Lulamorim, no cenário mundial. Os dois presidentes e seus ministros colocaram a presença brasileira no ponto mais alto de nossa história. O primeiro foi tratado no nível dos presidentes de países ricos, o segundo conseguiu ser o líder dos presidentes dos países pobres, e com isto ganhar o respeito dos grandes do mundo. O primeiro criou a Bolsa Escola, reconhecida na autobiografia de Clinton, onde é citada em português em todos os idiomas em que foi traduzida; o segundo, com o nome de Bolsa Família, mostrou ao mundo uma política social inovadora. Nada disto seria possível sem a história de nossa política externa e sem o Instituto Rio Branco formando nossos diplomatas.

Fui professor e conferencista em diversas universidades, no Brasil e no exterior, em nenhuma tive um conjunto de alunos com o brilhantismo, a competência e o espírito público dos que encontrei e com os quais convivi naqueles dois anos no Instituto Rio Branco. Tenho orgulho de dizer que o atual ministro não foi meu aluno. Seu desempenho é uma tragédia que vai demorar mais do que a provocada pelo corona vírus. Está quebrando nossa fama e nosso prestígio de neutralidade, independência, solidariedade, eficiência e progressismo. O Itamaraty está contaminado por um vírus cuja consequência nefasta será mais duradoura porque ele infeccionou o Brasil, não apenas os brasileiros.

Ele está desarticulando a máquina do Ministério das Relações, fazendo o Brasil virar motivo de chacota no cenário internacional e na comunidade diplomática do mundo. Além de nos tirar das tradicionais posições de independência e conciliação, nos afasta das posições sintonizadas com os rumos da história, na ecologia, nos direitos humanos e na luta contra a tragédia da pobreza. Suas posições desastrosas pela oposição e preconceito em relação à China, Cuba, Argentina, estão levando ao isolamento e fazendo do Brasil um pária. Em relação à China, é além disto uma estupidez pro tudo que este país representa no cenário mundial e nas relações comerciais com o Brasil. Só um inimigo do Brasil seria capaz de provocar tantos problemas para o país.

Em fevereiro, ouvi de um diplomata estrangeiro que ele sentia mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty de Bolsonaro. Depois de respirar, ele disse: “E vocês já foram os melhores do mundo”. E lembrou os nomes dos chanceleres nos últimos anos: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Felipe Lampreia, Celso Amorim, Antônio Patriota, José Serra, Aloysio Nunes.

O trabalho mais difícil no mundo hoje, depois de profissional da saúde, é ser diplomata brasileiro servindo no exterior. E já foi um dos trabalhos mais respeitados e admirados.

O grave é que o estrago feito pela incompetência da diplomacia levará décadas para ser recuperado. Este é um vírus duradouro.

Um dia, os defensores de Bolsonaro poderão alegar que no dia 1º de janeiro de 2019, educação, saúde, economia, finanças não estavam bem, mas terão de reconhecer que o desastre nas relações exteriores foi um crime de Bolsonaro contra o Brasil, sob a incompetência do chanceler que ele escolheu e sob a impotência de líderes civis.

*Cristovam foi senador e governador


Cristovam Buarque: Renda inclusiva

Renda mínima merece apoio mas não tem consequência emancipadora da pobreza real

A crise social e econômica pela Covid-19 criou unanimidade na defesa da Renda Básica da Cidadania Universal. Este apoio à generosidade de uma renda para os pobres é natural, mas é incorreto passar a ideia de que ela promove inclusão social. Deve-se apoiar a ideia da renda mínima, alertando para o fato de que se trata de um gesto sem consequência emancipadora da pobreza real. Uma ferramenta positiva para reduzir a penúria, sem superar a realidade da pobreza.

Quando a ideia da Bolsa Escola foi divulgada, em 1987, no livro “A revolução nas prioridades”, seu nome era Renda Mínima Vinculada à Educação. Reconhecia o papel inspirador de Eduardo Suplicy, mas explicitava a diferença estratégica com a Renda Mínima. A adoção posterior do nome Bolsa Escola teve como propósito deixar claro que no lugar da renda era a educação que faria a inclusão, a bolsa era um salário à mãe para que seus filhos não faltassem às aulas.

A Renda Mínima parte do conceito de que a pobreza pode ser atendida pelo aporte de dinheiro à família para ela comprar o que precisa no mercado. Distribui uma pequena renda, sem distribuir patrimônio. A Renda Vinculada parte do conceito de que a pobreza decorre da falta de acesso a uma cesta essencial, composta por, no mínimo: comida; endereço com água potável, coleta de lixo e esgoto; educação de base com qualidade; atendimento ambulatorial e hospitalar; transporte público.

Parte da cesta essencial exige renda e compra no mercado, parte exige acesso a bens e serviços públicos. A Renda Vinculada à Inclusão funciona como um incentivo monetário que assegura renda para o beneficiário pagar pela comida e transporte público, e induz seu trabalho na produção de serviços de que sua família precisa para completar a cesta essencial: educação, saneamento, moradia. Além disso, diferentemente da distribuição mínima de renda, distribui também o patrimônio produzido.

A Bolsa Escola é um exemplo. Transfere renda para enfrentar as necessidades imediatas, mas, ao exigir que as crianças frequentem a escola até o final do ensino médio, promove a inclusão social. A bolsa atende à possibilidade de sobrevivência, a escola induz a sair da pobreza. O mesmo conceito se aplica aos outros incentivos sociais que atuam como rendas emancipadoras, tais como: pagamento condicionado a melhorar a própria moradia do beneficiado; renda vinculada à plantação de árvores no bairro, à construção ou cuidado de parques infantis, pintura de escolas; bolsa para analfabetos aprenderem a ler; renda para jovens fazerem serviço militar-civil ou para obterem um ofício; um salário para pessoas se submeterem a treinamento e depois cuidarem de crianças sem vaga em creche; emprego em obras de saneamento; pagamento de renda para promover desmigração de quem desejar sair de grandes cidades e voltar à sua cidade de origem.

