Antonio Risério: Da aceitação das diferenças ao paredón identitário

Segue a conversa em torno dos movimentos identitários e do livro de Francisco Bosco.
Foto: Reprodução/Roda Democrática
Foto: Reprodução/Roda Democrática

Segue a conversa em torno dos movimentos identitários e do livro de Francisco Bosco 

Quero falar da abolição da história, das classes sociais (isto é, do sociológico) e da variabilidade antropológica da humanidade, nesse ambiente mental identitário… Quero chegar também a uns lances mais duros… Mas, a essa altura da conversa, talvez seja bom (mas talvez seja apenas supérfluo) fazer um intermezzo, uma breve colagem, para dar uma situada geral do assunto no âmbito da esquerda (ou de quem se diz “progressista”): o que degenerou de maio 68/new left para multiculturalismo/cultural studies… Espero que Francisco Bosco tenha alguma paciência.

Recentemente Maria Cecília Manso me perguntou: isso tem a ver com o “politicamente correto”? E Marília Mattos, fazendo um esforço de síntese genealógica, respondeu:

“A origem, por assim dizer, ‘epistemológica’ é a mesma: os estudos culturais, que têm a ver com Gramsci e com uma revisão do marxismo (a partir de Althusser e sua concepção de “interpelação ideológica”) a qual, para resumir, fez com que a esquerda (ou melhor, a new left), praticamente constrangida pelas feministas americanas, estendesse seu foco – até aí, no proletariado – às chamadas “identidades minoritárias” (ou periféricas). Expansão esta que, a meu ver, acabou por afastá-la totalmente do proletariado (mais precisamente, fez este afastar-se dela) ao ignorar e, muitas vezes, atacar seus valores reacionários, concentrando-se (quase obsessivamente) nessas identidades “oprimidas” (mulher, negro, gay, etc) – o que, graças à excessiva patrulha ideológica, deu nessa overdose de ‘politicamente correto’. Lugar de fala, simplificando, diz respeito aos discursos com os quais vc se identifica, que (re)produzem as identidades, que não são únicas, nem essenciais ou fixas – como demonstrou, emblematicamente, Michael Jackson, um herético transgressor das ‘sacrossantas’ fronteiras identitárias. Mas esse caráter fluido da identidade é frequentemente desconsiderado, o que é lamentável”.

O próprio Bosco fala, em seu livro A Vítima Tem Sempre Razão? , que a “erosão da centralidade do conceito de classe (ou das respostas propostas a ele) foi um dos fatores a produzir a emergência de uma nova esquerda, baseada em outras referências”. Acrescenta: “Já no período de 1968 se estabeleceu uma crítica ao trabalho alienado, de regime taylorista, hierarquizado, que era a base da perspectiva revolucionária marxista… Em oposição a essa forma de trabalho, deu-se uma valorização das atividades mais flexíveis e arriscadas, cujo sentido era o da autorrealização… No lugar da crítica clássica à exploração da força de trabalho, há uma crítica à inautenticidade do trabalho tradicional… É no contexto dessa crítica ao trabalho, considerado em sua dimensão impessoal, que emergem os pleitos por reconhecimento de formas de vida particulares: os movimentos identitários”.

E isso tomou conta das “humanidades”, no sistema universitário estadunidense, sendo prontamente retransmitida por nossos copistas de plantão…

Bruna Frascolla, também no Facebook: “A fórmula é a seguinte: sempre que vocês virem um jovem que se pretenda progressista afirmando alguma coisa digna do kkk ou das mulheres de Aristófanes, isso vem de modismos acadêmicos dos Estados Unidos. São os estudos de questões sociais feitos em departamentos de literatura (sim!), sem qualquer compromisso com análise concreta e rigorosa de dados. Os ‘gender studies’, os ‘postcolonial studies’ e a caçula ‘queer theory’. Tudo consiste em pegar o antagonismo de classes do marxismo, a dinâmica opressor-oprimido, e transferir para etnia e sexo”.

Quanto ao “multiculturalismo”, sempre o defini como um apartheid de esquerda. Lembro entrevista que dei ao escritor José Castello, há exatos 11 anos atrás:

“Existem países multiculturais e países sincréticos. O Brasil é um país essencialmente sincrético. Não temos aqui nada de parecido com o bilinguismo paraguaio, com as divisões que detonaram a antiga Iugoslávia, com os cinagaleses e tâmeis que fragmentaram o Sri Lanka, com o que acontece na Nigéria e na Indonésia. Aqui, apesar das crueldades da escravidão, as coisas se mesclaram em profundidade… Mas há, ainda, outra distinção. Uma coisa é a realidade multicultural de um país, outra é a ideologia multiculturalista. O multiculturalismo se opõe às interpenetrações culturais, defendendo o desenvolvimento separado de cada ‘comunidade’, de modo que esta possa permanecer sempre idêntica a si mesma, numa espécie qualquer de autismo antropológico. Ora, nem o Brasil é multicultural, nem há lugar aqui para o multiculturalismo, a não ser que, como dizia Adam Smith, neguemos a evidência dos sentidos em nome da coerência de nossas ficções mentais”.

