Armando Castelar Pinheiro: Outra vez o teto de gastos

O que se defende é uma reedição do PAC e da Nova Matriz Econômica, que jogaram o Brasil na recessão de 2014-16.
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

O que se defende é uma reedição do PAC e da Nova Matriz Econômica, que jogaram o Brasil na recessão de 2014-16

Quando eu estudei fora e vinha visitar a família, o país parecia estar sempre à beira do precipício. Era o final dos anos 1980, período de hiperinflação, choques heterodoxos e um confuso processo de redemocratização. Voltava para Berkeley me perguntando como o país sobreviveria. Quando chegava aqui de volta, porém, nada tinha mudado: nem as coisas tinham explodido, nem nada fora resolvido. Era, como se dizia, uma hiperatividade paralisante.

Em várias dimensões, as coisas pouco mudaram desde então. Vemos isso na área fiscal, na questão tributária, na privatização, na abertura comercial etc. O custo disso é imenso: os investidores se retraem, a produtividade não aumenta e o crescimento é medíocre, gerando mais informalidade e pobreza do que seria preciso.

A aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que instituiu o teto de gastos, foi um passo importante na luta contra essa hiperatividade que não leva a lugar nenhum. Como observei à época (glo.bo/3hgjLA1), a regra do teto permite um ajuste fiscal gradual, sem ter de necessariamente cortar gastos, em especial aqueles com educação e saúde, cujo mínimo foi garantido pela própria emenda. Além disso, ele reduz o custo de financiamento do setor público.

O teto de gastos deu direção à política fiscal e ancorou as expectativas com extraordinário sucesso. Nos três anos decorridos desde a promulgação da EC 95, em dezembro de 2016, a despesa primária do governo central (União, INSS e Banco Central) cresceu 1,2% ao ano (a.a.) em termos reais, em linha com o observado em 2015-16 (0,3% a.a) e cerca de um quinto do visto entre 1997 e 2014 (6,3% a.a.). Isso permitiu uma forte queda da taxa Selic, de uma média de 14% em 2016 para 5,9% em 2019. Ainda assim, a inflação caiu, de 6,3% em 2016 para 4,3% em 2019. E, mais importante, o país saiu da recessão, com o desemprego em queda até a chegada da covid-19.

Esse quadro vinha permitindo um gradual ajuste das contas públicas. O déficit primário do setor público consolidado caiu de 2,48% para 0,85% do PIB de 2016 para 2019. A despesa com juros sobre a dívida pública também diminuiu, de 6,49% para 5,06% do PIB, em que pese a alta da dívida. Isso se deu por o custo de financiamento ter caído: entre 2016 e 2019, a taxa de juros implícita na dívida bruta caiu de 13,1% para 7,8%, enquanto para a dívida líquida a queda foi de 17,9% para 10%.

Isso reduziu não só o custo de capital para quem quer investir, como se vê no mercado de capitais, mas também o rendimento que as famílias mais ricas obtêm em suas aplicações financeiras, com impactos distributivos não triviais.

A pandemia da covid-19 levou ao acionamento de um mecanismo previsto na EC 95, que é a realização de despesas extra-teto, via créditos extraordinários, nas condições previstas no parágrafo 3º, artigo 167 da Constituição Federal; no caso, o estado de calamidade pública. Para mim, mais uma demonstração da flexibilidade bem direcionada da regra do teto.

Controlada a pandemia, e passado o estado de calamidade pública, previsto para terminar no fim do ano, se encerra também o espaço para esses gastos extraordinários. E esse movimento, que deveria ser natural, já que previsto na Constituição, vem enfrentando muita oposição política. Oposição que tende a crescer nos próximos meses. Aqui cabe diferenciar dois problemas distintos.

O primeiro reflete o desejo de setores do Executivo e do Congresso de gastar mais para alavancar suas chances eleitorais. Como mostram pesquisas recentes, o Auxílio Emergencial ajudou a aumentar a popularidade do presidente, atraindo um segmento da população antes alinhado ao PT. O fim, ou a redução, dessa transferência de renda vai ter o impacto oposto, e proporcionalmente até mais forte. Há também quem queira aumentar as despesas com projetos que rendam bons palanques eleitorais. Muitos deles, se forem em frente, perigam entrar para a longa lista de obras paradas.

O segundo diz respeito à necessidade de o orçamento passar a refletir as prioridades que a sociedade atribui aos vários tipos de gastos públicos, em vez de simplesmente acomodar aumentos em todos eles. Esse foi um desafio colocado desde que o teto de gastos foi proposto. Nada mudou quanto a isso. Ou melhor, mudou para pior. Com os gastos extras com a pandemia, a dívida pública vai dar um salto de 20% do PIB, complicando ainda mais a gestão das contas públicas. Respeitar o teto é ainda mais importante hoje do que antes da pandemia. O que não significa que se vai resolver com facilidade o conflito político entre os “donos” dos vários gastos. Mas esse é o papel da Política e o trabalho para o qual os políticos são pagos.

O que mais impressiona nos argumentos dos que defendem furar, flexibilizar o teto é dizer que ele terá um impacto positivo sobre a atividade econômica. Ora, o que se defende é uma reedição do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, e da Nova Matriz Econômica, ignorando que foram essas políticas que jogaram o Brasil na profunda recessão de 2014-16.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ

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