O beneficiado que recebe uma renda mínima sem vinculação necessita ser rentista para sempre, sem sair da pobreza; aquele que recebe uma renda inclusiva, com vinculação, ao final de um prazo, tem o patrimônio que ele produziu: a casa ampliada, rebocada, pintada, com saneamento; os velhos alfabetizados e os filhos educados. A renda atende às necessidades imediatas, seu condicionamento promove a ascensão social, graças ao que será produzido.

O custo financeiro de um programa de Renda Inclusiva pela Vinculação seria o mesmo de um programa de Renda Básica da Cidadania; requer, entretanto, esforço gerencial do Estado na sua execução. Por isso, a simplicidade da ideia da renda mínima sem condicionamento sensibiliza os defensores da estratégia do “neoliberalismo social”, com o Estado mínimo, limitado a uma rede de agências bancárias, como está sendo feito com o Auxílio Emergencial.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Cristovam Buarque: Reunião de horrores

Ministro da Educação de Hitler sentia horror às simples expressões ‘povo judaico’ ou ‘povo cigano’ ou ‘comunista’

Bernhard Rust foi ministro de Hitler para a Educação. Nomeado no primeiro dia do governo nazista, foi fiel até a morte, por suicídio, na rendição da Alemanha. Não se pode dizer que Rust era culpado pela situação da educação alemã em 1933. Apesar de muito melhor que a nossa hoje, a educação alemã sofria consequências da Primeira Guerra e dos fortes constrangimentos impostos pelo acordo de paz que comprometeu as finanças públicas. Tudo isso agravado por hiperinflação e caos político ao longo da década de 1920.

Rust não era o culpado da herança que recebeu, mas, em vez de montar um sistema educacional competitivo na Europa, concentrou-se na ideologia para desarticular o que chamava de cultura comunista e influência de judeus na vida intelectual da Alemanha. Ele via a universidade como antro do marxismo cultural. Einstein era recusado como judeu e a teoria da relatividade vista como parte da conspiração internacional comunista.

Rust não fez parte da engenharia do Holocausto, mas foi um dos criadores do pensamento que serviu de base à execução da solução final para extinguir povos não arianos que faziam parte da Alemanha, especialmente judeus. Ele sentia horror às simples expressões “povo judaico” ou “povo cigano” ou “comunista”. Seu tipo de patriotismo achava que na Alemanha havia um único povo, palavra que só se aplicava aos alemães. Para isso, demitiu professores, impediu escolha de reitores pela comunidade, vetou ideias incompatíveis com a tradição cristã.

Lembrei de Rust ao ouvir a participação do ministro da Educação do Brasil, na reunião de gabinete de 22 de abril. Ele não incentivou solução final para nossos índios, mas lançou a base para que isso ocorra. Não por morte em câmaras de gás, mas por morte lenta devido à negação dos direitos básicos de cada povo indígena. Ao sentir horror, sua cara passou a sensação de nojo ao povo indígena, passou a ideia de que o conceito de povo brasileiro nega permissão para a convivência fraterna com outros povos dentro do Brasil.

Ao dizer que tinha horror ao conceito de povo indígena, e manifestar que apenas o povo brasileiro com sua aparente identidade ocidental e cristã lhe interessa, ele repete o que dizia o ministro nazista para os judeus. Quase 100 anos depois, o ministro da Educação do Brasil senta a base ideológica para a ideia da pureza, se não racial, ao menos cultural, do povo brasileiro cristão e ocidental.

Não é por acaso que, logo após, o ministro do Meio Ambiente declarou que o governo deve aproveitar a atenção da mídia voltada aos mortos pela epidemia, para simplificar procedimentos que permitirão ocupar terras e destruir florestas onde vivem o que seu colega considerou “não povo” indígena. Dizimar as florestas onde vivem os índios é como colocá-los em “câmara de gás” que mata lentamente. Foi isso o que os dois ministros combinaram ser feito sem grandes dificuldades burocráticas, um sentando base ideológica pelo horror ao povo indígena e o outro definindo os meios administrativos para o genocídio. Diga-se a favor deles que talvez não tivessem consciência do que diziam, sem saberem quem foi Rust.

Por isso, nenhum outro ministro, nem o presidente, nem o vice, chamaram a atenção deles para o horror do que tinham dito. Acharam natural os sentimentos de horror com o conceito de povo indígena e com as amarras burocráticas que impedem derrubar florestas.

A reunião de 22 de abril passa a sensação de um ministério unido no uso de palavrões e na concepção de Bernhard Rust. Igualmente triste é imaginar que depois de nossos “Rusts”, dificilmente teremos um presidente com a visão do chanceler Adenauer, que, na primeira reunião para definir as prioridades do Plano Marshall, afirmou que a prioridade na reconstrução da Alemanha seria a educação, para recuperar o tempo perdido em décadas anteriores e corrigir o desastre nos anos nazistas.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Cristovam Buarque: Desigualdade endêmica

No mês em que o Brasil comemora 132 anos da Lei Áurea, a sociedade debate se o Enem deve ser adiado. É claro que fazer o exame logo depois da epidemia vai acirrar a brutal desigualdade de como a educação de base é oferecida, mesmo nos períodos normais.

