Armando Castelar Pinheiro: A sedução do autoritarismo

A defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos
Foto: Reprodução
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A defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos

A decisão parecia clara: dado meu fraco desempenho nas mesas, o Poker for Dummies sugerido por um amigo no WhatsApp era a escolha sensata. Prevaleceu, porém, o desejo de ler o recém-lançado livro de Anne Applebaum, “Twilight of democracy: the seductive lure of authoritarianism” (Doubleday, 2020). Não me arrependi.

Applebaum aborda a crise das democracias liberais de forma complementar ao feito por autores como Manuel Castells. Como discuti aqui há dois anos, Castells usa uma abordagem mais marxista, falando da perda de legitimidade das elites políticas, por conta do aumento da desigualdade de renda, dos escândalos de corrupção e da percepção de captura das instituições pelas elites (glo.bo/33q0SpZ).

É como se as condições tivessem mudado e a decisão racional dos cidadãos fosse questionar a democracia, por entender que essa não está mais voltada a buscar o interesse do cidadão mediano.

Applebaum, por sua vez, foca no lado menos racional da cidadania, nas emoções, nos vieses cognitivos. Mais ao ponto, seu foco é o distanciamento entre a centro-direita, na qual se auto-situa, e a extrema direita e, em especial, os intelectuais que dão apoio a governos de direita com viés mais ou menos autoritário, vários dos quais eram amigos ou conhecidos da autora. A passagem desses personagens, que Applebaum cita nominalmente, de amigos para ex-amigos é usada por ela para caracterizar esse distanciamento, ocorrido ao longo dos últimos 20 anos.

Para Applebaum, a maior ameaça à democracia liberal vem do risco de mais países mergulharem no autoritarismo, sob a influência de grupos de extrema direita (e esquerda) que recorrem a dois instrumentos principais. Um é a moderna tecnologia da informação, via redes sociais, que permitem identificar os temas que interessam e preocupam cada eleitor, enviando a cada um mensagens sob medida, feitas para dar medo e/ou raiva. Uma sensibilização que explora o conhecimento desenvolvido nas últimas décadas em áreas como neurociência, psicologia, marketing e Economia Comportamental. A Cambridge Analytics, ator central no referendo do Brexit e na eleição de Trump, é um dos exemplos citados nessa área.

O outro instrumento é a criação de narrativas, muitas vezes calcadas em fake news. É aqui que entram os intelectuais. Ao criticá-los, Applebaum se ancora no livro de Julien Benda, La Trahison des Clercs (em português, A Traição dos Intelectuais, Ed. Peixoto Neto). Nesse livro, lançado em 1927, Benda critica intelectuais que abraçaram ideologias totalitárias – comunismo, nazismo, fascismo – e se alinharam a líderes autoritários, defensores de um nacionalismo belicoso e excludente. Ao assim fazer, esses intelectuais contribuíram para legitimar esses movimentos e seus líderes. Fizeram isso, então como agora, argumenta Applebaum, por interesse financeiro, para se projetarem e por inveja de outros mais bem sucedidos.

Para a autora, a extrema direita sempre esteve lá, mas antes passava despercebida, pois se aliava à centro-direita e ao centro no combate à União Soviética e ao comunismo. A queda do Muro de Berlim acabou com essa aliança. Isso só não ficou claro antes por conta dos ataques de 11 de Setembro e as guerras que vieram em seguida.

O livro foca em Polônia, Hungria, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos, apenas resvalando no Brasil, quando fala do uso das novas tecnologias nas eleições de 2018. Porém, é fácil ver que muito da discussão se aplica ao Brasil, como o enfraquecimento dos partidos tradicionais de centro, o uso de fake news, a tentativa de enfraquecer as universidades, a imprensa, o legislativo e o judiciário.

Também por aqui temos o que Applebaum chama de “whataboutism”, que segundo ela era uma tática de retórica soviética que consistia em responder às críticas acusando o interlocutor de hipocrisia. Um exemplo é a entrevista de Trump em que ele elogia Putin e o entrevistador provoca: “Mas ele é um assassino”, e Trump retruca: “Existem muitos assassinos. Você pensa que seu país é tão inocente?”. Entre nós, vejo isso no “Edaísmo”, as respostas com o “E daí?”.

O livro analisa, denuncia, mas não oferece remédios. Ele encerra em tom esperançoso, falando do sentimento pan-europeu dos jovens da região. Parece incongruente com a análise feita antes. Do meu lado, saí acreditando mais na reeleição de Trump e mais preocupado com a moldura intelectual dada à nova ordem mundial.

Esta me pareceu a principal ausência do livro, que, apesar de bem atual, a ponto de falar da pandemia da covid, não cita o conflito EUA x China. A autora entende que o fim da aliança entre centro e extrema-direita enfraquece a democracia liberal e, portanto, é mais um elemento que contribui para por um fim à ordem mundial iniciada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Mas, e o que vem depois? Me pergunto, por exemplo, se a nova guerra fria será conduzida para restabelecer a aliança à direita, como parece estar sendo, e Applebaum parece desejar, e o que isso trará para países como o Brasil. Afinal, na guerra fria do século XX, a defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos no mundo em desenvolvimento. E os quase cem anos que vão do caso Dreyfus à queda do Muro foram muito divisivos e violentos também por aqui.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ

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