Democrata é quem concorda comigo. Quem discorda é fascista
Retomando o fio da meada… Como disse anteriormente, os movimentos identitários nasceram de nossas lutas em favor do outro e hoje para eles o inimigo principal é justamente o outro. Desfecharam um combate feroz e sem tréguas à diferença, à outridade. Para dizer em poucas palavras: a aceitação das diferenças, as “apropriações culturais” planetárias e o “voyeurismo cognitivo” (Gellner) da antropologia e da contracultura foram substituídos pelo paredón identitário.

Tudo brota na (ou descamba para a) intolerância. Do plano específico, na base do quem não concorda comigo é machista/racista, ao plano geral: “democrata” é quem professa adesão integral ao meu discurso; quem discorda, é fascista. Estamos aqui bem longe da “prática política da escuta” (Barthes). Do gosto enriquecedor pelo convívio democrático. Em vez do cultivo da multiplicidade, do respeito à diferença – que os fez nascer, crescer e se fortalecer –, vigora o apartheid, o fechamento do horizonte.

Tanto que penso o seguinte. Bosco esclareceu aqui o que entende por “reconhecimento” e “déficit de reconhecimento”: “trata-se do olhar social para o outro, e o ‘déficit’ de que falo é um conjunto de modos de excluir, rebaixar, governar os subalternos, ou seja, o reconhecimento pelo qual têm lutado os movimentos identitários contemporâneos é irredutível às formas jurídicas. Por isso não considero que essa agenda difusa seja, em si, irrelevante, ou de menor importância que a agenda concreta, pontual, em instância institucional”.

Houve avanço nos dois campos, na verdade. Tanto no plano estritamente jurídico quanto no do “olhar social para o outro”. Mas não acredito que isso vá avançar muito, nesse último caso – e graças aos próprios identitários, com suas agressões brutais, obscurantistas, desvairadas e incansáveis. Bosco cita Axel Honneth falando de três instâncias sociais capazes de produzir reconhecimento: o amor, o direito e a solidariedade. Deixemos de parte “o amor”, que se planta em terreno muito particular, e fiquemos no social “propriamente dito”. Do jeito que os identitários estão levando o barco, quase numa busca patológica por rejeições, penso que a única espécie de “reconhecimento” que terão se limitará à esfera do direito. O conjunto da sociedade pode chegar a um consenso até mais amplo que o dos tribunais: “eles têm direito”… Mas não estaremos no plano genuíno da solidariedade. Porque os identitários estão escorraçando o “conjunto da sociedade”, a começar pelo “cordon sanitaire” dessa excrescência prática que é o “lugar de fala”. E cansa ficar sob a mira da superficialidade agressiva dos fanáticos, num país onde mestiçagens e sincretismos começaram antes da existência do Estado e de classes sociais.

Volta e meia, em tantas rodas de conversa e também no Facebook, aparece mais alguém para dizer que desistiu de dizer publicamente o que pensa sobre questões relativas a tópicos de “justiça e igualdade”, para evitar a baixaria das agressões dessas caricaturas de revolucionários, desses “comissários” raivosos-espumejantes, caso contrariem algum de seus dogmas sagrados.

Temos posturas e temperamentos diversos diante disso… Bosco tende ao generoso, digamos assim, colocando-se mais como analista e mesmo se declarando “aliado” dessa turma, ao tempo em que critica suas ações. Acredita, explicitamente, que stalinifascistas sejam recuperáveis. Não é bem o meu caso. Penso que eles não ouvem palavras “dissidentes”: só se repensam quando finalmente soterrados por fatos. E tendo muito mais para o embate, quando querem me silenciar à base de agressões. Para mim, não é só uma questão de considerar inaceitável essa atitude religiosa de sacralização do próprio discurso e menos aceitável ainda a recusa total do discurso do outro… Trata-se também de combatê-las.

Num resumo, meu problema com os identitários é simples. Eles partem de uma base que sempre foi legítima e justa. Combater o racismo, combater a opressão sexual, etc. O problema, como disse, é a condução das coisas. Porque, ao se postar contra o outro, ao acionar a fuzilaria pesada contra quem não pensa exatamente do mesmo jeito, o suposto “revolucionário” está se plantando no caminho nazistalinista. No caso do neonegrismo, racifascista. E o que é lamentável: o vocabulário bélico, que sempre foi acionado com referência a militâncias, de há muito deixou de ser meramente metafórico.

Feliz ou infelizmente, vivo num país, numa sociedade, onde, para muito além de grupelhos e associações (excludentes) neofeministas-neonegras, vivem milhões e milhões de homens e mulheres que configuram o conjunto da sociedade. Aqui é meu lugar, aqui é onde vivo, aqui está o que posso transformar. Logo, afirmo e reafirmo duas coisas. Primeiro: para mim, não existe propriedade privada no mundo dos signos e discursos políticos e culturais. Segundo: sou brasileiro – discuto e vou continuar discutindo tudo que disser respeito ao Brasil. Este é um dos meus lugares de fala.

* Antonio Risério é antropólogo, poeta, escritor e historiador.

Privacy Preference Center