Escolas privadas estão substituindo aulas presenciais por ensino a distância, com a mesma ou até melhor qualidade, desde que os alunos tenham os equipamentos necessários e contem com apoio de pais ou de professores particulares. Mas raríssimas escolas públicas conseguem se adaptar com a mesma rapidez ao uso dos métodos do ensino a distância e, dificilmente, seus alunos contam com celulares, tablets, notebooks ou com o apoio pedagógico familiar.

Por isso, é absurdo que o governo federal se recuse a adiar a realização do Enem para quando as escolas tiverem recuperado o tempo perdido. Felizmente, entidades estudantis e grupos preocupados com a educação estão lutando para forçar o adiamento do exame na tentativa de impedir o agravamento das consequências decorrentes da desigualdade de como a educação é oferecida às nossas crianças. Mas é lamentável que a sensibilidade à desigualdade só chame a atenção quando se trata do ingresso à universidade.

Os movimentos que agora defendem postergar o Enem por causa da epidemia ignoram que, há décadas, independentemente do coronavírus, o ingresso na universidade trata diferentemente os candidatos, conforme a renda da família. A desigualdade na qualidade de educação de base só é percebida quando se trata da entrada no ensino superior — é a desigualdade entre os que terminaram o ensino médio e se sentem em condições de disputar o vestibular ou o Enem.

Mais grave é a desigualdade que atinge os esquecidos que não terminam o ensino médio, abandonam a escola antes ou fazem um curso tão ruim, que não se atrevem a buscar vaga em faculdade. É preciso, portanto, barrar a maldade do governo ao impor um Enem da epidemia, mas as diferenças educacionais são antigas, não são culpa (ou apenas) da atual administração. É herança maldita de governos anteriores, inclusive os últimos democratas-progressistas, que geriram o país por 26 anos, e os da esquerda, por 13 anos.

Durante toda a nossa história, relegamos a qualidade média da educação. Cuidamos dela apenas para os filhos de poucos, abandonando os descendentes dos negros durante a escravidão e os filhos dos pobres depois da Abolição. E só descobrimos a desigualdade quando está em jogo o ingresso no ensino superior, mesmo assim, por seu agravamento durante o confinamento provocado pela epidemia.

Por 350 anos, os navios negreiros tinham marujos com ordem para não deixar os escravos pularem no mar durante o trajeto desde a África. Os traficantes sabiam que o suicídio de um escravo era prejuízo como jogar mercadoria ao mar. Depois do trajeto, quando um escravo se suicidava, os parentes eram punidos porque a morte representava descapitalização para o dono.

Nós não entendemos ainda que, ao abandonar a escola, o jovem está se suicidando socialmente e descapitalizando o país de seu potencial intelectual. Os traficantes de escravos não eram mais humanos e sensíveis do que nós, brasileiros republicanos, mas somos, igualmente, insensíveis e menos inteligentes.

Fechamos os olhos ao suicídio social de dezenas de milhões de brasileiros que saltam os muros da escola e ignoramos o prejuízo que isso provoca no país e na humanidade. O abandono escolar, como o salto ao mar dos escravos, decorre em parte da pobreza da família, exigindo que os filhos trabalhem, mas decorre, sobretudo, da má qualidade e da pouca atratividade da escola. A maior parte delas, como navios negreiros para o futuro.

Nossos constituintes sofreram dessa ignorância ao definirem que educação é um direito de cada brasileiro, mas não o vetor do progresso do Brasil. Por isso, lutamos contra o Enem neste momento, mas não para que a escola tenha a mesma qualidade, independentemente da renda da família. Por um lado, porque vemos a educação apenas como um direito, não como o vetor do progresso. Por outro, pelo elitismo de nossos movimentos sociais que se interessam pelo direito de quem terminou o ensino médio, mas não o direito dos que abandonarão a escola antes do vestibular ou do Enem.

A luta pelo adiamento do Enem deve ser apoiada, contudo, não basta: é preciso lembrar os que jamais farão vestibular, por nem sonharem com o ensino superior devido à má qualidade da educação de base que lhes foi oferecida.

*Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Cristovam Buarque: Keynes ético

Quem defendeu a Ciência na epidemia deve respeitar a aritmética fiscal

O coronavírus trouxe a percepção de que a economia deve ter compromisso com a solidariedade. Mesmo veículos como “The Economist” e “Financial Times” têm manifestado a necessidade de uma reorientação na relação da economia com a sociedade, para enfrentar a tragédia da pobreza e do meio ambiente. Percebe-se a indecência da concentração de renda, da persistência da pobreza, da barbaridade dos “mediterrâneos invisíveis” barrando os pobres para proteger aos ricos. Na crise econômica do coronavírus, até os mais arraigados defensores do liberalismo econômico a qualquer custo passaram a sustentar políticas e gastos públicos para atender a necessidades da saúde, assegurar renda, recuperar empregos e proteger empresas. Passaram a apoiar medidas keynesianas, mesmo ao custo da emissão de moedas e alargamento da dívida pública.

Descobriu-se que respirar e comer são igualmente importantes para a saúde e a vida, mas o oxigênio é mais urgente que a comida. Da mesma forma que na guerra em que a produção de armas e o salário dos soldados são mais urgentes do que a produção de automóveis e o salário dos operários. Por isso mesmo, passaram a chamar essas estratégias de economia de guerra. Este exemplo correto para os tempos da pandemia do coronavírus deveria servir para o momento posterior: uma economia de guerra para superar a persistência da pobreza. E enfrentar as outras epidemias que nos contaminam há séculos: 100 milhões de pessoas sem tratamento de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões sem saber ler, 70 milhões sem educação de base, 13 milhões de desempregados, milhares com dengue, malária e sarampo. A economia de guerra adotada para enfrentar as consequências do coronavírus deve dar lugar a outra economia de guerra para enfrentar o “politicus vírus” que contamina as prioridades dos nossos gastos públicos.

Essa economia precisa entender que a pobreza não se erradica por transferência de renda mínima. O que eliminaria a pobreza é fazer com que todos tenham acesso aos bens e serviços essenciais a uma vida digna: educação de qualidade, água e esgoto, serviço de saúde eficiente, transporte urbano de qualidade e uma renda mínima. Uma solução é oferecer renda, condicionada a que a população pobre produza o que ela precisa para sair da pobreza: contratada para a construção de escolas, saneamento, sistemas de coleta de lixo, podendo consertar e pintar suas casas em terrenos com a propriedade assegurada por uma reforma da estrutura fundiária urbana, recebendo bolsas para garantir a permanência dos filhos na escola ou para os adultos serem alfabetizados. Isso é um keynesianismo produtivo e social.

Enquanto no keynesianismo tradicional dos países ricos o governo transfere renda para o beneficiado não produzir mercadoria, e o mercado oferece os bens privados para os pobres, que já contam com os serviços públicos básicos, no keynesianismo produtivo e social o governo promove incentivos sociais, transferência de renda condicionada à produção dos bens e serviços cuja oferta elimina a pobreza.

Passada a pandemia do coronavírus, o populismo vai defender a manutenção das atuais rendas criadas como emergência, sem aproveitar o poder mobilizador dessa transferência para que se produza o que os pobres precisam, em troca da renda. Mas, para que o pobre se beneficie plenamente, é preciso que o custo seja feito com responsabilidade. Quem defendeu a Ciência no enfrentamento da epidemia do coronavírus deve respeitar a aritmética fiscal, porque sem ela os pobres e os jovens pagarão depois o que receberem agora. Com a inflação e a dívida pública, como tem sido feito há décadas. Por isso, para ser eficiente e justo na guerra pela abolição da pobreza, o keynesianismo ético deve ser produtivo, social e responsável.


Cristovam Buarque: A voz do vírus

Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como enfrentar a nova peste: com o isolamento.

A insensatez está levando ao debate sobre a importância e não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito para viver e condições para buscar a felicidade.

O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.

O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social. Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores. “Nossos” governos.

O vírus está nos indicando que o obscurantismo do atual presidente tem características de genocídio. Mas lembra que nas gestões anteriores não fizemos o suficiente para impedir dezenas de milhares de mortos por malária, dengue e sarampo. O vírus está nos apontando que não cuidamos do analfabetismo porque não há um “letravírus” que contamine os que aprenderam a ler, fazendo-os analfabetos outra vez. E lembrando que sem educação não daremos emprego e renda aos que sobreviverem, despreparados profissionalmente. Para viver não basta respirar.

O vírus nos revela ainda que ele foi trazido do exterior por avião para os bairros ricos e nos pergunta se a epidemia seria enfrentada com o mesmo rigor se tivesse chegado de ônibus, direto para os bairros pobres. Nesse caso, talvez estivesse recebendo a pouca atenção dada ao aedes aegypti, que transmite a dengue, ou do anopheles, que transmite a malária. Ele especula que se o vírus da poliomielite não atingisse as pessoas indiscriminadamente, talvez não tivéssemos dado ao mundo o exemplo das “gotinhas” que erradicaram essa antiga epidemia.

O vírus anuncia que para salvar nossas vidas estamos em quarentena, sobrevivendo à síndrome da abstinência ao vício do consumismo nos shoppings e à falta de viagens. Ele nos ensina que podemos ver o mundo, estudar, trabalhar mesmo sem sair de casa. E que a saúde de cada um depende da saúde de todos, que a solidariedade com os outros é necessária para a sobrevivência de cada um, que a saúde de cada um não será plenamente segura se não cuidarmos da saúde pública.

O vírus está confirmando que além de levarmos a sério a ciência médica precisamos respeitar a ciência econômica e sobretudo a velha aritmética. Que neste momento devemos gastar o que for preciso para atender às necessidade dos doentes, de trabalhadores desempregados e se empresários falidos, mas que não devemos deixar a conta ser paga depois pelos pobres com a carestia da inflação, nem pelos jovens que pagarão o aumento da dívida pública. A solidariedade na doença precisa ocorrer na hora de pagar a conta

O vírus tem falado que além da quarentena, precisamos de uma revolução no nosso comportamento e nas nossas prioridades. E nos grita que é preciso mudar o velho padrão do progresso baseado na voracidade do consumo e na ganância do lucro. Mas ele sussurra o medo de que, passada a epidemia, voltaremos aos velhos costumes de antes: o desprezo ao saneamento, à educação de base e à saúde pública, e a preferência pela ilusão inflacionária, obrigando os pobres a pagarem a conta com a carestia.

 


Cristovam Buarque: Riscos e desafios

Nas ciências sociais, a academia brasileira tende a concentrar reflexões e teses sobre pequenos problemas no Brasil. Deixa aos acadêmicos estrangeiros o papel de estudar os grandes temas da humanidade e as grandes tendências da civilização. Mesmo quando estudamos assuntos atuais, como a crise ambiental, dedicamo-nos mais ao estudo dos problemas em microespaços de nossos biomas do que na relação homem-natureza e o avanço ou retrocesso civilizatório.

O professor da Universidade de Brasília, Elimar Nascimento, faz parte de um grupo que pensa o mundo. Há 30 anos, ele criou o Centro para o Desenvolvimento Sustentável (CDS) com o propósito de focar, de maneira multidisciplinar, grandes problemas da humanidade. Nessa criação foi decisiva a contribuição do então reitor Antonio Ibañez e de seu assessor de planejamento, Rubens Fonseca. Foi Elimar, com outro professor, Marcel Burstin, que transformou uma ideia num centro acadêmico dinâmico que, graças a muitos outros dirigentes, professores e alunos, hoje tem centenas de teses publicadas e conseguiu replicar-se em outras unidades da Federação e até no exterior.

O novo livro de Elimar, Um mundo de riscos e desafios – conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social, é resultado de reflexões pessoais, embora nele tenha agradecimentos a professores e alunos do CDS pela contribuição na elaboração da obra, publicada pela editora da Fundação Astrojildo Pereira. O livro tem a amplitude que se vê em grandes pensadores do mundo e tem tudo para fortalecer ainda mais o prestígio internacional do autor, já consolidado na França, onde ele fez doutorado.

» Confira o livro Um mundo de riscos e desafios na Biblioteca Salomão Malina

A publicação se afirma na bibliografia internacional como grande contribuição na discussão dos temas do decrescimento da democracia e da modernidade relacionada à globalização e à exclusão. Sobretudo se afirma como contribuição ao debate mundial sobre o futuro da humanidade.

O autor fala do tema tabu, na mente e na academia brasileira, do decrescimento. Embora o próprio autor lembre que, em Mitos do desenvolvimento, Celso Furtado já falasse nos limites do propósito do desenvolvimento econômico e que, antes disso, o professor romeno Nicholas Georgescu-Roegen alertasse para a entropia econômica, é preciso reconhecer a ousadia do Elimar no capítulo “A loucura desenvolvimentista”, ao propor o debate sobre a substituição do crescimento pela busca do decrescimento feliz.

Essa ousadia é apresentada com forte sustentação bibliográfica, citando dezenas de autores, quase todos do exterior, que há décadas demonstram não apenas os limites físicos ao crescimento, como também os limites existenciais do progresso desenvolvimentista, incapaz de gerar felicidade apenas pelo consumo. Em Brasília, um dos primeiros a trazer essa ideia foi o professor da UnB, João Luiz Homem de Carvalho.
O capítulo em que o professor Elimar apresenta ideias para a reinvenção da democracia nos permite perceber autores e análises que demonstram os riscos que a democracia sofre no mundo. É um capítulo que nos alerta das ameaças à democracia e nos permite pensar nos limites e insuficiências próprias do sistema democrático.

Inventada há 2.500 anos para as cidades gregas, a democracia não parece ser capaz de dar respostas aos problemas planetários: meio ambiente, migração e massa, comunicação simultânea e universal, fake news, internacionalização financeira e comercial, corrupção, esgotamento do Estado. A democracia não está apenas ameaçada, ela é insuficiente para orientar o mundo.

Ela não será capaz também de barrar o uso das novas tecnologias para ampliar o fosso entre pobres e ricos, levando à exclusão e até a um apartheid biológico, não apenas racial. O professor Elimar avança no assunto da exclusão a níveis raramente vistos na literatura acadêmica. Uma análise cujo único defeito seria a visão otimista de que ainda há esperança para o homo sapiens não se transformar no homo escorpius, que se suicida porque a voracidade do consumo está na sua natureza.

Ainda é cedo para saber se prevalecerá o homo escorpius suicida ou se um homo novus surgirá superando os riscos e os desafios que o autor apresenta. De qualquer forma, pode-se dizer que o livro precisa ser lido e terá papel importante na formulação de uma alternativa sustentável para o futuro da humanidade, a partir de um pensamento universal formulado no Brasil, no CDS/UnB, graças à formação acadêmica e ao humanismo de um de seus fundadores.


Cristovam Buarque: A esquerda ficou pra trás

Não aceitaram que a construção de justiça social exige economia eficiente. Não entenderam a gravidade do desequilíbrio ecológico

Na véspera dos 40 anos do PT, alguns analistas, inclusive militantes e simpatizantes, afirmaram que o partido está obsoleto. Mas cometeram dois erros: não é só o PT, toda a esquerda tradicional ficou obsoleta; e eles usaram argumentos superficiais para justificar a ideia de obsolescência. O obsoletismo tem razões mais profundas.

Alguns ficaram indecentes pela corrupção, mas tornaram-se obsoletos pelo apego a ideias e propostas do passado. Não viram a história avançar. Não acompanharam as transformações tecnológicas e seus impactos sociais e políticos no mundo contemporâneo. Não entenderam que as novas tecnologias modificaram as relações entre trabalho, capital e consumidor; ficaram no tempo em que o progresso criava emprego formal e permanente, sem ver que o progresso atual cria apenas certos empregos, quase sempre qualificados, informais e provisórios.

Não enxergaram que a classe trabalhadora está dividida entre categorias com privilégios, sem interesses comuns com as massas excluídas. Que a “mais-valia” foi substituída pela “desvalia” sobre os pobres e uma “pactuada-valia” entre capitalistas e trabalhadores especializados. Por isso, os sindicatos representam trabalhadores do setor moderno, não ao povo.

Não viram que a globalização não permite políticas econômicas nacionais voluntariosas, que terminam populistas e irresponsáveis. Não aceitaram que a construção de justiça social exige economia eficiente. Não entenderam a gravidade do desequilíbrio ecológico, e continuam prometendo aumentar o consumo de tudo para todos, no lugar de apresentar propostas para elevar o bem-estar social e a qualidade de vida. Elevaram o salário mínimo, mas não melhoram a qualidade de vida dos pobres, nem da escola de seus filhos.

Não perceberam que o vetor do progresso não está mais no chão da fábrica, mas nas bancas das escolas; que a distribuição estrutural da renda não se dá por bolsas, mas pela garantia de qualidade na educação de base para todos. Não viram que o Estado se esgotou, ficou ineficiente, injusto e corrupto; continuam insistindo no equívoco de que estatal é sinônimo de público. Tampouco entenderam que devemos respeitar as restrições técnicas da economia e garantir acesso universal aos bens e serviços públicos — meio ambiente, saúde, educação, estabilidade monetária — deixando para o mercado a produção e distribuição dos bens e serviços privados. Perderam as velhas utopias do socialismo, e não construíram outra proposta para todos. Ficaram sem bandeiras transformadoras para o país, que foi dividido em corporações e segmentos sociais, sem a defesa de reformas estruturais.

Os partidos progressistas foram rejeitados porque abandonaram os valores morais que apresentavam, mas ficaram obsoletos porque abandonaram a lógica com a qual deveriam observar a realidade do mundo em transformação. A perda da vergonha levou à desmoralização, mas o obsoletismo veio da perda de vigor transformador e de bandeiras para o futuro.

Os partidos ficaram prisioneiros do imediatismo eleitoreiro de seus políticos e sem contar com pensamento modernizador em relação ao mundo, aos riscos de sua marcha e aos sonhos do que será possível construir. Ficaram com políticos ruins e sem bons filósofos. Porque cooptaram e silenciaram nossos intelectuais, prisioneiros das siglas e dos líderes que reverenciam. Como nas religiões, passaram a acreditar nas suas narrativas e em seus santos. Pior do que não ver a banda passar foi fechar as janelas que dão para a rua e transformar os salões de debate em templos reverenciando crenças do passado.

Nestes últimos anos, o PT sobreviveu como um partido parecido a uma religião, por isso sobreviverá preso a doutrinas do passado mais do que a políticas para o futuro. No seu 40º aniversário, deveria lançar um movimento “Lula Livre e PT Livre, um do outro e os dois do passado” — Lula, usando sua liderança para falar ao Brasil, não apenas aos seus militantes, e estes pensando livremente, com esperança para 2060 e não com nostalgia de 1980.

 


Cristovam Buarque: A lição do Enem

Em 1996, a Universidade de Brasília iniciou a experiência pioneira do Programa de Avaliação Seriada (PAS), que substituía a prova única do vestibular por avaliações ao longo do ensino médio: exames ao final de cada série, selecionando os que tinham melhor média dos três anos. A ideia do PAS foi do professor Lauro Mohry, quando era diretor do sistema de vestibular e eu reitor da UnB. Mas, para ser adotada precisava do apoio do Governo do Distrito Federal.

O PAS tinha vantagens: criava um vínculo da universidade com o ensino médio; acabava com o tudo ou nada do vestibular, dando ao candidato a chance de recuperação de um ano para o outro; permitia avaliar o desempenho de cada série de escola; sobretudo servia como incentivo para que os jovens estudassem ao longo dos anos do ensino médio, não apenas em um cursinho no último ano.

Em 1995, logo que assumi o governo do DF, levei a ideia ao então reitor da UnB, Claudio Todorov, que imediatamente a aceitou. Deve-se a ele e ao então secretário de Educação do DF, Antônio Ibañez, e suas equipes, a implantação do PAS em 1996.

Três anos depois, o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, criou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para avaliar o desempenho dos cursos nas escolas. Embora não fizesse a avaliação de cada ano, o Enem foi instrumento decisivo para medir a qualidade da educação no ensino médio.

Em 2003, quando fui ministro, o MEC começou estudos e negociações com as universidades para adotar o PAS em todo o Brasil. Em 2009, apesar de não seguir o sistema de avaliação seriada da UnB, o então ministro da Educação, Fernando Haddad, deu um salto positivo na relação do ensino médio com a universidade ao utilizar o Enem como instrumento de seleção à universidade graças ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu).

A nova destinação do Enem despertou a atenção da sociedade e da mídia, que não se interessavam pelo exame enquanto ele cuidava apenas de avaliar o ensino médio. O desprezo da opinião pública pelo Enem avaliador do ensino médio e sua valorização como instrumento de seleção para ingresso na universidade são uma lição que mostra que o Brasil superestima o ensino superior em detrimento da educação de base.

Outra lição do Enem é a demonstração da importância de gestão eficiente em qualquer setor do governo. As dificuldades do Enem 2019 mostram a falência de um governo que, preocupado com o sectarismo ideológico, despreza a necessidade de gestão competente na execução de programas.

O Enem deste ano mostrou que não temos ministro da Educação com interesse e competência para gerir a educação. Seu interesse de manter o discurso estridente contra os fantasmas culturais nos quais ele acredita. Parece preocupado apenas em desfazer o abstrato “marxismo cultural”, espectro criado por seus gurus.

Mas olhando para o Enem, para o Pisa (Programa de Avaliação Internacional de Alunos) e para o Ideb (Índice de Educação de Base) dos últimos anos, percebe-se que a tragédia da educação brasileira é muito mais dramática do que o fato circunstancial do atual ministro. Ela é o resultado de todos os governos que o Brasil teve. Ao mesmo tempo que denunciamos o despreparo e descompromisso do atual ministro, precisamos ter a honestidade de reconhecer que os governos anteriores não fizeram o que era necessário para o Brasil ter uma educação de qualidade e igual para todos.

Independentemente de ter ficado oito anos ou 12 meses no cargo, nenhum dos ministros anteriores foi capaz de convencer nossos presidentes a fazerem o que imaginávamos ser necessário para o Brasil ter a boa educação de que precisa. Nem fomos capazes de convencer a sociedade brasileira a desviar os olhos e os sonhos do ensino superior para a educação de base.

Os últimos governos deixaram quase o mesmo número de adultos analfabetos que herdaram, não melhoraram nossa posição no Pisa, deixamos as escolas mais violentas e os professores igualmente desprestigiados. E ainda criamos uma falsa narrativa de que fizemos uma revolução. É provável que Bolsonaro piore o quadro, mas isso não diminui nossa responsabilidade com a catástrofe educacional.

O desastre do Enem 2019 decorre da incompetência, do descuido, desinteresse e até mesmo de certa alienação mental que o ministro demonstra a cada aparição, mas a falência da educação de base tem muitos outros responsáveis. (Correio Braziliense – 11/02/2020)

Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Cristovam Buarque: Desfronteirizar a humanidade

A humanidade é o produto do desflorestamento para produzir comida, explorar minas, fazer cidades e abrir estradas. Foi nesse processo que as civilizações floresceram. O Brasil é exemplo disso. Desde nossa origem, crescemos ocupando territórios de árvores, de animais e de povos indígenas. Essa evolução sofreu uma mudança a partir da revolução industrial, com o poder dos equipamentos modernos para depredação e com voracidade insaciável pelo consumo. Em poucos anos, o que antes era ocupação passou a ser depredação irresponsável e irreparável. No lugar de ocupar espaço para melhorar a vida, a civilização industrial passou a devorar as florestas em ritmo que ameaça a sobrevivência da civilização, devido às mudanças climáticas.

A ciência mostra que o processo industrial e consumista dos últimos séculos está aumentando a temperatura no planeta e provocando desequilíbrio ecológico, que elevará o nível do mar, desorganizará a agricultura, provocará tempestades cada vez mais fortes. Salvo os obscurantistas, que no passado se negaram a aceitar que a Terra é redonda e gira ao redor do Sol, e os interesseiros, que lucram com ações que destroem o mundo, a humanidade começa a aceitar como verdade o cenário científico da catástrofe adiante. Por isso, milhões de jovens foram às ruas nos últimos dias querendo um futuro melhor, que desaparecerá se a destruição ambiental continuar.

Nesse cenário, o mundo olha para nós brasileiros como “geocidas”, assassinos do Planeta, por queimarmos e ocuparmos as florestas da Amazônia, tanto quanto queimamos e ocupamos a Mata Atlântica. Essa depredação não começou agora, tem décadas, mas agora ela se choca com a percepção dos limites do equilíbrio ecológico, com o sentimento de interesse coletivo da humanidade. Mesmo assim, alguns ainda insistem que temos soberania para queimar nossas florestas, mesmo que provoquemos o desastre ambiental planetário que nos afetará também. É a soberania sem inteligência, desconsiderando que somos parte da humanidade, e nossa soberania é limitada por ela porque, sendo parte dela, sem ela morremos.

Esse comportamento inconsequente decorre de ideias antigas: é a soberania do tempo em que era possível destruir árvores em velocidade menor do que ela renascia, e quando cada país podia funcionar como uma ilha. Esse tempo passou: destruímos mais rápido, quebrando a sustentabilidade, e cada nação deixou de ser independente, fazemos parte de uma imensa família humana e temos responsabilidade planetária.

A humanidade precisa de valores e cada país precisa se submeter a estes, em uma sintonia inteligente com o resto do mundo que leve a uma soberania humanista para também ser inteligente. Precisamos defender soberania derrubando as fronteiras políticas que servem para dar força a obscurantistas que não veem o desastre e aos interesseiros que não abrem mão do lucro.

O Brasil é um país chave neste debate entre o futuro e o presente, entre a soberania estúpida e suicida e uma soberania inteligente sustentada ecologicamente e respeitadora dos interesses e necessidades da humanidade a que pertencemos e do planeta onde está nosso território.

Nos tempos de hoje, é uma estupidez dizer “America First”, “Brasil Primeiro”, no lugar de dizer “Terra em primeiro lugar”, “Earth First”. Mas a estupidez e o egoísmo míope, faz os políticos populistas vencerem eleições. A posição de “nós primeiro” o resto não importa, é uma tragédia para a próxima geração, mas é uma delícia para a próxima eleição. Por isso, a democracia nacional e eleitoral, submetida ao obscurantismo filosófico e ao interesse econômico, leva ao pessimismo de que o mundo caminha para o desastre.

Diante disso, as manifestações mundiais de crianças e jovens nos permitem otimismo. Os milhões de textos e gestos de ecologistas não tiveram até hoje a força para convencer eleitores na defesa do meio ambiente, na proposta de um desenvolvimento sustentável, da proteção de nossas florestas. Os meninos e meninas que foram às ruas podem despertar os adultos. Eles certamente terão impacto nas eleições do próximo ano na Europa e nos Estados Unidos, certamente vão nos acordar para o fato de que no lugar de desflorestar para aumentar o produto, a renda e o consumo destruindo o Planeta, é preciso desfronteirizar a humanidade, perceber a responsabilidade que temos com a humanidade e o mundo no uso dos recursos nacionais. Entendermos que a Amazônia é nossa e nós fazemos parte da humanidade, sem fronteiras na defesa de interesses comuns da humanidade.

Cristovam Buarque, ex-senador pelo Cidadania-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Cristovam Buarque: Onde erramos - De Itamar a Temer

Em janeiro de 2018, fui convidado a uma palestra em Oxford para falar sobre por que Bolsonaro venceu. Disse que aceitaria falar sobre porque os democratas progressistas perderam. A palestra se transformou em pequeno livro que será publicado em breve, em que lembro que, no próximo ano, completaremos 35 anos de democracia, dos quais 26 com democratas-progressistas no poder; e o eleitor decidiu nos derrotar.

Depois de 26 anos no poder, 1/4 de século e de República, cinco presidentes — Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer —, o quadro que deixamos não satisfez ao eleitor que nos derrotou, mas ainda nos negamos a fazer autocrítica, entender onde nós, os democratas progressistas, erramos.

Erramos ao desperdiçar a chance de um pacto nacional para darmos coesão política ao presente e rumo ao futuro. Consideramos que nosso papel era apenas recuperar a democracia na política e acelerar o crescimento na economia com mínimas ajudas aos pobres, esquecendo que tínhamos um país a construir: eficiente, justo, pacífico, sem pobreza, sustentável. Ignoramos as imensas transformações em marcha na civilização, sob a forma da globalização, da inteligência artificial, dos limites ecológicos ao crescimento, da realidade contemporânea em que o conhecimento é o principal vetor do progresso econômico.

Desprezamos a experiência de que não se constrói justiça social sobre economia ineficiente. Erramos ao ficarmos presos a ideias obsoletas na esquerda e cairmos em vícios da direita. Prisioneiros do imediatismo eleitoral, submetemo-nos ao corporativismo de empresários e de trabalhadores; preferimos atender aos sindicatos do que ao povo, ao presente do que ao futuro. Em vez de usar o poder para transformar, preferimos nos acomodar para sobreviver no poder, optamos pelo populismo.

Não percebemos o esgotamento financeiro, administrativo e moral do Estado. Continuamos recusando as reformas necessárias para fazê-lo eficiente, comprometido com o público e protegido contra a corrupção. Ao contrário, aparelhamos o Estado, patrocinando seu inchaço; fomos tolerantes, coniventes, complacentes e locupletados na corrupção. Optamos pela irresponsabilidade fiscal, jogando o país na recessão, no desemprego e na inflação. Desprezamos a austeridade nos gastos públicos, defendendo mordomias e privilégios, quando deveríamos ter sido a vanguarda das reformas necessárias ao progresso. Preferimos falar para os eleitores no presente, mesmo enganando-os com populismo, a dizer a verdade e apontar para o futuro.

No lugar de fazermos autocríticas, tratamos como inimigos os aliados que nos alertavam e nos aliamos a corruptos que nos aplaudiam. Ainda pior, cooptamos os intelectuais, especialmente universitários, para o silêncio reverencial. Caímos no culto aos líderes das siglas, ignorando seus erros e perdoando suas corrupções.

Abdicamos de defender os símbolos nacionais, politizamos a economia e os valores morais, além de relegar a importância da cultura na formação de uma mente brasileira comprometida com o progresso: a educação, a sustentabilidade, a eficiência, a paz, o sentimento de patriotismo, a defesa da ética no exercício do poder e dos serviços públicos. No lugar do povo e da nação, preferimos o apego às siglas partidárias.

Não percebemos que nossa bandeira viável e revolucionária consistiria em uma “concertação nacional” por uma estratégia de longo prazo para colocar o Brasil entre os melhores do mundo em educação e garantir escola com a mesma qualidade para todos, filhos dos pobres em escolas tão boas quanto filhos dos ricos, como tantos outros países já fizeram. Se tivéssemos seguido essa estratégia nos 26 anos que estivemos no poder, hoje teríamos economia eficiente e sociedade justa.

Fabricamos o “outrismo”, e agora é difícil sair dele. Para isso, será preciso entender onde erramos e formular nossas propostas de rumo para o futuro: atrair o eleitor para uma alternativa que construa novamente o Brasil, sermos estadistas, não apenas políticos. Mas isso não parece fácil pela fragilidade de nossos filósofos e pelos vícios de nossos políticos.

A saída para o Brasil não virá pelos sectários, mas os não sectários não parecem ter chance nos próximos anos. Porque é muito forte a aliança entre os extremos. Os sectários são iguais, com palavras diferentes que se autoalimentam, conseguindo eliminar todos que não se identificam com os reacionários obscurantistas ou com os reacionários obsoletistas, que fazem uma aliança de inimigos, repetindo 2018 em 2022.

 


Cristovam Buarque: Conspiração Interna

Negar educação de qualidade para uma criança por causa de sua renda ou endereço impede o progresso econômico e social

Em um excelente ensaio, que deveria ser lido por todos, publicado na Veja, o Professor Claudio de Moura Castro descreve de uma forma raramente vista, a importância da educação para o desenvolvimento de cada país. Como se fizessemos uma conspiração contra o Brasil, a mente brasileira impede o salto na educação brasileira.

Mesmo aqueles que se dedicam e defendem a educação, lutam para sair da tragédia, não para o Brasil dar o Salto na educação: ficarmos entre os melhores do mundo e oferecermos a mesma qualidade independente da renda e do endereço da criança, desCEPlizar e DesCFPlizar a educação.

Na última terça feira, na Assembléia do movimento Todos pela Educação foi dito que uma das nossas tarefa é convencer a população brasileira, a Mente do Brasil”, de que:

Nesta Era do Conhecimento, educação não é apenas um direito de cada pessoa, mais ainda, educação é o motor do Progresso.

É possível, em um prazo de anos, o Brasil ter uma educação tão boa quanto as melhores do mundo, ficarmos e entre as primeiras classificações no PISA.

Que negar educação de qualidade para uma criança por causa de sua renda ou endereço impede o progresso econômico e social, impede aumentar a renda nacional e de distribui-la com justiça, conforme o talento da pessoa.

A maior tarefa dos que desejam fazer do Brasil um país educado é convencer o Brasil de que é preciso e é possível fazer isto, apesar de que em “nossa mente” estão entranhadas quatro ideias: a) nossa vocação é para o futebol, não para a inteligência, para as quadras, não para as escolas; b) escola com qualidade não é possível para todos, como antes não era para os escravos agora não seria para os pobres; c) que o motor do progresso está na economia e não na base da economia que é a educação; d) que a distribuição de renda passa antes pela distribuição do conhecimento, pelo cérebro antes do bolso, pela escola antes do banco, e pelo boletim escolar antes do contracheque.

*Cristovam Buarque é ex-senador